Leia a edição de abril/22 da Revista E na íntegra
Por Luna D’Alama
Quem nunca teve o sonho de infância de ser arqueólogo, astronauta ou bombeiro quando crescesse? Pois o gosto por viagens, acampamentos e livros de aventuras foi o que conduziu o historiador, professor da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em arqueologia pela Indiana University (EUA) por esse caminho de escavações, ossos e descobertas. “A arqueologia junta a curiosidade sobre o nosso passado mais antigo e a possibilidade de viajar e conhecer lugares que as pessoas normalmente não conhecem”, compartilha.
Presidente da Sociedade de Arqueologia Brasileira entre 2009 e 2011 e professor do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, Eduardo colaborou como consultor do SescTV para a realização da série Amazônia – Arqueologia da Floresta, que estreia no dia 30 deste mês. Dirigida por Tatiana Toffoli e organizada em quatro episódios, a série ficará disponível na plataforma de streaming sob demanda do SescTV (assista ao trailer da série). Neste Encontros, Eduardo fala sobre seu interesse pela arqueologia, o trabalho desafiador na região amazônica, sítios arqueológicos brasileiros e a importância do reconhecimento e preservação da biodiversidade.
Costumo falar: quem faz arqueologia geralmente não saiu da infância, pois os meninos, em geral, falam muito em ser arqueólogo, bombeiro e astronauta. Sou um cara de classe média de São Paulo e, de certo modo, tive a possibilidade de escolher esse caminho. Muita gente tem vontade de fazer arqueologia, mas acaba não conseguindo. Mas isso está mudando por causa de políticas de ação afirmativa nas universidades públicas. Eu sempre gostei muito de ler, desde menino, e também gostava muito de história. Me lembro de, quando estava no segundo ano primário, olhar para um livro de história no qual havia a imagem de colonizadores portugueses na praia, caravelas atrás e, do outro lado, indígenas. Era sobre o “descobrimento” do Brasil e eu falava: “Ué! Como o Brasil foi descoberto se já tinha gente aqui?”. Quando os filmes do Indiana Jones saíram, eu já estava na faculdade, e sempre gostei muito de ler livros de aventura, de viajar, de acampar. Quando estava no ensino médio, eu percebi que a arqueologia juntava um pouco disso tudo. A arqueologia tem uma coisa muito legal que é juntar a reflexão intelectual com a parte física e braçal e ainda conhecer as pessoas que vivem nos lugares onde se trabalha. Pessoas maravilhosas e que normalmente a gente nem sabe delas direito. Então, a arqueologia é uma paixão que tenho desde a infância e que segue muito forte. Ao contrário do que muitos pensam, a gente trabalha de chinelos e camiseta, não de bota e chapéu, dirigindo um jipe.
A arqueologia é uma ciência, mas é uma ciência social. Então, existe esse grau de imprevisibilidade. É por isso que a gente faz uma escavação, uma arqueologia de campo que, no fundo, é “destruir com método”. A gente está retirando material e há contextos que estão preservados por milhares de anos. Quando um(a) arqueólogo(a) vai a campo e retira materiais, se isso não for muito bem feito e registrado, aquela informação se perde para sempre. A gente tem uma ideia do que quer encontrar, temos hipóteses que orientam nosso trabalho que é, justamente, tentar encontrar o que é meio desconhecido. Sempre saem coisas interessantes. Há também a “maldição da arqueologia”, ou seja, as coisas mais legais sempre saem no penúltimo ou no último dia, quando estamos fechando (a escavação). Essa é uma regra geral da arqueologia no mundo inteiro. “Estava indo bem e, no último dia, apareceu um pedaço de osso”. Aí, você tem que fazer uma conta: fechar a escavação, porque já está tudo pago, ou acelerar o trabalho e ficar um pouco mais. Isso é maravilhoso: não saber o que vai encontrar.
As coisas que a gente quer entender dizem respeito às questões do passado, só que nosso objeto de estudo é híbrido – inclui desde artefatos, vasos e objetos de pedra, até restos de ossos, restos de plantas, amostras de solo. A arqueologia é uma ciência social que entra na antropologia, história, geografia. Entre as pessoas que compõem a nossa equipe, uma é especialista em ossos encontrados nos sítios, outros analisam cerâmicas, outros atuam com restos de plantas etc. Aquela ideia do(a) arqueólogo(a) trabalhando sozinho é uma ideia supercolonialista. Esse é um trabalho de equipe e um trabalho transdisciplinar, porque a gente quer entender a relação entre as populações indígenas e a natureza ao longo dos milênios. Nossa hipótese é que a Amazônia é uma floresta criada por esses povos, um patrimônio biocultural, não uma floresta natural. Para entender isso, temos que descobrir quais eram os animais e plantas consumidos, o padrão de materiais, procurar evidências de manejo da paisagem, de uso do fogo, trabalhar também fora dos sítios arqueológicos.
“A GRANDE LIÇÃO QUE A GENTE PODE APRENDER COM A ARQUEOLOGIA É VALORIZAR A DIVERSIDADE“
No Brasil, temos vários tipos de sítios arqueológicos. Inclusive, há algumas áreas onde isso fica nebuloso. Se pensarmos na nossa história colonial, numa antiga fazenda, numa fortificação portuguesa, estes são tanto sítios arqueológicos, quanto patrimônio arquitetônicos e históricos. Então, essas definições encontram-se mais ou menos misturadas. Mas, no caso da história antiga do Brasil, anterior ao “descobrimento”, à chegada dos portugueses ou da conquista, a gente quase não tem uma arquitetura remanescente. As paredes geralmente eram de barro, de palha, de madeira. A pedra, por exemplo, não era muito utilizada como material de construção. Dessa forma, como é que a gente sabe que está em cima de um sítio arqueológico? Eu trabalho na região amazônica. Geralmente, a gente encontra fragmentos de cerâmica na superfície, o solo é um pouco mais escuro. Tem muita coisa que a gente sabe hoje sobre a Amazônia e que foi construída pelos povos indígenas – aterros, canais, estradas. Só que a matéria-prima para essas construções era o solo. Então, até 30 anos atrás, dizia-se: “Isso é natural, não foi feito pelos indígenas”. Mas, nós sabemos hoje que houve uma intervenção na paisagem pelos indígenas, e que são sítios arqueológicos. Costumo dizer que achar um sítio arqueológico na Amazônia não é difícil. O difícil é saber o que fazer com ele. Nós temos milhares de sítios cadastrados: são mais de seis mil na Amazônia brasileira. Alguns são muito grandes e estão cobertos pela floresta, por isso nosso trabalho de campo, às vezes, é muito lento.
Assim como achar um sítio arqueológico é complicado, também é complicado saber onde fazer as escavações nele. Por exemplo, as matas de araucária no Sul do Brasil ou os castanhais da Amazônia são tipos de formação que, geralmente, não estão dentro de um sítio e resultam da atividade indígena no passado. Então, a própria ideia de sítio arqueológico está sendo ampliada. Na série [Amazônia – Arqueologia da Floresta], a gente está no sítio de Monte Castelo, que é importante no nosso documentário. Ele é uma ilha artificial, uma região chamada de Pantanal, só que não é o Pantanal do Mato Grosso, é o Pantanal do Rio Guaporé, em Rondônia. Quando você anda por aquele lugar na época da cheia, quando fica tudo alagado, vê-se uma ilha que se destaca na paisagem com seis metros de altura por 160 metros de comprimento. É uma ilha artificial que começou a ser construída há seis mil anos. Então, nesse caso, as propriedades físicas daquele lugar nos mostram que ele é um sítio arqueológico. Desse sítio de Monte Castelo, a gente trouxe muitas conchas, ossos humanos, restos de fauna e flora, ossos de animais (como peixes e mamíferos), amostras de solo e cerâmicas. Com a pandemia, ficou tudo parado, e agora os sepultamentos que nós escavamos, e que estão registrados na série do SescTV, foram para Santarém (PA) no começo de março, porque a especialista nesse tipo de análise é uma professora e bioarqueóloga da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa). Esse material, então, saiu do Rio Guaporé (Rondônia), veio para São Paulo, foi para Santarém e, eventualmente, vai voltar para Rondônia.
A Amazônia não é só brasileira, ela é sul-americana [ela abrange nove países: Brasil, Peru, Bolívia, Equador, Colômbia, Venezuela, Suriname, Guiana e Guiana Francesa]. Mas a maior parte está no Brasil. Há um intercâmbio e uma integração de arqueólogos. Por exemplo, equipes do Amapá conversam muito com os da Guiana Francesa. Eu trabalho em Rondônia, mas agora estou trabalhando na Bolívia. Nós fazemos encontros internacionais periódicos de arqueologia amazônica. O Brasil é o país sul-americano que mais investe em arqueologia na Amazônia. A Argentina é um país que tem uma arqueologia muito forte também. O Peru também é um país onde a arqueologia é fundamental para a identidade do país, mas os peruanos só querem saber de trabalhar nos Andes ou no litoral, não ligam muito para a Amazônia. Então o Brasil, de certo modo, tem um espaço hegemônico de presença em pesquisa na região por causa do tamanho do país, por causa da Amazônia brasileira e de uma tradição de investimento em pesquisas nesse território.
Nós somos primos dos Maias. A gente descende da mesma população fundadora, que chegou aqui, segundo dados genéticos, há 18 mil anos – mas os dados arqueológicos falam em 26 mil anos. Há uma linha cruzada entre a genética e a arqueologia, mas é algo normal. Mas existe um parentesco muito grande [entre os maias e os povos nativos do Brasil]. Nós sabemos, por exemplo, que o cacau [conhecido primeiro como uma bebida apimentada, e só depois como uma bebida doce e como chocolate sólido] é uma planta amazônica, sul-americana, que foi levada daqui para a América Central e para o México por relações de troca. Ninguém sabe direito. O milho também é uma planta cuja origem está no sul do México e foi domesticado há uns 7 mil anos. Mas ele já era cultivado em Rondônia há 6 mil anos. Quando os europeus chegaram aqui, o tabaco [outra planta sul-americana] era cultivado até o sul do Canadá. Então as plantas viajaram muito, de um lado para o outro. E parece que os povos viajaram menos. É um mistério isso, uma questão interessante da nossa arqueologia. No ano passado, saiu um artigo científico de umas múmias de papagaios que foram escavadas no Deserto do Atacama, no norte do Chile, um lugar muito seco. O material estava bem preservado e se extraíram o DNA e isótopos de oxigênio [um marcador de data]. A conclusão é que esses animais foram trazidos vivos de uma região a leste da Cordilheira dos Andes, talvez da Argentina ou do Paraguai. Quer dizer, a gente tem evidências cada vez maiores de relações de troca e contato entre os povos originários.
A arqueologia funciona muito bem para contar histórias que foram silenciadas, que não estão registradas, como a da escravidão no Brasil e a da diáspora africana. Se a gente puder juntar esse aparato tecnológico a essas questões, que têm essa pegada de teoria social e política, será uma combinação “explosiva”, eu diria. Isso pode mudar nossa visão sobre o passado do Brasil. A presença dos indígenas na arqueologia é uma história que está começando a acontecer, resultado de políticas de ação afirmativa. Políticas, a meu ver, muito bem-sucedidas. A semente que foi plantada está frutificando de uma maneira muito bacana. A arqueologia pode ser um caminho poderoso para trazer a história dessa presença que está escrita na paisagem. Abre possibilidades de diálogo que antes não eram contempladas e que tornam a nossa produção de conhecimento muito mais interessante.
Se existe uma palavra que sintetiza tudo isso, essa palavra é: diversidade. A história da Amazônia nos mostra que os povos indígenas foram produtores de diversidade cultural e de agrobiodiversidade. Há 300 línguas indígenas, dentro de 50 famílias, faladas na Amazônia. É uma diversidade linguística espantosa. Em outros lugares do mundo com as mesmas dimensões geográficas. A arqueologia pode nos ajudar a entender isso se a gente ouvir o que os povos indígenas estão tentando nos falar desde sempre. Os trópicos são lugares de produção de diversidade. A grande lição que a gente pode aprender com a arqueologia é valorizar a diversidade, a diferença, e ver nisso um valor positivo, como algo que tem que ser cultivado. Olhar para esse patrimônio, pensar nas nossas florestas como [se fossem] as nossas pirâmides, e pensar em maneiras mais inteligentes de exercer o manejo desses recursos.
A arqueologia é um jeito de olhar para o presente, de olhar para o lixo que a gente produz, que pode estar tanto nos lixões quanto depositado nos rios [e oceanos]. Essa arqueologia que sai do sítio e vai para a natureza, para a paisagem, é meio “gulosa”, onívora, ela usa de tudo para construir essa narrativa. Então, um jeito de olhar para o nosso estilo de vida hoje é pela nossa produção de lixo. A rocha que a gente mais produz hoje é o concreto, e o marcador fóssil que a gente vai ter da nossa época é o osso de galinha, tendo em vista a quantidade de frango que é consumido no país. Ou seja, a arqueologia ajuda a entender o mundo em que estamos vivendo.
EDUARDO GÓES NEVES esteve presente na reunião virtual do Conselho Editorial da Revista E no dia 23 de fevereiro de 2022.
A EDIÇÃO DE ABRIL/22 DA REVISTA E ESTÁ NO AR!
Nas páginas deste mês, você descobre maneiras de alcançar qualidade de vida e bem-estar a partir de iniciativas que defendem a desaceleração da sociedade do desempenho e o estímulo à reconexão humana e com o meio ambiente. Aproveite para conhecer o projeto Inspira – Ações para uma vida saudável, com ações em diversas unidades do Sesc São Paulo.
Além disso, a revista de abril traz outros destaques, como o projeto Quadro a Quadro, que ocupa as redes sociais do Sesc Pompeia com HQs inéditas; um apanhado visual das obras que compõem a 30ª edição da MAJ – Mostra de Arte da Juventude, do Sesc Ribeirão Preto; um passeio poético por fotografias de janelas da capital paulista; um depoimento da cantora Fernanda Takai sobre o disco recém-lançado, pandemia, fake news, processo criativo e maternidade; um perfil de Mário de Andrade (1893-1945), vanguardista paulistano que foi um dos protagonistas do movimento modernista; uma entrevista com a arquiteta e urbanista Raquel Rolnik sobre mobilidade e acesso à cidade; o relato de Eduardo Góes Neves, arqueólogo e historiador que conduz pesquisas na região amazônica e que, neste mês, estreia uma série no Sesc TV; e dois artigos que, no mês em que se celebra o Dia Mundial da Saúde, refletem sobre a questão social das drogas.
Para ler a versão digital da Revista E e ficar por dentro de outros conteúdos exclusivos, acesse a nossa página no Portal do Sesc ou baixe grátis o app Sesc SP no seu celular! (download disponível para aparelhos Android ou IOS).
Siga a Revista E nas redes sociais:
Instagram / Facebook / Youtube
A seguir, leia a edição de abril na íntegra. Se preferir, baixe o PDF para levar a Revista E contigo para onde você quiser!
Utilizamos cookies essenciais para personalizar e aprimorar sua experiência neste site. Ao continuar navegando você concorda com estas condições, detalhadas na nossa Política de Cookies de acordo com a nossa Política de Privacidade.