Leia a edição de outubro/22 da Revista E na íntegra
Muitos brasis floresceram da imaginação pujante do romancista, dramaturgo e autor de telenovelas Dias Gomes (1922-1999). Povoados fantásticos, personagens cativantes e narrativas que versam sobre o país e sua gente formam parte do universo do criador baiano – e se distribuem em obras memoráveis do teatro, do rádio, do cinema e da televisão. Por mais de cinco décadas, a sociedade brasileira pôde se ver – e rir de si mesma – a partir do olhar do escritor, que não se furtava em retratar, a cada novo texto, as temáticas sensíveis, os problemas sociais e os desmandos governamentais que testemunhava. Abordagens que inseriram Dias Gomes para sempre no imaginário popular e o converteram em um dos símbolos da resistência artística à censura, especialmente nos anos de ditadura civil-militar (1964-1985).
Da primeira obra teatral – A Comédia dos Moralistas (1937), escrita aos 15 anos – ao auge de popularidade vivido durante a exibição da novela Roque Santeiro (1985), cuja trama foi baseada na peça O Berço do Herói (1963), também de sua autoria, Alfredo de Freitas Dias Gomes desempenhou um papel primordial entre os nomes que inovaram a dramaturgia no Brasil. “Com seus trabalhos e visão crítica sobre a nossa sociedade, política e religião, Dias expandiu a teledramaturgia nacional a um patamar nunca pensado antes dele. Foi por causa de nomes como o seu que intelectuais e academia passaram a respeitar as novelas como manifestação popular de qualidade”, aponta o escritor e crítico de TV Nilson Xavier. O impacto das obras do autor no gênero televisivo pode ser percebido ainda hoje. “A posição de Dias Gomes na TV brasileira é única, dada a sua importância e contribuição. Não vejo nenhum autor que tenha se equiparado a ele, mesmo quando foi copiado ou quando serviu de inspiração”, avalia Xavier.
Poucos dias antes de estrear no teatro profissional – em fevereiro de 1942, com a comédia Pé-de-Cabra – o escritor precisou lidar, pela primeira vez, com inúmeros cortes em seu texto original. As restrições foram realizadas à sua revelia, na ocasião, pelos censores do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) do Estado Novo (1937-1945). Considerado subversivo, o espetáculo foi encenado, finalmente, com dez páginas a menos. À frente da montagem, estava o consagrado ator e diretor Procópio Ferreira (1898-1979).
Era o início de uma parceria curta, encerrada, anos depois, por divergências político-ideológicas. Na época, levado pelo amigo e também dramaturgo Oduvaldo Vianna (1892-1972), Dias Gomes assumiu a função de redator na Rádio Panamericana, em São Paulo. Abraçou a tarefa com paixão, e escreveu centenas de adaptações de clássicos da literatura para programas de radioteatro. Passaria, ainda, por outras emissoras, como as rádios Tupi-Difusora e Bandeirantes. Teve vários romances publicados ao longo da década: Duas Sombras Apenas (1945); Um Amor e Sete Pecados (1946); A Dama da Noite (1947) e Quando é Amanhã (1948). E em 1991, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras (ABL).
Com o fim do Estado Novo, e filiado ao Partido Comunista, Dias Gomes passou a trabalhar, a partir de 1950, na Rádio Clube do Brasil, no Rio de Janeiro. No mesmo ano, casou-se com a escritora então iniciante Janete Clair (1925-1983). Foram 33 anos de união com aquela que se tornaria, a partir dos anos 1970, uma das maiores e mais respeitadas autoras de telenovelas do país, responsável por obras icônicas como Irmãos Coragem (1970), Selva de Pedra (1972) e Pecado Capital (1975).
Ao retornar de uma viagem à antiga União Soviética – integrando uma delegação de artistas e intelectuais brasileiros, entre eles o escritor Jorge Amado (1912-2001) –, Dias Gomes foi demitido da Rádio Clube. O ano era 1953 e ele estava, novamente, sentindo os efeitos da perseguição do governo do presidente Getúlio Vargas (1882-1954) aos seus opositores. Afastado dos palcos por quase dez anos, retornou com a peça Os Cinco Fugitivos do Juízo Final (1954). Em 1956, foi contratado pela prestigiosa Rádio Nacional, onde permaneceria até 1964.
Em 1962, assinou o roteiro do filme O Pagador de Promessas, adaptação para o cinema de sua peça de mesmo nome, publicada em 1959. Com direção de Anselmo Duarte (1920-2009), a obra recebeu a Palma de Ouro no Festival de Cannes, na França, e esteve entre os cinco finalistas que concorreram ao Oscar de filme estrangeiro naquele ano. No Brasil, contudo, teve a exibição proibida em todo o território nacional até 1972.
Depois do golpe militar, em 1964, foi cassado e, outra vez, desligado do emprego, pouco antes do período ditatorial vigorar. Porém, havia se voltado novamente aos palcos, aproximando-se do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) (Leia mais no boxe Auroras em cena).
Ainda na década de 1960, Dias Gomes publicou outras peças consideradas obras-primas da moderna dramaturgia brasileira: A Invasão (1962), A Revolução dos Beatos (1962), O Berço do Herói (1963) e Dr. Getúlio, Sua Vida, Sua Glória (1968) – esta última escrita a quatro mãos com o poeta Ferreira Gullar (1930-2016). O tom contestatório e combativo de seus trabalhos seguia firme, assim como os órgãos de censura, que não saíam de seu encalço. “Em todas essas fases, Dias Gomes se destacou pela enorme coerência entre a sua vivência, sua militância política e a sua dramaturgia, que nunca se apartaram”, afirma a escritora e pesquisadora em artes cênicas Adélia Nicolete.
A entrada na TV Globo, em 1969, já consagrado como dramaturgo, representou um desafio para o escritor, até então à vontade somente com as dinâmicas – e o ritmo – do teatro. Segundo o site do projeto Memória Globo, Walter Clark (1936-1997), ex-diretor-geral da emissora, sugeriu a Dias Gomes o pseudônimo de Stela Calderón. Somente assim pôde assinar a autoria de sua primeira novela, A Ponte dos Suspiros. No ano seguinte, escreveu a trama Verão Vermelho, de relativo sucesso.
Em 1975, adaptou sua peça O Berço do Herói para a televisão, com o nome de Roque Santeiro. Proibida de ir ao ar no dia de sua estreia – e com cerca de 40 capítulos já gravados – a censura da obra representou um episódio doloroso na carreira do dramaturgo. A novela seria liberada para exibição somente em 1985, com a volta da democracia, para se tornar um fenômeno cultural e uma das maiores audiências do gênero, valendo-se, principalmente, da sátira e do humor refinado para encantar o público.
“Dias Gomes foi o autor ideal para o projeto ‘Novelas das 10’ da TV Globo (entre 1970 e 1979), que privilegiava as experimentações e ousadias na dramaturgia da emissora”, analisa Nilson Xavier. “Suas novelas Bandeira Dois (1971-1972), O Bem-Amado (1973), O Espigão (1974) e Saramandaia (1976) traziam frescor nas abordagens, tanto em temas (como crítica política), quanto em perfis de personagens, bem como rompimentos de linguagem e narrativa (como o realismo fantástico, inédito até então em teledramaturgia), seguido, depois, por outros autores, como Aguinaldo Silva”, pontua o crítico de TV.
Tais diferenças de linguagens foram tema da entrevista de Dias Gomes à TV Educativa do Rio de Janeiro, em 1985. Nas palavras do escritor: “A televisão tem uma linguagem própria e você tem que buscá-la. Fui para a TV no pior período da ditadura, em 1969, com toda a violência da censura. Tive que conviver com isso, encontrar meios de dizer alguma coisa sem que a censura percebesse. É aí que o humor entra, como um mecanismo de disfarce; uma coisa dita com humor passava [pela censura] porque parecia uma brincadeira – mas era muito mais contundente do que se você dissesse [a mesma coisa] de forma séria”, comentou o dramaturgo. “O humor, neste caso, é a capa que você veste”, definiu.
(Por Manuela Ferreira)
Autor de uma das mais importantes obras do teatro brasileiro moderno, Dias Gomes possui um lugar único na consolidação da nova dramaturgia brasileira, iniciada com a montagem de Vestido de Noiva (1943), de Nelson Rodrigues (1912-1980). O processo de modernização ganha impulso a partir dos anos 1950, com a formação do Grupo de Teatro Experimental (GTE), de Alfredo Mesquita (1907-1986) e do Grupo Universitário de Teatro (GUT), de Décio de Almeida Prado (1917-2000), ambos instalados no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). “O TBC teve um papel muito importante ao trazer uma dramaturgia de fora para o país, e também porque nos trouxe o dramaturgo Jorge Andrade (1922-1984)”, detalha Adélia Nicolete, referindo-se ao autor da peça Os Ossos do Barão, um dos maiores sucessos do TBC.
Com o fechamento do TBC após o golpe militar de 1964, outras companhias se formaram e conquistaram relevância na cena teatral da época, como o Teatro Popular de Arte, de Maria Della Costa (1926-2015) e a Companhia Nydia Lícia-Sérgio Cardoso.
Em 1953, com a fundação do Teatro de Arena de São Paulo pelo ator e diretor José Renato (1926-2011), o movimento de renovação teatral recebe um novo fôlego, sobretudo com a introdução de encenações brasileiras. “Dias Gomes, Lauro César Muniz, Oduvaldo Vianna Filho, o Vianninha (1936-1974), Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006), Chico de Assis (1933-2015) e Renata Pallotini (1931-2021) não eram, necessariamente, um grupo. Mas cada um aliava a sua visão política e a sua militância na dramaturgia que faziam”, explica a pesquisadora.
São marcos deste período de modernização, ainda, as históricas montagens: Arena Conta Zumbi (1965) e Arena Conta Tiradentes (1967), escritas e dirigidas pelo dramaturgo Augusto Boal (1931-2009); o espetáculo O Rei da Vela (1967), publicado em 1933 por Oswald de Andrade (1890-1954) e levado aos palcos pelo Teatro Oficina, sob a direção de José Celso Martinez Corrêa; e as montagens musicais do Grupo Opinião, a exemplo de Se Correr o Bicho Pega, Se Ficar o Bicho Come (1966), de Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar.
Ao iniciar os trabalhos para a encenação da comédia O Bem-Amado Musicado, que fez temporada em agosto e setembro de 2022, no Sesc Santana, o diretor Ricardo Grasson se deparou, surpreso, com a atualidade da peça. “A Sucupira de Dias Gomes se funde com o Brasil de hoje, e nos vemos não dentro de uma obra de ficção, mas, sim, no cotidiano real de um país em que estão tentando subverter seus valores mais caros”, reflete Grasson. Na pele do prefeito desonesto Odorico Paraguaçu – um dos mais célebres personagens da dramaturgia brasileira – está o ator Cassio Scapin [Leia mais na seção Depoimento desta edição]. Na televisão, o personagem foi interpretado pelo ator Paulo Gracindo (1911-1955).
Sem fazer qualquer tipo de adaptação ou mudança ao texto original, o espetáculo insere um conjunto de canções à saga do governante que precisava de um defunto para inaugurar o novo cemitério da cidade. Coube ao cantor e compositor Zeca Baleiro e ao autor e diretor Newton Moreno a composição das letras e músicas, que abarcam ritmos como xote, bolero e repente. “As canções foram fundamentais para potencializar a história e confirmar a genialidade da obra. Dias tratava de assuntos como política, religião, misoginia e racismo de forma clara, lúcida e palatável, e isso fizemos questão de acentuar e fortalecer”, conta Grasson.
Para o diretor, a contribuição de Dias Gomes para a atual dramaturgia brasileira é perceptível através da maneira com a qual o autor enxergava e relatava a atualidade, o cotidiano do ser. “Ele era um homem essencialmente de teatro, mas que abriu portas para dezenas de novos autores e novas formas de contar histórias ao falar do Brasil e dos brasileiros, das suas tipicidades, cultura, influências musicais e pluralidade religiosa, por exemplo”, arremata.
A EDIÇÃO DE OUTUBRO/22 DA REVISTA E ESTÁ NO AR!
Neste mês, celebramos as ações solidárias organizadas pela sociedade civil para o combate à fome no país. Na reportagem “Alimentar a mudança”, divulgamos dados alarmantes sobre o cenário de insegurança alimentar no Brasil e indicamos iniciativas e projetos transformadores para enfrentar essa situação, como o Organicamente Rango, a Gastronomia Periférica e o Experimenta!
Além disso, a Revista E de outubro traz outros destaques: uma reportagem que destaca a força do jazz enquanto música afrodiaspórica, diversa e combativa; uma entrevista sobre música, literatura e sociedade com Adriana Calcanhotto; um depoimento de Cassio Scapin sobre a força da comédia e o despertar dos musicais brasileiros; um passeio visual pelas obras da exposição Desvairar 22, em cartaz no Sesc Pinheiros; um perfil de Dias Gomes (1922-1999), nome primordial da dramaturgia brasileira; um encontro com o coordenador da Agência Lupa Chico Marés, que fala sobre checagem de informações; um roteiro por 6 espaços que propõem atividades artísticas para aguçar a sensibilidade das crianças, em outubro; poemas inéditos do escritor Paulo Scott; e dois artigos que destacam a importância da educação midiática para o combate à desinformação.
Para ler a versão digital da Revista E e ficar por dentro de outros conteúdos exclusivos, acesse a nossa página no Portal do Sesc ou baixe grátis o app Sesc SP no seu celular! (download disponível para aparelhos Android ou IOS).
Siga a Revista E nas redes sociais:
Instagram / Facebook / Youtube
A seguir, leia a edição de OUTUBRO/22 na íntegra. Se preferir, baixe o PDF para levar a Revista E contigo para onde você quiser!
Utilizamos cookies essenciais para personalizar e aprimorar sua experiência neste site. Ao continuar navegando você concorda com estas condições, detalhadas na nossa Política de Cookies de acordo com a nossa Política de Privacidade.