Ao longo da história do país, intelectuais negros e negras vêm exercendo papel fundamental na produção de conhecimento, inspirando novas gerações
POR MARIA JÚLIA LLEDÓ
Leia a edição de MAIO/24 da Revista E na íntegra
Ao ter sua matrícula rejeitada pelos gestores da Faculdade de Direito do Largo do São Francisco, atual Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), na década de 1860, o abolicionista Luiz Gama (1830-1883) fez do conhecimento adquirido com sua persistência uma ferramenta para atuar na defesa jurídica de pessoas negras escravizadas. Cem anos depois, o geógrafo Milton Santos (1926-2001) também se interessaria pela formação acadêmica: entrou na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e fez doutorado em geografia pela universidade francesa de Strasbourg, tornando-se um pensador mundialmente reconhecido pelas suas ideias a respeito da globalização. Em 2020, a biomédica, doutora em patologia humana e pesquisadora brasileira Jaqueline Goes de Jesus coordenou a equipe responsável pelo sequenciamento do genoma do vírus SARS-CoV-2, 48 horas após a confirmação do primeiro caso de covid-19 no Brasil. Em diferentes tempos e contextos, mulheres e homens negros, nas áreas da saúde, física, direito, comunicação, letras e filosofia, entre outras, produziram e produzem conhecimento e sentidos de mundo para as próximas gerações.
“Meninas e meninos me falam em palestras de que participo: ‘Estou aqui porque você falou que eu podia’”, compartilha Sonia Guimarães, a primeira mulher negra doutora em física no Brasil, PhD na mesma área pela Universidade de Manchester (Reino Unido) e professora do Instituto de Tecnologia e Aeronáutica (ITA), desde 1993, quando o ITA ainda não aceitava mulheres entre seus alunos. Guimarães conta que atravessou a infância e a adolescência sem referências de professores ou cientistas negros.
Quando jovem, ela tinha apenas uma certeza: adorava matemática. Mas, depois de fazer um curso técnico de edificações no Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo, entrou em contato com outra área que definiria seu percurso: a física. No segundo ano da graduação na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), encantou-se pela física moderna. Nos anos 1970, ela aprendeu o que eram os semicondutores – materiais condutores ou isolantes de energia –, que viriam a revolucionar a tecnologia. “Hoje todos os dispositivos microeletrônicos no celular, na TV, no carro e até na máquina de lavar roupa têm um semicondutor fazendo alguma coisa fantástica”.
A partir daquele momento, os semicondutores tornaram-se objeto de pesquisa permanente na carreira da cientista. “Eu era a única mulher negra quando entrei na universidade. Éramos 1.500 estudantes. Atualmente, são cinco campi e 20 mil estudantes, dos quais 20%, negras e negros. De 1970 para cá, alguma coisa mudou. Existe uma luz no fim do túnel”, observa Sonia Guimarães, que também é membro da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN).
O jornalista e professor Dennis de Oliveira recorda que, na infância, seu ídolo não era um jornalista, um professor ou mesmo um cientista negro. Seu exemplo era o Pelé. “Não tinha muitas opções. Era o Pelé e acabou. Como eu tinha esse espelho, eu queria ser que nem o Pelé, jogar futebol. Esse era o imaginário dos meninos negros da minha época”, recorda. Nascido na periferia da cidade de São Paulo, Oliveira foi um dos três estudantes negros de um total de 85 da sua turma na Escola de Comunicações e Arte (ECA/USP), na década de 1980.
Depois de formado, enveredou pela carreira acadêmica. Fez mestrado e doutorado na mesma instituição, sempre dedicado à investigação de áreas como cultura, comunicação, movimentos sociais, relações étnico-raciais e teorias decoloniais. “O fato de chegar à USP e levar o debate racial de outra forma foi um desafio, assim como levantar esse debate, aproveitando das brechas que havia para se fazer isso. Embora ainda tenha muito que avançar, pelo menos hoje esse debate racial está acontecendo”, pondera Oliveira.
No caso de Bárbara Carine Soares Pinheiro, filósofa, escritora e professora do Instituto de Química da Universidade Federal da Bahia (UFBA), quando era estudante, poucos eram os rostos negros de colegas, tampouco o de um professor, mesmo considerando que sua formação tenha acontecido mais recentemente, nos anos 2000. Essa realidade perdurou por duas graduações, um mestrado e um doutorado. “A minha construção subjetiva enquanto cientista, intelectual, pesquisadora e escritora, se deu a partir de um espelho quebrado. Eu me tornei a intelectual que eu não vi. Terminei meu doutorado sem ter lido um autor negro na universidade, uma autora negra. Isso é muito cruel”, conta.
Com o tempo, Pinheiro lembra que seu repertório cultural e acadêmico foi se compondo por nomes como Abdias do Nascimento (1914-2011), Lélia Gonzalez (1935-1994), Milton Santos, Maria Beatriz Nascimento (1942-1995), entre outros intelectuais negros. A presença dessas referências negras no campo do conhecimento não se trata apenas de representatividade, mas de entendimento do que é ser humano, segundo Pinheiro que, por meio do perfil @uma_intelectual_diferentona, no Instagram, fala sobre letramento racial – conjunto de práticas pedagógicas que têm por objetivo conscientizar as pessoas sobre a estrutura e o funcionamento do racismo na sociedade.
Ao trazer perspectivas, narrativas e outras questões, esses pesquisadores buscam derrubar muros erguidos por uma visão eurocêntrica e, portanto, restrita do conhecimento. Doutora em psicologia pela Universidade de São Paulo (USP), Cida Bento definiu esse muro como “pacto da branquitude”, um acordo não verbalizado de autopreservação que atende a interesses de determinados grupos de pessoas, restringindo outras.
Quem também reflete sobre esse movimento é a educadora e filósofa Sueli Carneiro, que faz da sua produção intelectual um questionamento a esse modus operandi que ainda inferioriza intelectualmente as pessoas negras, tentando anulá-las como sujeitos de conhecimento. Esse pensamento, aliás, se consolida em sua tese de doutorado, defendida em 2005, e publicada sob o título Dispositivo de racialidade: a construção do outro como não ser como fundamento do ser (Zahar), em 2023.
Neste cenário, a descolonização da forma como pensamos o mundo é apontada como a principal ferramenta para o entrave à produção de conhecimento pela população negra, de acordo com Bárbara Carine Soares Pinheiro. Autora de Descolonizando saberes: Mulheres negras na ciência (Livraria da Física, 2020), a especialista explica que, no século 19, a emergência da Europa por sua expansão colonialista a consolidou como “dominadora de povos a partir da dominação de todas as esferas qualitativas humanas, inclusive a da produção de conhecimento”. Dessa forma, reflete a pesquisadora, “a construção da narrativa criada precisou se vincular com uma perspectiva historiográfica – não quer dizer, necessariamente, que a civilização grega quisesse ser a gênese da história, mas isso foi imputado a eles posteriormente, para a construção de um mundo eurocentrado”.
Por desconsiderar a existência e a produção de conhecimento de outras civilizações para além da grega, e mesmo de épocas anteriores, a História passa a ser questionada em diferentes campos do saber e problematizada por intelectuais negros nas ciências humanas, biológicas e exatas. Pensadores e pensadoras que crescem em número e que se tornam referências para uma geração que ocupa as universidades, neste século, a partir de ações afirmativas como a Lei de Cotas (2012). “As pessoas que entraram nas universidades querem falar sobre si, querem falar sobre suas dores, querem pesquisar suas questões. Essas temáticas passaram a estar mais em emergência na academia brasileira”, observa Pinheiro.
Para o professor Dennis de Oliveira, a presença de pesquisadores e professores negros nas universidades públicas encurta a distância entre os dilemas sociais e o pensamento produzido pela academia. “Com mais negros e negras, você populariza a universidade, democratiza o acesso e, também, aproxima os debates que ela realiza do que a gente precisa enquanto sociedade”.
Um resultado desse movimento, segundo Oliveira, é a Lei 10.639, de 2003, que estabeleceu a obrigatoriedade da inclusão da história e cultura afro-brasileira no currículo das escolas brasileiras. “O papel que educadores negros presentes nas universidades tiveram na construção dessa política pública foi fundamental. Além da questão da epistemologia, a presença negra na academia tem um lado prático: a argumentação de políticas públicas e a contaminação das bases institucionais”, destaca o professor, também autor de livros como Racismo Estrutural: uma perspectiva histórico-crítica (Dandara, 2021).
Depois de escrever um livro direcionado aos professores, Como ser um educador antirracista (Planeta, 2023), Bárbara Carine Soares Pinheiro acaba de lançar, pela mesma editora, Querido estudante negro. Nele, a autora compartilha momentos de sua vida como estudante. Como enredo, a troca de cartas entre dois jovens negros que vivem situações socioeconômicas distintas. No último capítulo, Pinheiro deixa um recado àqueles e àquelas que, assim como ela, enfrentaram facetas do racismo no campo da educação. “A gente não veio desse lugar de escravidão que nos foi dito. A gente veio de um lugar de pioneirismo ancestral e é esse espelho que a gente deve mirar para se construir no dia de hoje”, defende.
Aos 66 anos, Sonia Guimarães confirma que os desafios ainda são muitos. Hoje, quando lhe perguntam como ocupar o espaço que ela conquistou, responde: “Não desistam, porque não vai ser fácil”. Acompanhada sempre pelo bom humor, ela dispara: “Fiquem surdos quando vocês ouvirem: ‘Você não vai conseguir’; ‘Isso é muito difícil’; ‘Você conhece algum preto ou uma preta que faça isso?’. Talvez até não exista mesmo, ainda. Então, seja você o primeiro ou a primeira. Por que não?”.
Para Dennis de Oliveira, é notório o ganho de uma diversidade maior de professores e intelectuais negros e negras em diferentes campos de conhecimento. “Hoje você tem, por exemplo, o jurista Silvio de Almeida [ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania do Brasil], e daí você pensa: ‘Olha, eu posso ser jurista’; tem a Maju Coutinho, como jornalista. Isso vai despertando nas crianças negras outras possibilidades – ela pode ser o que ela quiser, ela não limita seu sonho”, destaca. Também é importante lembrar, acrescenta Oliveira, que essa realidade é fruto de vitórias coletivas. “É legal ter as conquistas pessoais, mas nunca esquecer o seu vínculo coletivo. Nós temos um compromisso com a nossa comunidade, com a nossa população.”
Se a presença desses pesquisadores e pesquisadoras impacta o ambiente universitário, para o educador Fabiano Maranhão, mestre em Educação pela Universidade Federal de São Carlos, o ambiente acadêmico se soma a tantos outros campos de saberes e, portanto, é mais um espaço de disputa de narrativas e de produção de conhecimento. “O reconhecimento da genialidade e visão de mundo das pessoas negras vem do saber da terra, das tradições religiosas, dos movimentos sociais. A universidade chancela, ecoa, visibiliza. Todavia, faz-se necessário reconhecer todo saber, toda ciência que os mestres e mestras tradicionais possuem”, conclui Maranhão, que também é técnico na área de diversidade cultural da Gerência de Estudos e Programas Sociais do Sesc São Paulo.
Espetáculos, rodas de conversa, vivências e outras atividades compõem o Festival Sesc Culturas Negras, realizado neste mês em 26 unidades do estado de SP
Dedicado à valorização, reconhecimento e difusão da cultura afro-diaspórica, o Festival Sesc Culturas Negras ocupa 26 unidades do Sesc no estado de São Paulo, de 22 a 26 de maio, com uma programação diversa que inclui apresentações, vivências, experimentações, rodas de conversa e outras atividades. As ações são marcadas pela pluralidade de formatos e participação de artistas, grupos, coletivos, lideranças comunitárias, mestres tradicionais, pesquisadoras e pesquisadores da arte e da cultura negra.
Em sua primeira edição, o festival parte da potencialidade como força motriz que busca evidenciar experiências em territórios de existência firmadas na ancestralidade, no encruzilhamento de possibilidades no qual passado, presente e futuro se atravessam, dialogam e se contaminam. “O Festival Sesc Culturas Negras vem neste lugar de reconhecimento, de exaltação de todo saber, de toda ciência, de toda filosofia, de toda ancestralidade viva e que sempre esteve aqui. É mais uma oportunidade para a gente aprender, se fortalecer e acelerar essa pavimentação em direção a uma sociedade menos desigual”, explica Fabiano Maranhão, técnico em diversidade cultural da Gerência de Estudos e Programas Sociais do Sesc São Paulo, e um dos curadores do projeto.
Confira destaques da programação:
PINHEIROS
Ilê Aiyê
O primeiro bloco afro do Brasil, conhecido como “O Mais Belo dos Belos”, Ilê Aiyê, completa seu cinquentenário e abre o Festival Sesc Culturas Negras. Dias 22 e 23/5, quarta e quinta, às 21h.
CENTRO DE PESQUISA E FORMAÇÃO
Nós por nós: Mídias Negras e comunicação antirracista
O bate-papo reúne comunicadores negros para discutir jornalismo antirracista. Com Ana Flávia Magalhães Pinto, Rosane Borges, Pedro Borges e Thais Bernardes.
Dia 23/5, quinta, às 16h.
Dia 24/5, sexta, às 15h30.
CASA VERDE
Prot{AGÔ}nistas – O movimento negro no picadeiro
25 artistas negros apresentam números de palhaçaria, tecido, trapézio, contorcionismo, perna de pau e dança acompanhados por músicas autorais. Dirigido por Ricardo Rodrigues.
Dia 24/5, sexta, às 13h. Dias 25 e 26/5, sábado e domingo, às 16h. GRÁTIS.
INTERLAGOS
Encontro de blocos afro de São Paulo
Os grupos paulistanos Zumbiido Afropercussivo e Ilu Inã se reúnem para um cortejo pela alameda do Sesc Interlagos, saudando e homenageando as culturas e tradições dos povos pretos.
Dia 25/5, sábado, das 14h às 16h. GRÁTIS.
Saiba mais em sescsp.org.br/culturasnegras
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