CONSCIENTE COLETIVO | Uma entrevista com Grace Passô

29/04/2024

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Dramaturga, diretora e atriz, Grace Passô inscreve, com vocabulário próprio, afetos, desigualdades e ancestralidade em produções para o teatro e o cinema

POR MARIA JÚLIA LLEDÓ

Leia a edição de MAIO/24 da Revista E na íntegra   

O teatro, para mim, tem muito a ver com o encontro, com as coisas que a nossa sociedade mais necessita no nosso tempo”, sintetiza a atriz e diretora Grace Passô. É uma frase que ecoa nas entrelinhas do mais recente espetáculo dirigido por ela, O fim é uma outra coisa, que passou pelo Sesc Avenida Paulista em abril. Ao celebrar o teatro como um espaço coletivo por princípio, a peça convida o espectador a fazer parte dessa comunidade, “comungando” de uma feijoada servida e preparada, em cena, pela atriz, pesquisadora e cozinheira Zora Santos. “Em nome da colher de pau, do louro e da cachaça…”, anuncia Santos, pouco antes de abrir a panela, combinando os saberes da culinária afro-mineira com histórias de muitas famílias negras brasileiras. 

Nascida em Belo Horizonte (MG), filha de mãe baiana e pai mineiro, Passô guarda na lembrança os causos que sua família original de Pirapora, interior de Minas Gerais, costumava contar às margens do Rio São Francisco. A única dos seis irmãos a nascer na capital mineira, formou-se em teatro em 1999, pelo Centro de Formação Artística da Fundação Clóvis Salgado, quando ainda não havia faculdades de artes cênicas na cidade. Ao longo de mais de duas décadas de carreira, foi premiada como dramaturga, diretora e atriz. É cofundadora do grupo Espanca!, com o qual passou a ser reconhecida nacionalmente pelo espetáculo Por Elise (2005), escrito e dirigido por ela, que também atuou na peça. Além de outras montagens com o grupo Espanca! – Amores Surdos (2006) e Marcha para Zenturo (2010) –, também trabalhou com outros grupos teatrais brasileiros.  

A artista também vem se destacando no cinema, e já recebeu prêmios por sua interpretação, a exemplo dos longas-metragens Praça Paris (2017), de Lucia Murat,  Temporada (2018) e O dia que te Conheci (2023), ambos de André Novais Oliveira. Depois de codirigir uma adaptação para o audiovisual da sua peça Vaga Carne (2020), Passô dirigiu seu primeiro filme no ano passado. Ainda em fase de montagem, Amores 1500 é uma “reescritura”, como ela mesma nomeia, da peça Amores Surdos. Rodado em Belo Horizonte, no Jardim da Inconfidência, bairro da zona periférica da cidade, o longa-metragem teve como locação a antiga casa da família da diretora. Neste Depoimento, Grace Passô fala sobre suas raízes ancestrais, além de refletir sobre inquietações e intencionalidades nas artes dos palcos e telas.  

oralidade 

As histórias da minha família vêm muito mais através da oralidade do que de registros fotográficos. Muitas das histórias de onde eu vim, ou de onde os meus antecedentes vieram, nascem de testemunhos cotidianos e vão sendo passadas. Então, elas vêm muito menos por documentos oficiais, por registros fotográficos, e muito mais pelo contato com o que se viveu e o que se viu. Eu tenho o repertório de uma família que é parte baiana, no caso da minha mãe, e parte mineira, pelo meu pai, que são territórios ricos em termos de história. Eu ouvia e imaginava muito, assim como meus irmãos, só que tive a alegria, a possibilidade e, sobretudo, o desejo de entender como misturar essas histórias no meu trabalho de uma forma efetiva. Existem histórias que se repetem nas família negras brasileiras, famílias de trabalhadores, da negritude brasileira. Para essa família, imaginar a sua própria história faz parte do nosso repertório de vida e de sobrevivência. No meu caso, essa imaginação se canaliza através das expressões artísticas. 

negritude 

Meu mergulho nas artes negras é simultâneo ao processo de conscientização de minha negritude. Eu não sabia tocar no repertório da negrura porque antes não sabia o que fazer com os efeitos do silenciamento na minha história e na história das comunidades negras da qual faço parte. Então, ao longo da minha trajetória artística, fui uma consistência e uma intencionalidade em relação a fazer uma arte negra. Assim como eu também fui construindo a minha identidade, essas coisas foram acontecendo simultaneamente. O teatro e outras coisas que faço em arte dizem muito da minha vida e do meu pensamento ao longo do tempo. Eu acho que o mais importante em relação a entender o teatro negro tem a ver com a intencionalidade. Até para que a gente tenha a dimensão do trabalho, pesquisa e elaboração do teatro negro, além da dimensão do que isso significa. É importante entender que não basta ser uma pessoa negra para fazer um teatro negro. Isso tem a ver com a maneira como as pessoas negras lidam politicamente, artisticamente e esteticamente com questões que cercam nossas comunidades.  

TEATRO É MINHA BASE, MINHA ESTRUTURA POLÍTICA NO SENTIDO QUE EU SEMPRE TIVE O TEATRO COMO AQUILO QUE JUNTA PESSOAS NUMA ESPÉCIE DE RITUAL, ONDE ESSAS PESSOAS CONSTROEM E COMPARTILHAM CÓDIGOS EM COMUM

Jerê Nunes

Michael Yuri, Natalia Lima, Zora Santos (centro), Rubi Assumpção e Renato Ihu formam o elenco do espetáculo O fim é uma outra coisa, dirigido por Grace Passô, em cartaz no Sesc Avenida Paulista em abril. Foto: Jerê Nunes

estereótipos 

Quando algumas pessoas falam, por exemplo, que não gostam de ser taxadas como “arte negra”, ou algo do tipo, eu acho que isso tem a ver com uma tentativa de escapar dessas armadilhas institucionais que colocam esses nomes em gavetas. Essas armadilhas dizem, por exemplo, que existe o teatro brasileiro e existe uma especificidade que se chama “teatro negro”. E, na verdade, essa armadilha só descortina o racismo nos circuitos artísticos brasileiros. Porque o teatro negro é teatro brasileiro. Ora, se a gente for cavucar ainda mais profundamente, não tem como a gente falar de teatro brasileiro sem falar das expressões negras. Mais importante do que discutir o que é, ou não, teatro negro, é entendê-lo como aquilo que revela uma brasilidade que deve nos interessar, por meio de histórias e expressões subjugadas por muito tempo. Esse teatro expressa a profundidade de nossa cultura e têm a potência de conversar com a sociedade em transformação. Me refiro à “sociedade em transformação” e às possibilidades  de hoje para agirmos contra alguns efeitos da colonização. 

diversidade 

Ao longo da minha carreira, fiz trabalhos de naturezas distintas. Hoje eles estão muito ligados a uma expressão evidentemente negra, mas isso também foi uma construção. Pensar o que é ser negro, pensar a negritude hoje no Brasil, é definitivamente indesviável. Não me interessa nenhuma discussão que não se interesse ou que não passe por isso, que não fale sobre a negritude, sobre os povos originários brasileiros, que não pense sobre formação desse país, que não reflita sobre o que é um “país”. Acho que num tempo em que esse tipo de reflexão é indesviável, como não se pensar um teatro negro. Como não querer tirá-lo da caixa fácil de diversidade? Sim, existe um conceito importantíssimo chamado “diversidade”, mas existe, também, um conforto capitalista de gerar pequeniníssimos espaços para essa diversidade ocupar. 

códigos  

Eu acho que quando se faz uma peça, a gente quer criar uma experiência. Sinto que, com o tempo, uma coisa que eu buscava lá no início da carreira, que eu ouvia muito de algumas pessoas com as quais eu trabalhei – e é uma coisa que eu continuo perseguindo –, é um pouco essa ideia de desvelar os códigos junto com o público. Me interessa muito pensar desde coisas muito simples, como quando ouvimos os três sinais e a gente sabe que [a peça] vai começar. Mas, às vezes, alguns códigos vão adormecendo as nossas expectativas com o tempo. A gente vai se relacionando com esses códigos como uma espécie de pensamento hegemônico. Então, para mim, tentar subverter alguns códigos, não só por subverter, mas para lembrar que existe sempre algo por trás, é mais importante do que esses acordos [oficiais]. Isso me interessa muito. No caso do espetáculo O fim é uma outra coisa, era nítido que, desde o início, eu teria que dialogar com a Zora Santos enquanto atriz e enquanto cozinheira. Eu teria que pensar no alimento enquanto memória e construção. Pensar a fome e a fartura, pensar a relação desse ato de alimentar com histórias que nos interessavam, e dentro dessas histórias, pensar a história do operariado e do povo negro brasileiro. Pensamos como entender isso numa certa interação com o público. E não existe interação mais evidente do que comer junto. Acho que [a peça] é uma espécie de meditação sobre o comer, sobre esse processo até que o alimento entre no nosso corpo. Sobre a história do alimento. 

cinema 

Reescrever para o cinema é uma possibilidade de pensar nos elementos cinematográficos dessas histórias [escritas originalmente para o teatro]. O filme Amores 1500 está agora em fase de montagem e é uma reescritura de Amores Surdos, texto que escrevi, em 2005, para o grupo Espanca!. Essa reescritura foi de uma alegria imensa porque, de alguma forma, tive a oportunidade de atualizar as questões que permearam a minha construção identitária nos últimos 20 anos. Por exemplo, minha construção de identidade como mulher negra se deu intencionalmente nos últimos anos com muito envolvimento em circuitos, criações etc. Foi como poder chegar mais perto de uma digital de escrita e ver os caminhos que estavam lá dentro e que ainda não tinham se desenvolvido. Foi a oportunidade de me ver no passado e ver quem me tornei. E, claro, entender o processo artístico como um pensamento de sociedade – ele não para, é contínuo. Não tenho dúvidas de que é um filme muito aguardado por quem viu a peça. É uma história muito bonita, porque é a história de uma família negra brasileira.  

presente 

Sou profundamente grata a essa expressão que se chama teatro. Porque através dessa arte, eu tive noções de comunidade e de política. O teatro é minha base, minha formação política, minha estrutura política no sentido que eu sempre tive o teatro como aquilo que junta pessoas numa espécie de ritual, onde essas pessoas constroem e compartilham códigos em comum. Então, para mim, o teatro tem essa força transformadora tanto para quem faz quanto para quem assiste. Você constrói uma ética, e a ética dos lugares de teatro pelos quais percorri me formaram, me fazem ser um ser político. É pensar na própria ideia de arte como algo essencial. Pensar, também, sobre os sistemas econômicos que nos regem, sobre afeto, sobre como conviver em grupo. O teatro, para mim, tem muito a ver com o encontro, com as coisas que a nossa sociedade mais necessita no nosso tempo. De modo geral, tem a ver com comunidade, militância, alegria, festa, revolução, corpo, saúde.   

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