Ao celebrar 80 anos, Danilo Santos de Miranda, diretor do Sesc São Paulo, relembra sua trajetória e reflete sobre como é adentrar a velhice produzindo futuro
Leia a edição de abril/23 da Revista E na íntegra
POR ANA PAULA SOUSA
FOTOS ADRIANA VICHI
No bairro do Belém, zona leste de São Paulo, a sala de Danilo Santos de Miranda, na Administração Central do Sesc, é a paisagem de seu pensamento. Nas amplas estantes, centenas de livros dividem espaço com uma diversa coleção de CDs e, entre uma lombada e outra, objetos de arte popular e pequenas recordações de viagens se deixam espiar. No chão, em um canto, repousa, discreto, um pôster do Fluminense – segundo ele, um presente. “Deixei ali meio escondido”, diz, confessando, com uma risada contida, a paixão não só pelo time, mas pelo futebol. “Adoro assistir, e joguei muito também.” Danilo recebeu a Revista E para uma conversa que tinha como mote principal os seus 80 anos de vida, completados no dia 24 de abril.
Todavia, falar sobre a vida é, para o diretor do Sesc São Paulo, falar sobre temas que, desde sempre, entrelaçam-se e se emaranham em suas reflexões e em sua prática cotidiana: a cultura, a educação e o país. “Educação e cultura são elementos vitais, são o que nos torna humanos”, repete, feito mantra, quando instado a expor as bases de sua ação institucional.
Nascido na cidade de Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro, Danilo cresceu entre os caminhos de paralelepípedos, as brincadeiras de rua, a música, a leitura e a igreja. Órfão de mãe desde os 7 anos, foi criado na casa dos avós – ela muito ligada à igreja e ele farmacêutico – e, na adolescência, foi estudar no seminário dos jesuítas, em Friburgo. Foi nesse seminário que teve início sua formação humanista. Foi, porém, vida afora que essa formação se aprofundou e se ramificou para novos saberes. Filósofo e sociólogo, Danilo Santos de Miranda compartilha, nesta Entrevista, avanços e desafios nessas últimas quatro décadas à frente do Sesc São Paulo, e destaca a importância das dimensões da cultura, da atividade física, do lazer e da educação não formal para redução das desigualdades no país.
Como esta é uma conversa motivada pelos seus 80 anos, acho que a primeira pergunta tem que ser sobre chegar aos 80 mantendo-se vigoroso e ativo.
Eu não tinha essa expectativa, até pela tradição familiar. Meu pai faleceu aos 67 e minha mãe morreu aos 31, quando eu tinha sete anos. Mas somos quatro irmãos, todos na faixa dos 80, e eles também estão bem, mais ou menos como eu, com algumas manifestações normais para esta altura da vida. A família, então, está longeva, o que é uma vitória. Do ponto de vista do acúmulo da experiência, me considero privilegiado. Tive uma infância muito ativa e feliz, uma formação razoavelmente sólida, e uma vida profissional também bastante variada. Minha vida foi sempre divertida. Tive momentos muito efusivos e tive, como todo mundo, momentos intensos e problemáticos, além de ter enfrentado dificuldades em função das minhas opções. E eu, sobretudo, acredito no futuro – pessoal e coletivo – e me coloco como alguém que, dentro do meu pedaço, batalho por um mundo melhor. Não pretendo fazer nada muito extraordinário do ponto de vista político, cultural ou social, mas, a partir das minhas experiências, espero colaborar para que a gente melhore as coisas para todo mundo.
E o percurso do Brasil nessas oito décadas, como você o vê? Que transformações foram mais marcantes?
Sou dos anos 1940, e vivi minha infância até meados da década de 1950, quando fui para o colégio interno e comecei a ter uma vida distante da família. De lá pra cá, seja no plano cultural, social, político ou econômico, o que eu vejo é uma diferença extraordinária. Parece que aquele mundo lá de trás é outro planeta, um lugar que ficou na imaginação das pessoas. E, para mim, o mundo de hoje tem algo do que imaginávamos. Seja no dia a dia, seja do ponto de vista das relações, a diferença é brutal. O telefone era uma coisa rara, a televisão colorida não existia e, hoje, falamos ao vivo com uma pessoa via computador. Quando eu era criança, diríamos: “Meu Deus, não tem o menor cabimento isso ser uma coisa que possa acontecer”. Na idade adulta, vivenciei esse crescimento exponencial da tecnologia. Passamos a viver mundos sobrepostos. E os avanços se deram em todos os sentidos, até mesmo no controle da vida. Minha mãe morreu de nefrite, uma doença da qual ninguém morre mais. Não havia antibiótico em quantidade suficiente no país. O Brasil era um país precário e, àquela altura, não tínhamos consciência, de fato, disso. Sabíamos dos problemas, mas sem a clareza que temos hoje em relação à desigualdade, à questão indígena ou à marca profunda deixada pela escravidão. Hoje, há maior consciência de que temos de ter essas questões como alvo, e isso se traduz em ações, tanto do ponto de vista pessoal quanto, no meu caso, do ponto de vista institucional. Tenho compromissos e um envolvimento com movimentos transformadores. Ainda temos, de toda forma, muita gente com pensamentos e ações não condizentes com essa necessidade de mudança. Vimos, há pouco, a divisão do país, que eu acredito ser, em grande parte, passageira. Mas, para quem já viveu 80 anos, é fácil dizer que agora é muito diferente do que era antes, e que nós avançamos, sim. Não apenas do ponto de vista daquilo que está à nossa disposição, mas do ponto de vista da qualidade de vida. Avançamos. A questão é que não avançamos para todos. Então, tem muita coisa para ser feita nesse país por esse motivo: os avanços precisam ser para todos. O país continua, de um lado, tendo o potencial que tinha antes, e é um país do presente. De outro lado, é um país de realizações a serem completadas, o que faz com que seja também um país do futuro.
Como a cultura pode contribuir para esse futuro?
Eu acredito firmemente que não deveria haver nenhuma discussão séria a respeito de planos profundos de governo sem a presença da cultura, para valer. A cultura é o conjunto de ações artísticas realizadas no país, que envolve muita gente, mas não só. Deveríamos assumir a cultura como fez, por exemplo, François Mitterrand (1916-1996) na França, com o ministro Jack Lang, que veio ao Brasil, e eu o conheci. Ele me disse: “Danilo, sou uma espécie de primeiro-ministro da cultura”. O que isso quer dizer? Que ele era chamado para qualquer discussão dentro do governo que tivesse algum tipo de relação com a cultura – fosse na área da justiça, na área militar, na área da educação, na área do trabalho. Ele inaugurou um estilo de administração da cultura que passava por um entendimento holístico, e não pela ideia de que o ministério deve cuidar de artista, provendo recursos para o artista. O fomento é importante, mas a cultura vai além do mundo das artes: ela cuida da inserção do ser humano no mundo.
Como se dá a prática da cultura no Sesc?
A cultura, no Sesc, é vista pela perspectiva do bem-estar, da busca por uma vida melhor – objetivo central de todas as instituições do Sistema S, que vem dos anos 1940. Os quatro Ss originais [Senai, Senac, Sesc, Sesi] tinham a intenção de contribuir para a formação profissional capaz de propiciar uma vida melhor, e de oferecer um programa de bem-estar para populações definidas, no caso, industriários e comerciários [hoje, o setor de comércio e serviços responde por 70% do Produto Interno Bruto brasileiro]. Essas instituições nascem com a perspectiva da educação permanente, e o Sesc, desde os primórdios, assumiu esse papel, especialmente no estado de São Paulo, onde está presente em várias cidades. E eu falo de São Paulo porque cada estado procura atender a necessidades e características próprias. O trabalho da instituição tem um tônus, uma direção, e é feito com muita seriedade. Essa sinceridade institucional é revelada, não é pregada.
Você tem essa missão desde 1984, quando assumiu a direção do Sesc São Paulo. A missão, entre outras, de trabalhar a cultura com a perspectiva da educação. Como se dá este entrelaçamento?
Metade da minha vida! Sim, acho que somos uma instituição educacional, que atua na educação não formal. A cultura – por meio de temas, modos de fazer e levantamento de pontos de vista positivos e negativos a respeito de qualquer situação – faz parte de um processo educacional. A educação formal é parte do processo cultural, e a educação não formal é permanente. Estamos sendo educados desde o momento do primeiro choro, no colo da mãe, do reconhecimento da voz… Por quê? Porque se transmite assim um modo de fazer ou de ser – e isso difere de uma cultura para outra. Temos, na vida, um tempo da educação formal, organizada por intermédio da escola, mas, depois dela, permanece – ou deveria permanecer – a perspectiva da informação e do conhecimento. Sabemos haver médicos que, depois de formados, nunca mais abrem um livro na vida, não veem um espetáculo. A vida se torna, assim, unidirecional. São, às vezes, pessoas brilhantes, mas a quem falta a inserção no mundo da educação não formal, da cultura propriamente dita.
Antes, você falou das mudanças pelas quais o mundo passou e sobre a presença da tecnologia, que alterou a forma de nos relacionarmos e o próprio conceito de bem-estar. Como isso foi alterando a cara do Sesc?
A instituição vai mudando e atendendo a perspectivas imediatas e não imediatas, ao mesmo tempo em que há coisas que têm uma permanência. Melhorar, por exemplo, o nível de conhecimento das pessoas frente ao mundo à sua volta é uma missão permanente. A questão da diversidade e a questão LGBTQIA+, a gente já discute há algum tempo. Nós não nos antecipamos com “a intenção de…”. É algo natural. Dou outro exemplo: o foco na terceira idade, no idoso. Nos anos 1960, ninguém no Brasil fazia nada nesse sentido e o Sesc começou esse trabalho em 1963, buscando especialistas no mundo inteiro, fazendo debates, seminários, e criando tecnologia social para isso. Ao longo do tempo, praticamente todas as unidades do Sesc no Brasil, além de outras instituições, assumiram o trabalho com o idoso. Isso também vale para os programas de férias. O Sesc foi a primeira instituição a implantar um programa de férias organizadas, que chamávamos de “colônia”, termo hoje inadequado. Eu citaria mais dez modelos de ações que foram iniciadas no Sesc e que se tornaram políticas públicas. Ações que ganharam uma dimensão para além da instituição. A própria questão do lazer, do tempo livre, como um momento importante na vida do ser humano, e a questão do aproveitamento de espaços amplos para atuação cultural – caso do Sesc Pompeia, a primeira fábrica transformada em centro cultural no Brasil.
Você já era diretor quando o Sesc Pompeia foi inaugurado?
Ele foi inaugurado dois anos antes, mas eu acompanhei bem de perto. Minha relação com o Sesc Pompeia foi uma das razões para eu ter me tornado diretor. Eu era um frequentador assíduo dessa unidade, das famosas gafieiras do Paulo Moura (1932-2010), que levava a orquestra do Severino Araújo (1917-2012), a Orquestra Tabajara. Teve Tim Maia (1942-1998), Jorge Ben Jor… Era um lugar absolutamente inovador. Eu trabalhava, então, no Senac, mas o presidente [da Federação do Comércio no Estado de São Paulo, Abram Szajman] soube dessa minha forte ligação com o Sesc Pompeia, e de todo o meu compromisso e interesse com essa ação cultural mais ampla em prol da sociedade, e me perguntou se eu não queria assumir o Sesc de uma vez. Então, olha só, graças ao Sesc Pompeia, virei diretor do Sesc São Paulo [risos].
Você é uma referência muito forte no meio cultural e, por essa história, a gente descobre que foi também pela relação com a cultura que você chegou ao Sesc. Como é, do ponto de vista da gestão, lidar com as outras áreas da instituição, as práticas físico-esportivas, a alimentação, a odontologia e o convívio social?
Naquele momento, eu já tinha isso muito presente. Para mim, o Sesc era, visualmente, uma grande estrutura voltada para o esporte, com ginásio, piscina etc., e uma grande estrutura voltada para cultura, com espaços para exposição, teatro e outras ações. E, para que isso funcionasse, tinha que ter um restaurante onde as pessoas pudessem se alimentar. Então o Sesc, para mim, no início, era o lugar do bem-estar; o lugar para uma vida que, para muita gente, não seria acessível se não fosse aquela instituição. Só um frequentador de clubes tem uma parte disso. Um frequentador de eventos da área cultural, tem outra parte. Mas, ter isso em um amplo espaço acessível e com uma curadoria? O Sesc tem essa peculiaridade: a mistura de tribos. Fico alegre quando vejo os esportistas se interessarem pela exposição e os “culturetes” se interessarem por alguma atividade física. Para mim, isso é fundamental. E mesmo que não houvesse esse intercâmbio, a convivência deles já seria algo importante. No Sesc Pompeia, naquelas mesas grandes, você vê o cara da atividade física com seu uniforme, tênis e roupa de ginástica sentado do lado de alguém que está ali com um monte de livros, conversando. Do ponto de vista físico, isso sempre foi o Sesc na minha cabeça. Do ponto de vista de conteúdo, está tudo junto. É claro que, conceitualmente, existe uma coisa que é a atividade física e outra coisa que é a atividade intelectual e a atividade cultural. Mas, no fundo, no fundo, proporcionar um programa em que essas ações estejam juntas faz parte desse todo que o ser humano necessita para uma vida saudável. Para mim, essa é a questão central. Tudo se juntou em um vasto e amplo programa de bem-estar social que eu passei a traduzir como qualidade de vida. Uma vida melhor para todos: criança, jovem, adulto, velho, mais velho – agora estamos falando já da quarta idade. Quem é a quarta idade? Aqueles necessitados de apoio, de cuidado, que pode ser pequeno, médio ou grande. Os nossos espaços, todos, têm tido cada vez mais o cuidado com a acessibilidade, em função dessa realidade.
Como se sente diante desse legado e como é entrar na quarta idade produzindo e pensando o futuro?
Antigamente, terceira idade significava parar, mas o Sesc, desde os anos 1960, trabalha com a ideia presente de que estamos construindo um futuro também para o idoso. Então, eu tenho isso muito presente. Essa é a primeira coisa. A segunda coisa é que eu, particularmente, pela minha formação, pelos meus interesses acumulados e pela minha família que tanto me apoia e me dá suporte [a esposa, Cléo, as duas filhas, Camila e Talita, e os quatro netos], tenho uma vida bastante intensa também. Então, isso me coloca na situação de alguém que tem muito o que fazer ainda. Participo de muitos conselhos de instituições culturais de São Paulo. Tenho, enfim, também uma vida fora do Sesc. Sou, além disso, interessado em muitos temas e sou um devedor com a leitura, os filmes e até mesmo com a música. Por quê? Porque tenho uma gana de consumir tudo isso de maneira adequada. Tenho uma pilha de livros lá em casa e estou interessado em ler todos.
E o futuro do país? Como você o projeta?
A desigualdade terá menor incidência e a educação terá um papel maior. Mas o país do presente tem que dar conta do que está aí. Existe uma população que enfrenta grandes dificuldades, e que agora está sendo mais considerada. Não quer dizer que vai ser tudo resolvido. Quer dizer apenas que o assunto está de novo sobre a mesa. Nós temos uma parte da nossa população, do nosso estilo de vida, que não é exatamente cordial – o Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) que me desculpe –, mas que tem, no dia a dia, uma certa empatia na relação com os outros. É claro que seria um exagero achar que todo mundo é assim, mas temos certa cordialidade presente. Por outro lado, temos um aspecto muito negativo, que é o fato de não percebermos a nossa desigualdade, especialmente a nossa questão racial. Temos o racismo estrutural embutido. Fomos culturalmente educados para isso. O país é o único, no mundo, a ter vivido quase quatro séculos de escravidão. Nossa escravidão foi mais profunda e mais radical que a de outros lugares. Então, nossa cordialidade se desfaz completamente quando se leva isso em consideração. Ao mesmo tempo, do ponto de vista econômico e social, nós fomos “condenados” ao desenvolvimento. A ideia do desenvolvimento tornou-se uma espécie de perspectiva inabalável e inevitável. É claro que a economia tem seu papel, mas, na minha opinião, ela é supervalorizada no sentido da acumulação e da crença em que tudo será resolvido, simplesmente, pela geração de renda pelo trabalho. Grana. Dinheiro. Venda. E não é por aí. Temos, portanto, essa condição dupla, de uma certa alegria e diversidade, mas também de uma desigualdade inaceitável. O Brasil tem condições de melhorar as coisas para o futuro, mas tudo isso envolve política, sim, envolve economia, sim, mas envolve, sobretudo, a cultura e o convencimento a respeito de quem nós somos. E que papel temos nós – os brasileiros comuns – nisso? Temos que colaborar na nossa atividade, no nosso dia a dia. Eu, pessoalmente, tenho o privilégio e a responsabilidade de atuar no nível pessoal e de colaborar no nível institucional para, quem sabe, alcançarmos um futuro menos desigual.
Assista ao vídeo com trechos da entrevista com Danilo Santos de Miranda:
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