Como podemos agir para que o alimento que produzimos e colocamos no prato AJUDE A alcanÇAR os Objetivos dE Desenvolvimento Sustentável da ONU
Por Luna D’Alama
Leia a edição de OUTUBRO/23 da Revista E na íntegra
A palavra cultura, do latim colere (colher, cuidar, cultivar), tem em sua raiz etimológica tanto um significado associado à agricultura quanto à rede de valores, ideias e tradições humanas. Essa dimensão do cuidado também esteve na base do pensamento da Organização das Nações Unidas (ONU) quando a entidade propôs aos principais líderes mundiais, em 2015, um plano de ação global conhecido como Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).
Essa agenda de compromissos assumida por 193 países para melhorar a vida no planeta inclui desafios de grandes proporções, como o fim da pobreza extrema e da fome, a redução das desigualdades sociais e a promoção da saúde e do bem-estar para todos. Além disso, os ODS projetam a garantia de uma educação de qualidade, igualdade entre os gêneros, trabalho digno, cidades sustentáveis, ações contra mudanças climáticas, consumo e produção responsáveis, paz, justiça e instituições eficazes – entre outros enormes desafios.
Ao todo, a ONU estabeleceu 17 ODS, com 169 metas associadas. E os sistemas agroalimentares – ou seja, o processo que envolve desde o acesso à terra e aos meios de produção até o transporte, comercialização, preparo, consumo e descarte dos alimentos – têm um papel fundamental para o alcance desse conjunto de propósitos firmados pelos países signatários (entre eles, o Brasil). À primeira vista, a alimentação parece estar mais intimamente ligada a objetivos como a erradicação da pobreza e da fome, a preservação da vida terrestre e aquática, e um consumo e produção mais conscientes. No entanto, especialistas reforçam que os sistemas agroalimentares atravessam todos os ODS, como um tema transversal.
“Esses fenômenos já foram vistos de forma separada, mas hoje entendemos que está tudo interligado. A saúde humana, por exemplo, está conectada aos sistemas agroalimentares, a fatores socioeconômicos e políticos, e à forma como as sociedades resolvem suas questões de sobrevivência”, explica a nutricionista Rosa Wanda Diez Garcia, doutora em psicologia social pela Universidade de São Paulo (USP) e professora aposentada do curso de Nutrição e Metabolismo da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da USP. Segundo Garcia, no contexto contemporâneo, os interesses econômicos relacionados aos alimentos se sobrepõem à valorização da saúde das pessoas e do planeta.
“Precisamos de uma importante mudança de paradigma, que passe pela forma como cultivamos a terra, pelas políticas públicas e investimentos que sustentam os trabalhadores no campo, pela preservação e pelo escoamento dos alimentos para as regiões urbanas, e por tudo aquilo que ingerimos, de fato”, aponta a professora aposentada da USP. De acordo com Garcia, a dieta humana no Antropoceno (era geológica em que vivemos, caracterizada pelos altos impactos do homem na Terra) deveria ser baseada menos em carne (sobretudo vermelha) e mais no consumo de frutas, legumes, verduras, oleaginosas e grãos integrais. A especialista e outros estudiosos do tema recomendam, ainda, uma redução no consumo de sal, açúcar, farináceos (pães, massas, arroz e batatas), laticínios e ovos.
A nutricionista reconhece que hoje existe, no mundo inteiro, um movimento crescente da agricultura familiar, agroecológica e orgânica, para combater o uso extensivo de agrotóxicos e diversificar os cultivos. Mas, na opinião dela, essas ainda são “células borbulhantes” que precisam ser reconhecidas e incentivadas pelos governos. No Brasil, o último Censo Agropecuário feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2017, revela que apenas 23% dos estabelecimentos agropecuários do país têm estrutura familiar, ao passo que essa é a base da economia em 90% dos municípios com até 20 mil habitantes. Esse sistema empregava, há seis anos, 10 milhões de pessoas, quase metade delas no Nordeste (Pernambuco e Ceará lideram o ranking). Os pequenos eram responsáveis por 48% da produção de café e banana, 80% da de mandioca, 69% da de abacaxi e 42% da de feijão.
Garcia acrescenta que, para termos uma alimentação adequada e saudável, é preciso mexer na cadeia inteira, rever as macroestruturas. “Alimento não é só o que as pessoas colocam para dentro do corpo e obtêm em termos de nutrientes. Comer é um ato que transcende o biológico, impactando a todos e o entorno em que vivemos. Devemos repensar o tempo que dedicamos para cozinhar, comer e trabalhar. O macro afeta o micro, e vice-versa”, destaca. De acordo com Garcia, para isso é necessário modificar a visão da comida como algo trabalhoso de ser preparado e da culinária como mais uma tarefa da sobrecarga feminina. “A alimentação tem que envolver a família toda, não pode ser função de um indivíduo ou de um gênero, mas de um grupo de pessoas, pois ela favorece a socialização”, avalia.
Para o alcance, até 2030, dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, especialistas também trabalham com o conceito de “sindemia global”. Formulado pela primeira vez em 2019, num relatório da revista científica britânica The Lancet, esse termo significa que vivenciamos, ao mesmo tempo, três cenários decorrentes dos sistemas agroalimentares e de outros fatores sociais em comum: as pandemias de obesidade e de desnutrição e as mudanças climáticas. Pesquisadores apontam que, apesar de parecerem contraditórios, quadros extremos de obesidade e de desnutrição estão intimamente ligados à pobreza e podem aparecer em um mesmo núcleo familiar, pois os fatores que os geram são semelhantes – apenas expressos de formas diferentes.
Segundo o cientista político italiano Fulvio Iermano, que vive no Brasil há 15 anos, um paradigma da agricultura convencional é garantir quantidade de alimentos, mas não qualidade e biodiversidade. Isso acaba gerando um cenário em que quase 10% da população mundial está desnutrida e cerca de 40% têm sobrepeso ou obesidade. “No Brasil, nosso sistema agroalimentar se baseia, há pelo menos meio século, em monoculturas de soja, milho, algodão e cana-de-açúcar. É um sistema extremamente mecanizado, de commodities (mercadorias não industrializadas), voltado principalmente à exportação, à ração animal e à manutenção do sistema carne-leite. Milhões de pessoas se concentraram nas grandes cidades, faltam cinturões verdes, e fica difícil produzir para tanta gente aglomerada, longe do campo”, afirma Iermano, especialista em segurança alimentar e nutricional pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), membro do Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional (Comsean) de Ribeirão Preto (SP) e coordenador do projeto Composta Trailer, que atua em quatro escolas de Batatais (SP), com crianças de 4 a 10 anos, para promover e ensinar compostagem de resíduos alimentares.
Todos os fatores citados pelo cientista político favorecem, segundo sua análise, a indústria alimentícia, o consumo de alimentos ultraprocessados, calóricos e pouco nutritivos, além de secas prolongadas, desertificação e recordes de calor. “Os eventos climáticos se superam a cada ciclo. Em relação aos produtos ultraprocessados, são mais baratos, acessíveis às populações de baixa renda e em situação de vulnerabilidade social. Essas pessoas acabam reféns desse sistema, sem poder econômico para fazer escolhas melhores e mais conscientes”, analisa. De acordo com estudos médicos recentes, o alto consumo de ultraprocessados aumenta os riscos de obesidade, câncer, diabetes e doenças cardiovasculares.
Mesmo quem tem o privilégio de tomar decisões por conta própria pode se tornar vítima do bombardeio de propagandas que o mercado faz na mídia, alerta o especialista. “Nesse sistema, frutas e vegetais se tornam mais caros, a indústria faz lobbies, encontra brechas, muda leis. O resultado é o que vemos nas grandes metrópoles, principalmente nas áreas periféricas: altos índices de obesidade e desnutrição. Devemos rever os sistemas agroalimentares dominantes, que afetam nossos territórios e culturas alimentares, e fazer uma transição agroecológica”, complementa Iermano, que vai participar, no dia 28/10, ao lado de Rosa Wanda Garcia, de uma roda de conversa sobre o tema no Sesc São José dos Campos, durante o Experimenta! – Comida, Saúde e Cultura.
Os relatórios mais recentes da ONU sobre os ODS apontam que o mundo progride de forma irregular e insuficiente para alcançar vários dos objetivos propostos, como a saúde (sobretudo materna e infantil), o acesso à eletricidade e a participação feminina nos governos. Além disso, por conta de fatores como a pandemia de Covid-19, entre 2020 e 2022, houve um aumento da pobreza, da fome, da insegurança alimentar e das desigualdades sociais em todo o mundo. No Brasil, a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan) identificou, ano passado, que 125,2 milhões de pessoas no país enfrentam algum tipo de insegurança alimentar diária, das quais 33,1 milhões passam fome.
A nutricionista Aline Martins de Carvalho, doutora em nutrição em saúde pública pela Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, defende que, para o planeta ter uma alimentação adequada e saudável, é preciso existir paz entre os países, instituições fortes, acordos multilaterais e soberania alimentar. “Os sistemas agroalimentares têm que produzir comida em quantidade e qualidade viável para toda a população. Devemos valorizar sistemas que respeitem integralmente a cadeia de produção, além de incentivar ações individuais, coletivas e políticas”, ressalta Carvalho, que coordena o núcleo de pesquisa e extensão Sustentarea, da FSP-USP.
Além disso, a especialista destaca a importância de refletirmos sobre critérios como: De onde vêm os alimentos que consumimos? Quem os produziu? Onde e de que forma isso ocorreu? “Comprar de produtores locais, ou mesmo manter uma horta urbana, aumenta a nossa proximidade e conexão com a comida, e a conscientização evita desperdícios. Um pé de alface, por exemplo, pode levar até três meses para crescer e ser colhido, além de demandar muita água no cultivo. Ao entendermos isso, repensamos nossas atitudes na hora de descartar uma simples folha”, pondera. Sobre o consumo de carne no Brasil, Carvalho diz que é algo muito cultural, pois os churrascos se tornaram verdadeiras festas e encontros sociais. “Nossa população é muito carnívora, mas precisamos reduzir essa quantidade. Pela metade já seria um bom começo. O Sustentarea iniciou sua atuação incentivando a segunda-feira sem carne, para irmos devagar, de forma pequena e factível. O ideal é que, aos poucos, mudemos nosso paladar e troquemos as proteínas animais por vegetais”, propõe.
Para o alcance dos 17 ODS nos próximos sete anos, o cientista político Fulvio Iermano aposta em saídas como o investimento em conhecimentos ancestrais (indígenas e quilombolas) e o foco na saúde coletiva. “Também é papel do Estado garantir o direito humano à alimentação, está na nossa Constituição. E precisamos de uma maior biodiversidade, pois o mundo é mais belo e saudável quando incentivamos a diversidade na natureza e nas pessoas”, afirma. Na visão da nutricionista Rosa Wanda Diez Garcia, por sua vez, não adianta comermos uma fruta correndo, ou na frente de uma tela. “Necessitamos de uma cultura alimentar voltada ao (auto)cuidado. Nosso corpo é nossa casa, o planeta também. Promover uma alimentação mais saudável é responsabilidade de todos, e são necessárias mudanças culturais e de comportamento. Cada um tem que fazer a sua parte”, finaliza. Assim, segundo Garcia, será possível chegar a 2050 tendo comida para 10 bilhões de pessoas, sem causar um colapso de geração de lixo nem esgotar os recursos terrestres.
De 16 a 29 de outubro, unidades do Sesc São Paulo promovem 7ª edição do Experimenta! – Comida, Saúde e Cultura, que incentiva alimentação saudável
Em 16 de outubro, é celebrado o Dia Mundial da Alimentação, data que há 42 anos busca conscientizar sobre a importância da segurança alimentar e de uma alimentação adequada, saudável e sustentável para todos. Esse também é o dia de fundação da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), criada em 1945 e ancorada em quatro pilares fundamentais: melhor nutrição, melhor produção, melhor ambiente e melhor qualidade de vida.
Nesse contexto, o Sesc São Paulo realiza, de 16 a 29 de outubro, a sétima edição do Experimenta! – Comida, Saúde e Cultura, que discute os hábitos alimentares e a reflete sobre suas consequências. Participam da programação chefs de cozinha, nutricionistas, biólogos, historiadores, produtores agrícolas e especialistas com diversas formações na área, que propõem mais de 120 atividades gratuitas, como oficinas, bate-papos e vivência em feiras, entre outras.
“O Experimenta! – Comida, Saúde e Cultura convida todas as pessoas a refletirem sobre as múltiplas e transversais dimensões da alimentação, abordando aspectos culturais, sociais, econômicos, ambientais e de saúde ligados aos sistemas alimentares, com o objetivo de promover uma alimentação adequada e saudável e a autonomia dos indivíduos no momento de suas escolhas”, destaca Mariana Meirelles Ruocco, gerente da Gerência de Alimentação e Segurança Alimentar do Sesc São Paulo. Ruocco lembra, ainda, que para além do Experimenta!, a instituição mantém ações educativas sobre alimentação ao longo do ano e para todos os públicos.
Confira alguns destaques da programação:
AVENIDA PAULISTA
Comida política: agroecologia e orgânicos contra o domínio dos ultraprocessados
Conversa entre a Cooperativa Terra e Liberdade e o nutricionista José Carlos, sob mediação da equipe da iniciativa jornalística O Joio e o Trigo.
Dia 18/10, quarta, às 19h. GRÁTIS.
24 DE MAIO
Fome de Brasil – Ruth Guimarães e os saberes originários
Palestra e degustação com a nutricionista Rafaela Vianna, o chef Vitor Pompeu e a jornalista Mariana Bastos.
Dias 19 e 26/10, quintas, às 19h30. GRÁTIS (retirada de ingressos 30 minutos antes).
CAMPO LIMPO
Mulheres e cozinhas potentes
Conversa sobre o uso de alimentos de origem orgânica e agroecológica com as chefs Tia Nice e Marlene Pereira.
Dia 21/10, sábado, às 15h. GRÁTIS.
CARMO
Experimenta cozinhar: memórias e cultura alimentar
O chef Rodrigo Oliveira e a historiadora Adriana Salay conduzem uma oficina seguida de degustação.
Dia 23/10, segunda, às 18h. GRÁTIS (retirada de ingressos 1 hora antes).
IPIRANGA
Os alimentos e a história da cozinha afrodiaspórica
Com a pesquisadora Patty Durães e o produtor em cultura alimentar Felipe Ribenboim.
Dia 29/10, domingo, às 15h. GRÁTIS.
Programação completa: sescsp.org.br/experimenta
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