CULTURA NA AGENDA | Entrevista com o gestor cultural Manuel Gama

01/05/2023

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Para Manuel Gama, pesquisador e gestor cultural português, produzir cultura é essencial para o desenvolvimento sustentável do planeta

Por Maria Júlia Lledó  
FOTOS ADRIANA VICHI

Leia a edição de maio/23 da Revista E na íntegra

Diante de um cenário em que ferramentas de inteligência artificial executam complexas tarefas humanas em segundos, e sem precedente na história, há de se questionar as consequência de delegar a robôs a criação de obras intelectuais e artísticas, como livros, músicas e produções de artes visuais. Em debate no mundo todo, a preocupação de ver a IA ocupar distopicamente o lugar da criatividade humana na produção cultural. No entanto, a sociedade aprendeu, ao longo dos séculos, a incorporar os avanços tecnológicos – fotografia, cinema, computador, internet – para a preservação e valorização da diversidade cultural e artística.

Compreendida como um conjunto de modos de vida, valores, tradições e manifestações artísticas, segundo definição da Unesco, a cultura fornece ferramentas para pensar e agir quanto ao uso de novas tecnologias em favor da humanidade. E, dessa forma, contribuir, direta ou indiretamente, para o cumprimento dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 – documento assinado pelos 193 países que integram a Organização das Nações Unidas (ONU), entre eles o Brasil. Trabalho decente e crescimento econômico; Redução das desigualdades; Cidades seguras e sustentáveis; Promoção da igualdade de gênero; Saúde e bem-estar. Estes são alguns dos ODS atravessados pelo fomento à cultura.

Para o pesquisador Manuel Gama, coordenador do Observatório de Políticas de Ciência, Comunicação e Cultura na Universidade do Minho, em Portugal, a cultura é fundamental para o cumprimento da Agenda 2030 da ONU. Em entrevista à Revista E, durante a realização do curso Cultura e a Agenda 2030: contributos para a década da ação, realizado em março, no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo, Gama refletiu sobre democracia cultural, domínio de novas tecnologias e letramento digital frente às inovações que batem à porta.

De que forma a cultura pode se apropriar da Agenda 2030?

Temos que perceber do que estamos a falar quando falamos em cultura. Muitas vezes pensa-se numa dimensão estética, única e exclusivamente. E pensar em cultura é pensar muito mais do que isso. Se olharmos para a definição de cultura da Unesco, está lá muito claro que pensar em cultura é, por exemplo, pensar nos modos de vida de uma sociedade. Portanto, para a gente pensar no desenvolvimento sustentável de um território, tem que se pensar em cultura. A grande questão, quando olhamos para a Agenda 2030, é que há alguma dificuldade quando não se tem esta visão abrangente de identificar os fazedores de cultura e a presença da cultura, porque a cultura não aparece em nenhum dos três pilares da Agenda, que são: o econômico, o ambiental e o social. A cultura também não aparece explicitamente em nenhum dos 17 ODS e muito pouco nas 169 metas. Olhando para mais de duas centenas de indicadores da Agenda 2030, isso é dramático. Mesmo o próprio indicador da meta 11.4, que fala do patrimônio cultural, a forma como é medido é econômica, e a cultura é muito mais que uma vertente econômica. A cultura é fundamental para o cumprimento da Agenda 2030. Então, o que temos que fazer? Temos que fazer com que os fazedores de cultura percebam que este documento também é deles, e que para o lema da agenda possa se cumprir – “Ninguém pode ser deixado para trás” –, que consigam pensar em projetos culturais nos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. O ODS 1, por exemplo, [Erradicação da pobreza] eu pergunto: como é possível cumprir se não fizermos um fortíssimo investimento na dimensão cultural? Na dimensão ética e ontológica da cultura? Se não fizermos esse investimento, não conseguiremos mudar hábitos alimentares e promover uma agricultura sustentável como prevê o ODS 2, por exemplo, ou não poderemos promover a saúde e o bem-estar, como quer o ODS 3. Ou seja, a cultura é fundamental para o cumprimento dos ODS, com este pensamento que os fazedores de cultura devem olhar para ela.

Em suas falas, você defende a importância dos projetos culturais atravessarem outros ODS, para além do ODS 4, que se refere à educação de qualidade. Por quê?

Nos levantamentos que fizemos no Brasil e em Portugal, percebe-se que o setor da cultura muitas vezes se relaciona com o ODS 4, porque a relação cultura/educação é umbilical. Nós não podemos trabalhar a questão cultural sem ter o componente da educação, e na educação. Há aqui uma relação que não deve ser menosprezada. Contudo, é evidente que o ODS 4 tem metas que são importantes e explícitas da cultura, até mais do que o ODS 11 [Cidades e comunidades sustentáveis]. A meta 4.7, por exemplo, fala da importância da cultura e de valorizar a diversidade cultural, mas há outros ODS e outras metas que também falam da questão da cultura: como a meta 12.b, que refere explicitamente a relação do turismo sustentável com a promoção da cultura local. Ou seja, não podemos basear a nossa ação cultural na Agenda 2030 única e exclusivamente por via do ODS 4, senão estamos a transformar quase, e muitas vezes, um uso instrumental da cultura a serviço da educação. O que eu defendo é que a cultura deve se apropriar da Agenda 2030, percebendo outros aspectos.

Como a cultura pode, efetivamente, contribuir com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e também se beneficiar da Agenda 2030?

Costumo dizer que se o ODS 8 [Trabalho decente e crescimento econômico] estivesse a ser cumprido, os problemas da pandemia não teriam acontecido como aconteceram, porque significaria que os profissionais do setor cultural teriam trabalho digno. Perceber a relação da cultura com a Agenda 2030 é não ter medo de dizer e de usar a cultura de forma instrumental para o cumprimento da Agenda. Enquanto no primeiro caso a cultura pode contribuir para o desenvolvimento sustentável e é protagonista, como no caso do ODS 5, que sublinha a importância de alcançar a igualdade de gênero, no segundo caso a cultura é beneficiária, de que o empoderamento da população proposto na meta 10.2 é apenas um exemplo. E no terceiro, é utilizada de forma instrumental para cumprir os ODS, a exemplo do ODS 14, que traz a importância dos conhecimentos tradicionais, como a pesca artesanal, para atingir algumas das metas. Portanto, podemos olhar para esses outros contributos para além do ODS 4.

Quando você aponta para os problemas da pandemia enfrentados pelos profissionais da área da cultura, uma das saídas encontradas por eles foi utilizar as plataformas digitais para interface com o público e fruição cultural. Que análise você faz desse período?

No Observatório de Políticas de Ciência, Comunicação e Cultura da Universidade do Minho, Portugal (POLObs), desenvolvemos um estudo, no primeiro trimestre da pandemia, para perceber o impacto no setor cultural português e, paralelamente, por todo o mundo, estudos dessa natureza começaram a ser feitos. A conclusão a que chegamos, que não é muito diferente da conclusão de outros países, é que a pandemia não provocaria efeitos dramáticos no setor cultural se ele já não estivesse, em si, numa situação demasiada precária. Ou seja, a pandemia trouxe à tona os problemas e as fragilidades desse setor. Primeiro, ela permitiu dar luz ao problema da profissionalização, da necessidade de haver condições dignas de trabalho para os profissionais do setor cultural, ou seja, ODS 8. E a segunda questão é que, sendo o setor cultural um dos primeiros que fechou, ele também foi um dos primeiros que respondeu ativamente para que a população que ficou em casa pudesse ter sanidade mental por meio da fruição cultural.

E qual foi um dos grandes problemas averiguados no estudo?

Foi o fato de não terem sido criadas condições para que essa transição para o digital – feita de forma muito rápida – permitisse meios de subsistência ao setor cultural. Atores, músicos e outros fazedores de cultura foram para as plataformas online fazer a sua arte, mas não eram remunerados por isso. Só a partir de certa altura, muito mais para a frente, é que começaram a receber alguma verba que, muitas vezes, não era minimamente aceitável. O que nos traz hoje a pandemia – se é possível encontrarmos aspectos positivos – é esta relevância que se tem que dar ao componente digital da cultura, sem que isso seja sinônimo de que o contato presencial torne-se substituível.

O Observatório de Políticas de Ciência, Comunicação e Cultura da Universidade do Minho também analisou a reação do público quanto à fruição cultural nas plataformas digitais?

Nos estudos de público que fazemos no Observatório, isso é notório. Quando perguntamos às pessoas, entre o digital e o online, o que preferem, a maioria prefere o presencial. A grande questão é: não obstante isso, os fazedores de cultura têm que encontrar duas coisas: primeiro, competências para que o seu espetáculo de teatro, por exemplo, possa se transformar num produto de fruição online. Deve haver verdadeiras habilidades para isso. Há equipamentos culturais que são completamente digitais. A Universidade do Minho, por exemplo, tem um museu que não existe fisicamente, o Museu Virtual da Lusofonia. Ele existe numa plataforma digital e é uma unidade orgânica da universidade. Muitas organizações têm esta dupla face do presencial e do online, mas é preciso fazer com que a digitalização não se transforme em mais um constrangimento no acesso à cultura.

A presença de manifestações artísticas no ambiente virtual, reforçada pela grande influência das plataformas digitais (redes sociais, serviços de streaming etc.) na produção, distribuição e consumo de informação foi denominada como “plataformização da cultura” e tem sido objeto de debate e preocupação por parte de artistas, produtores e pesquisadores. Que reflexão podemos fazer sobre esse processo?

Eu vejo, primeiro, o desafio de tornar a cultura e a questão da cultura digital acessível a todos. Quando pensamos nos indicadores para a cultura, quer seja nos indicadores da Unesco, quer seja de outros documentos internacionais, nos falam que para haver a questão do online, da digitalização, dessa forma de fruir cultura, é fundamental que a população tenha a capacidade de escolher. Para que eu possa escolher os conteúdos que eu quero, e que não sejam as grandes multinacionais que nos digam aquilo que vamos consumir, eu tenho que, primeiramente, ter acesso à internet, mas essa não é a realidade. O segundo problema é que tem de haver um letramento digital para as pessoas poderem, de forma consciente, fazer uma escolha deliberada e, assim, não consumir a primeira coisa que aparece à frente. Estou a construir o meu próprio patrimônio cultural e a fruição a partir de um leque, e hoje a internet nos permite esse leque diversificado.

Nesse caso, a partir de um letramento digital seria possível fazer a própria curadoria de conteúdos, retomando essa escolha deixada a cargo dos algoritmos?

Completamente. É importante percebermos que temos que ter ferramentas para não deixarmos que um algoritmo escolha tudo o que queremos consumir, porque isso, evidentemente, vai deixar um conjunto de culturas minoritárias, com menor visibilidade, de fora. Mas se apostarmos no letramento digital e no letramento cultural, não haverá algoritmo que me impeça de ver determinada forma de expressão artística ou de manifestação cultural só porque ela é minoritária. E para as grandes plataformas elas não são financeiramente vantajosas. Portanto, há aqui uma relação muito importante: não podemos ignorar que estamos em 2023, nem que o mundo vive transformações de uma forma completamente acelerada. Não podemos ignorar, também, que este desenvolvimento tecnológico é desigual. Ele torna mais veemente as disparidades e poderá tornar o consumo cultural online de forma ainda mais problemática, porque a facilidade do acesso pode agravar a lógica do que é padronizado e deixar as margens ainda mais às margens. O problema é que já não se pode falar em democratização, e sim em democracia cultural.

Democratização e democracia cultural se distinguem em que aspectos?

São conceitos diferentes. Quando falamos em democratização, estamos a falar numa questão de cima para baixo. Enquanto a democratização da cultura é uma questão vertical de um conjunto de “iluminados”, que vai disponibilizar à população aquilo que considera como relevante – e o algoritmo é aquele que considera o que é relevante para termos acesso em termos culturais –, a democracia cultural parte de uma base completamente contrária. Parte da valorização das culturas e das comunidades locais, da valorização do que uma comunidade tem e quer para construir, a partir daí, uma dimensão cultural do seu território. Portanto, é importante apostarmos numa democracia cultural, em que todos temos o direito de fruir, de criar e de consumir cultura. Em que todos temos o papel de construirmos nosso patrimônio cultural, tendo a consciência de que não há ninguém que tenha que me dizer aquilo que eu preciso consumir. Não é pelo fato de termos uma iniciativa cultural num espaço privilegiado, que ela seja mais importante do que uma manifestação cultural tradicional, ancestral e muitíssimo valorizada por aquele território.

Estamos vivendo um grande debate sobre inteligência artificial e como ela pode ocupar o espaço da produção intelectual humana. Recentemente, ferramentas como o ChatGPT tornaram-se alvo de protestos. Essas novas tecnologias são uma ameaça?

Há certas coisas que são incontornáveis, como a inteligência artificial. Outro dia, fizeram um exercício muito interessante na Europa. Existe uma iniciativa chamada Capital Europeia da Cultura, e deram a essa “ferramenta” um conjunto de instruções. Pediram que ela fizesse uma candidatura e foi assustador, porque a candidatura, não foi extraordinária, mas foi feita rapidamente, integrando palavras-chave interessantes para responder a um edital. E isso é muitíssimo perigoso. Tal como um livro feito quase à medida [por ferramentas de IA]. É um desafio enorme que eu não sei como podemos resolver. Acho que temos que partir, também, do letramento digital e do letramento cultural. Se eu valorizo a dimensão cultural de um escritor, eu não posso pedir a um programa que me faça um livro. Mas é evidente que haverá sempre quem consuma determinados tipos de produtos “fastfood cultural”.

Ou seja, é preciso reavaliar a forma como fazemos uso dessas ferramentas.

Há duas questões aí. Por um lado, [esse uso] pode ser ruim, porque percebemos que há um trabalho muito grande que precisa ser feito para que as pessoas consigam distinguir uma produção [humana] da outra [feita por um robô]. Também pode ser ótimo que esse livro que uma pessoa pede à medida [para a IA] possa formar leitores que, passado um tempo, vão comprar um livro de Jorge Amado. Portanto, é uma coisa de dupla face, e não vale a pena estarmos a dizer que vai ser péssimo. Do meu ponto de vista, temos que apostar na formação e na capacitação da sensibilização das pessoas para que não misturemos as coisas. Não devemos ter medo das tecnologias, elas estão aqui para ficar. Devemos capacitar os fazedores de cultura para que usufruam o máximo possível das potencialidades que a digitalização nos traz.

Assista a trechos da entrevista em vídeo com Manuel Gama:

Captação: Guilherme Barreto. Edição: Riff Produtora.

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