Por Remom Matheus Bortolozzi*
“Ama na maior liberdade… abra, escancara esse peito
Clama! Só é linda a verdade, nua sem ser preconceito
Tire essa fruta
Lamba essa terra
Pisa as paredes
Sinta esse tombo
Rala esse rosto
Transa com a lua
Morda essa cara
Linda, tão nua…
Faça da vergonha, loucura… abra, escancara a verdade
E ama essa tal criatura que envergonhou a cidade”
(“Essa tal criatura”, Leci Brandão, 1980)
No início da década de 1980, quando a homossexualidade ainda era considerada um transtorno mental no Brasil, a cantora, compositora e política brasileira Leci Brandão ousou transformar a loucura em símbolo de orgulho e resistência. Assumida publicamente desde 1978 na sexta edição do Jornal Lampião da Esquina (“Mulher, Negra e Homossexual”), a música de Leci expressava um movimento de afirmação da homossexualidade e da luta contra preconceitos.
Celebramos no 17 de maio o Dia Internacional contra a Homofobia, Transfobia e Bifobia em referência à memória da luta contra o preconceito e a patologização das pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans, Intersexuais e Assexuais – LGBTIA+, evocando a retirada, em 1990, da homossexualidade da Classificação Internacional de Doenças (CID) pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Embora esta data tenha sido adotada internacionalmente apenas em 2004, é curiosa coincidência ser celebrada tão próxima ao Dia Nacional da Luta Antimanicomial (18 de maio). Comemorada desde 1987, a data rememora o projeto da Reforma Psiquiátrica, lembrando que, em tempo não tão distante, nossa sociedade seguia uma lógica de separar, recluir e afastar do convívio aqueles e aquelas que considerava perigosos ou incapazes.
Por vezes nos parece distante a memória que, por quase um século no Brasil, pessoas que não seguiam as normas sociais relacionadas à sexualidade e ao gênero, hoje reconhecidas nas identidades LGBTIA+, tinham seus desejos, amores, práticas e identidades lidas como desvios sexuais e, por isso, eram reclusas para tratamento em instituições manicomiais. Ancorado em uma vasta produção de décadas, em especial encabeçado por obras médicas, psicológicas e jurídicas, este pensamento associou a essas pessoas consideradas “anormais” a noção de delinquência e perigo.
É interessante destacar que a produção dessas obras no Brasil foi mais abundante nos períodos de regimes autoritários, como a Ditadura Vargas (1930-1945) e a Ditadura Civil-Militar (1964-1985), quando existia um clima de encontrar inimigos comuns, em especial aqueles marcados no corpo por determinada raça, sexo, gênero e geração. Este pensamento encontra ecos ainda hoje. Além de recente, a retirada da transexualidade como transtorno mental do CID em 2019, são presentes iniciativas de repatologização e defesa de terapias de reorientação ou reconversão sexual, popularmente conhecidas como “cura gay”.
A celebração dos dias 17 e 18 de maio são estratégias de tornar viva a memória não apenas dessas cicatrizes, violências e violações dos direitos humanos, mas também da potência dos movimentos que criaram formas de (re)existir. Embora em um primeiro momento elas evoquem eventos específicos, se conectam a processos de resistências locais e internacionais muito mais longos e complexos. Assim é o caso do 17 de maio de 1990 e a música de Leci de 1980. A canção faz parte de um movimento político e cultural brasileiro de afirmação da homossexualidade que, em meados da década de 1970, fez uma revolução sexual no Brasil e progressivamente foi se organizando em torno da defesa de direitos. Inspirado na exclusão, pela Associação Americana de Psiquiatria (APA), da homossexualidade do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) em 1973, o então Movimento Homossexual Brasileiro teve desde seus primeiros anos uma agenda de lutas pela despatologização. Obteve ainda essa conquista muito antes da OMS, quando em 1985, fruto de intensa mobilização social, o Conselho Federal de Medicina deixou de considerar a homossexualidade um transtorno mental.
Outra data que também evoca movimentos de (re)existência é o 28 de junho, quando comemoramos o Dia Internacional do Orgulho LGBTIA+,em meio a uma extensa programação do mês do Orgulho e realização da Parada LGBT de São Paulo. Mesmo com diversos outros eventos locais de fundamental importância para a organização do Movimento LGBTIA+ brasileiro, essa data passou a ser celebrada no Brasil a partir de 1995, quando ocorreu a 17ª Conferência da Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersexuais (ILGA), no Rio de Janeiro, que terminou numa marcha pelo orgulho na praia de Copacabana. É curioso que, antes deste evento, há registros de outras iniciativas de celebração da afirmação homossexual, como a proposta do Círculo Corydon, grupo paulistano, que em 1978 sugere o 16 de outubro como o Dia do Gay Brasileiro, em referência à data de nascimento de Oscar Wilde. Em 1979, esse mesmo grupo sugere a criação da Semana do Gay Brasileiro,de 23 a 29 de novembro. No início da década de 1990, esta proposta também é divulgada pela revista Gato, porém na semana de 1 a 7 de setembro.
Dentre as diversas iniciativas, se firmou a celebração no 28 de junho, em referência à Rebelião de Stonewall, ocorrida em 1969 no Estados Unidos. Evento que simboliza um pioneiro levante de pessoas LGBTIA+ contra a violência policial, tornou-se marco internacional do Gay Power, inspirando ações pelo mundo afora. No Brasil, uma rebelião semelhante ocorreu no dia 19 de agosto de 1983, no Ferros Bar, protagonizada pelas lésbicas frequentadoras do espaço, dentre elas, ativistas do Grupo de Ação Lésbica Feminista – GALF, que distribuíam o boletim produzido pelo grupo, o ChanacomChana. A data passou a ser celebrada como o Dia do Orgulho Lésbico.
Em conjunto ao 29 de agosto, que se tornou o Dia da Visibilidade Lésbica em referência à realização do 1º Seminário Nacional de Lésbicas (SENALE) em 1996, o mês de agosto passou a ser marco da celebração da memória lésbica brasileira. Esses eventos e espaços também foram protagonizados por mulheres com práticas e identidades bissexuais, exemplo disto é a renomeação em 2014 do SENALE para Seminário Nacional de Mulheres Lésbicas e Bissexuais. Embora o movimento bissexual tenha realizado diversas ações ainda muito invisibilizadas, em especial a partir da segunda metade da década de 1990, a data escolhida para celebração do Dia da Visibilidade Bissexual foi o 23 de setembro, em referência ao movimento internacional que o criou em 1999. De forma semelhante, seguindo também o caledário do movimento assexual estadunidense, entre os dias 25 e 31 de outubro convencionou-se celebrar a Semana de Visibilidade Assexual como forma de aumentar debates sobre a orientação sexual.
Outra data que também registra importante movimentação de (re)existência e memória da comunidade trans é o 29 de janeiro, o Dia da Visibilidade Trans, fazendo alusão ao lançamento em 2004 da campanha Travesti e Respeito, que visava a promover a cidadania desta comunidade. De forma semelhante, este evento também é parte de um processo muito mais longo e complexo que perpassa desde a produção artística política das travestis nos palcos ao longo de todo o século XX, o pioneirismo na luta contra o HIV/Aids e as organizações do movimento travesti organizado no início dos anos 90 com a fundação da Associação de Travestis e Liberados – Astral em 1992, apenas para citar alguns exemplos. De um processo mais recente no Brasil, o 26 de outubro passou a ser referenciado como o Dia da Visibilidade Intersexual, inspirado no movimento internacional que faz alusão ao primeiro registro legal de uma pessoa como intersexo nos Estados Unidos em 1996.
Dentre essas diversas datas, uma fundamental para a compreensão política da memória e das celebrações é o primeiro de dezembro. Desde 1989 adotado como referência do Dia Mundial de Combate à Aids, foi em meio a esta epidemia, que transformou corpos homossexuais e travestis em sinônimo de perigo, contágio, doença e morte, que as comunidades LGBTIA+ redefiniram o sentido de celebrar a vida e tornaram a memória um instrumento político. Expressão adotada e popularizadas pelas comunidades LGBTIA+ nas primeiras décadas da pandemia, “Bicha não morre, vira purpurina” foi resposta à violência e à matabilidade dessas vidas. A frase carrega uma importante lição: em contextos em que tentam apagar, matar, fazer sumir os corpos e desejos LGBTIA+, como resposta, esses corpos ousam existir e brilhar, lembrando que não se morre em comunidade. A purpurina, pó metálico colorido de brilho intenso, comum no carnaval, que registra os encontros de corpos, é alegoria do contágio. O contágio da purpurina profana a morte, permitindo que as pessoas vivam de outra forma na comunidade, pela memória.
As décadas de 1980 e 1990 simbolizaram uma nuvem de purpurina no Brasil. Foi pela prática política da memória em vigílias, construção de colchas de retalhos e performances de protesto que as pessoas LGBTIA+ registraram, testemunharam, documentaram e nos possibilitaram viver o luto em comunidade. Além da celebração dessas vidas, as ações também evocavam uma dimensão monumental da memória, denunciando a matabilidade e apagamento das vidas LGBTIA+ e trazendo aspirações por um futuro mais solidário, no qual todas as vidas tivessem a mesma importância. A prática política da solidariedade, também traduzida na linguagem dos direitos humanos, foi fundamental na luta contra as discriminações e conquista de direitos, e as celebrações foram estratégias de enfrentar o esquecimento, garantindo às futuras gerações, mesmo em vestígios, acesso ao legado produzido por nossas antepassadas.
Os calendários de celebrações tornaram-se faróis para os vestígios da memória LGBTIA+ brasileira, iluminando e realçando o brilho de nossas purpurinas. Estes lampejos são pistas de itinerários ao nosso passado, em um contínuo processo de (re)descobertas que possibilita reescrever nosso cotidiano com novas cores, traçando caminhos que nos levam ao encontro de nossa história comunitária.
O acesso à história e memória das comunidades LGBTIA+ é direito fundamental, em especial para as novas gerações. A compreensão crítica do passado, das formas sociais como fomos violentados, estigmatizados, criminalizados, patologizados e tivemos nossos direitos negados, além das formas como resistimos e nos reinventamos como um legado comunitário, são uma bússola essencial para compreender e navegar no presente. Quando subimos nos ombros de nossas antepassadas, vemos mais longe.
Entretanto, o acesso às memórias LGBTIA+ brasileiras, bem como sua preservação, salvaguarda, valorização e difusão, não é tarefa individual. É nesse sentido que, desde 2010, o Acervo Bajubá, uma iniciativa comunitária, vem procurando purpurinas e vestígios da cultura LGBT brasileira em sebos, antiquários, brechós e leilões, além de doações, como forma de tornar essa memória viva no cotidiano na comunidade, para que seja possível nós mesmas escrevermos nossa história com essas tintas coloridas e purpurinadas. Contabilizamos uma coleção que soma cerca de 4 mil itens, composta por livros médicos, jurídicos e literários desde o século XIX, coleções de revistas, jornais, boletins, panfletos, LP, CD, filmes, camisetas de movimento, ingressos de shows e programas de teatros com artistas travestis e transformistas, dentre outros. Hoje, o Acervo Bajubá está sediado dentro do Centro Cultural da Casa 1, na Rua Adoniran Barbosa, 151, no Bexiga.
Embora o projeto busque abordar a diversidade de referências e tradições que atravessam as culturas LGBTIA+ brasileiras, nos inspiramos em especial naquelas de diáspora africana. A inspiração destas tradições é revelada não apenas na opção em nomear a iniciativa como Bajubá, termo que faz referência à linguagem popular usada dentro dos espaços da comunidade, em especial pelas travestis e LGBTIA+ negrXs, mas também na produção de terreiros de memória. É na prática da cultura, no cultivo da terra semeada de purpurinas, onde festejamos o 17 de maio, o Dia Internacional contra a Homofobia, Transfobia e Bifobia, nos ombros de nossas antepassadas, criando formas de (re)existir e celebrando a tal “loucura” como orgulho.
* Remom Matheus Bortolozzi é membro fundador do Acervo Bajubá e doutorando no Programa de Saúde Coletiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Paraná (2010), mestrado em Educação pela Universidade de Brasília (2014) e especialização em Gênero e Sexualidade pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (2016).
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Durante o mês de maio, buscando evidenciar realidades, desconstruir preconceitos e estereótipos vinculados às pessoas LGBTQIA+, além de fomentar a livre expressão das diferenças, o espaço de diálogo e convivência, o respeito e a transformação social, o Sesc São Paulo, por meio de suas redes digitais, realiza a ação Legítima Diferença. Acompanhe aqui a programação.
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