Patrícia Godinho Gomes | arquivo pessoal
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Diante da complexidade do quadro social e cultural no mundo contemporâneo, o Sesc São Paulo conversou com Patrícia Godinho Gomes sobre as expressões de gênero em diferentes culturas, e como o entrelaçamento de um conjunto de ações pode contribuir para a edificação de alianças e para a superação dos dilemas atuais.
Patrícia esteve no Sesc Campo Limpo, no Encontro Internacional Nós tantas outras dividindo a mesa Movimentos de mulheres em culturas diversas, com Yuan Feng, mediada por Edneia Gonçalves.
EOnline: Como você vê a realidade das mulheres no Brasil e em países africanos, sobretudo nos países de língua oficial portuguesa?
Patrícia: Antes de mais nada, creio ser difícil falar da realidade de todas as mulheres brasileiras e dos países africanos. A África é um continente com 54 países e com realidades multiculturais e linguísticas e muitas complexidades. O Brasil é um país de dimensões continentais. Portanto não posso falar das mulheres nesses termos por não conhecer todas essas realidades. Posso sim falar das realidades que conheço, a Guiné Bissau e Salvador da Bahia e um pouco do Nordeste brasileiro. No caso guineense temos várias realidades convivendo dentro do mesmo território em termos linguísticos, religiosos e socioculturais. Foram igualmente uma região colonizada pelos portugueses e esse processo impacto profundamente as relações sociais e de poder na sociedade guineense, durante e após a colonização. As mulheres, sendo a maioria da população nacional, estiveram certamente implicadas nesses processos que, no caso do período colonial, contribuiu em boa medida para instituir e reproduzir práticas discriminatórias típicas de sociedades coloniais e de tipo patriarcal. Na Guiné Bissau convivem dezenas de povos com seus costumes línguas e práticas religiosas. Claro que há contaminações nesse sentido e aproximações. Mas também há diferenças importantes. É também preciso considerar que as relações de gênero se diferenciam de um povo para outro na medida em que cada um tem seus próprios códigos culturais e formas específicas de organização. Há povos em que é possível vislumbrar organizações de tipo patriarcal (Papel, Mandjaco) mas há outras em que as mulheres se destacam em termos políticos (é o caso da sociedade Bijago do arquipélago dos Bijagós considerada uma sociedade matriarcal). E mesmo entre os povos onde prevalecem formas patriarcais de poder político, existem esferas importantes (religião, relações familiares) em que as mulheres assumem protagonismo. No caso da Bahia (e em alguma medida do Nordeste) a minha experiência (todavia breve) tem me permitido notar que também há uma pluralidade de realidades das mulheres. O Brasil também tem um passado colonial e é preciso não esquecer a herança escravocrata que teve um impacto forte em termos da estruturação da sociedade e das relações sociais e de poder estabelecidas a partir daí. Na Bahia (e de uma forma geral no Nordeste) o debate sobre estas questões é muito forte em razão de uma presença majoritariamente negra. Existem formas discriminatórias que têm que ver com questões raciais, de gênero e de classe social, além da discriminação religiosa. Por outro lado, o tema da violência contra as mulheres e o genocídio de jovens negros constituem temas importantes das pautas das organizações de mulheres/feministas e dos movimentos sociais de um modo geral. Penso que, assim como na Guiné Bissau (e em outros países africanos), também no Brasil a condição das mulheres é diferente, sobretudo se considerarmos as dimensões geográficas deste país. Mesmo no Nordeste, encontramos uma pluralidade de situações e de reivindicações das mulheres. As pautas nem sempre são as mesmas assim como as preocupações e os interesses. Porém, o que me parece ser o fio condutor é a luta contra qualquer tipo de opressão e os esforços para uma real autonomia e emancipação.
Qual a importância de ter mulheres exercendo funções de liderança na sociedade?
Penso que a possibilidade de mudar as coisas só é possível quando se está em posição de decidir e isso acontece, quanto a mim, quando se está nos lugares de decisão. Não podemos esperar que a situação de discriminação mude sem que haja uma intervenção que beneficie as mulheres. Essa atitude é possível, na minha perspectiva, se as mulheres estiverem consciencializadas e diretamente implicadas no processo e com capacidade de intervenção. Por isso, a presença a nível do poder político é fundamental porque é lá que as decisões são tomadas, é lá que as leis são feitas e as nossas vidas normatizadas. Por outro lado, creio que exemplos de liderança são positivas e podem influenciar percursos de outras mulheres. Se você tem exemplos de sucessos, isso pode favorecer no processo de consciencialização e de mobilização de outras mulheres. Parece-me por isso muito importante que tal aconteça.
De que forma as alianças com outros países podem auxiliar na defesa do gênero feminino?
Na minha experiência acadêmica venho verificando que o trabalho em rede é uma forma de enriquecimento e de fortalecimento. A circulação e a partilha do conhecimento permitem ampliar nossas visões sobre o tema do gênero. Mas, acima de tudo, permite-nos conhecer experiências diferentes e perspectivas diversas. Num momento em que estamos debatendo sobre a eficácia do gênero como categoria analítica para explicar as relações desiguais nas sociedades africanas e latino-americanas, mais do que nunca é importante conhecermos experiências locais, o que é possível, quanto a mim, através de alianças e de redes. Paralelamente, numa visão sul-sul, precisamos (estudiosos de gênero desse sul global) dar continuidade e ampliar nossas perspectivas e procurar aprofundar e articular melhor nossas produções para que seja possível pensar verdadeiramente a descolonização do saber e, consequentemente, a libertação. Não esquecendo que enquanto acadêmicos precisamos trabalhar em sintonia com a sociedade, com as comunidades. Sem essa perspectiva nossos trabalhos não farão sentido, porque é dessas comunidades que estamos falando, e se não as implicarmos em nossas pesquisas, nossas escritas estarão fadadas ao fracasso.
Se você tivesse a oportunidade de dar um recado para todas as mulheres do mundo, qual recado daria?
Sejam ousadas, mas sempre com base no conhecimento e conscientes dos próprios limites. Sejam solidárias e companheiras e, acima de tudo, procurem sempre o consenso e a inclusão.
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Nascida em Luanda (Angola) em 1972, Patrícia Godinho Gomes cresceu em Bissau num ambiente pacato, onde valores como o respeito e a solidariedade imperavam. Teve dentro de casa a perceptividade de que mulher pode tudo. Sua mãe desempenhou o cargo de Secretária de Estado da Presidência da República, foi Ministra do Trabalho e Ministra da Saúde da Guiné Bissau, que naquela época foi entre as poucas mulheres guineenses a conseguir atingir esse patamar. Desde muito cedo Patrícia aprendeu o valor e o sentido do trabalho, a conquistar algo com o próprio esforço e a agir com responsabilidade.
Fez licenciatura em Lisboa (Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas), doutorado e pós-doutorado na Itália. Patrícia iniciou seu doutorado e o estudo sobre os fundamentos da construção de uma nova sociedade na Guiné Bissau através da luta armada, a estudar a participação das mulheres nesse processo. Sucessivamente se interessou pelas relações de gênero nesse contexto e agora tem procurado entender quais as conexões entre as lutas das mulheres no seu país, as relações de gênero e os feminismos africanos.
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