Por Alex Castro
Estamos em janeiro de 2025 e uma boa parte da cidade de Los Angeles está em chamas. Não mais somente pessoas pobres e periféricas de países distantes e subdesenvolvidos, mas agora estrelas de Hollywood milionárias, brancas, de olhos azuis e dentes perfeitos, estão perdendo suas casas. 2024 foi o ano mais quente da história, um recorde que, daqui a doze meses, certamente será batido por 2025.
Também em 2025 celebramos o aniversário de 20 anos do Furacão Katrina, que assolou o Caribe e o Golfo do México, Cuba e os Estados Unidos, em agosto de 2005. Eu estava lá: tinha me mudado para Nova Orleans duas semanas antes, para fazer um mestrado. Tive que abandonar a cidade às pressas, me separei do meu cachorro que por pouco não perdi e me tornei, para minha imensa surpresa de carioca privilegiado, um refugiado climático.
Olhando para trás, o Katrina parece estar em um ponto de virada: ao mesmo tempo em que foi a última tragédia climática dos velhos tempos, quando essas catástrofes ainda eram raras e incomuns, também foi a primeira tragédia climática do nosso tempo, inaugurando o triste novo normal das mudanças climáticas.
Mas o Katrina, nem que apenas pelo elevado número de vítimas, não foi mero prólogo, mas retumbante clímax. Em 2001, os EUA tinham perdido 3 mil pessoas no Onze de Setembro. Quase na sequência, em 2005, foram 2 mil mortos e desaparecidos do Furacão Katrina. (Em comparação, só para sublinhar a enormidade do Katrina, os incêndios da Califórnia em janeiro de 2025, cujas cenas evocam um literal inferno na Terra, mataram 24 pessoas até 14 de janeiro, número que ainda pode subir.)
Se ecologia sem consciência de classe é jardinagem (na frase apócrifa de Chico Mendes), então, falar de mudanças climáticas sem abordar desigualdade social é meteorologia. Não podemos pensar um problema sem também enxergar quem ele afeta. Estamos sim todos no mesmo barco, mas só alguns de nós viajam de primeira classe. O 1% mais rico da humanidade emite mais poluição e consome mais recursos que os 2/3 mais pobres. As consequências desse super consumo, entretanto, recaem desproporcionalmente sobre os que menos consomem. As catástrofes climáticas são fenômenos não só naturais, mas também sociais. O impacto do Furacão Katrina em Nova Orleans é o exemplo perfeito disso.
Nova Orleans foi fundada no começo do século XVIII, perto do delta do Rio Mississippi, controlando assim a entrada do maior estuário fluvial da América do Norte. Sabendo que estavam construindo em uma área que alagava com frequência, os habitantes da cidade em seus primeiros dois séculos ocuparam somente as áreas altas, pouco atingidas por inundações. No começo do XX, porém, sob pressão dos especuladores imobiliários, foram construídos diques às margens do rio justamente para possibilitar a ocupação das áreas mais baixas, até então vazias, inabitáveis, frequentemente alagadas. Quando os diques romperam durante o Katrina, o centro histórico e os bairros mais antigos sofreram danos, mas não foram destruídos. Já os bairros mais novos, construídos no século XX, ao mesmo tempo os mais pobres e os mais ricos, foram literalmente lavados do mapa.
(Para fins de comparação, se os bairros cariocas construídos no século XX fossem destruídos, perderíamos toda a Zona Sul entre Copacabana e o Recreio dos Bandeirantes. Já São Paulo tinha apenas trezentos mil habitantes em 1897: se a cidade perdesse todos os bairros ocupados no século XX, não sobraria quase nada, só Luz, República, Sé. O bairro universitário onde eu morava, Uptown, construído no século XIX em torno da Universidade de Tulane, teve só um metro de água — o que, em uma cidade onde quase todas as casas são elevadas, é considerado um bairro que não alaga. Nos lugares que sofreram maior destruição, como o Lower Ninth Ward, a profundidade chegou a sete metros e afogou pessoas dentro de suas casas ou apartamentos térreos.)
Os bairros mais ricos e os mais pobres foram destruídos, mas com uma enorme diferença. As pessoas brancas e ricas não morreram no Katrina: elas simplesmente colocaram a família nos seus carrões, encheram os tanques e aproveitaram para viajar e fazer turismo. Entretanto, grande parte das pessoas de Nova Orleans não eram nem brancas, nem ricas e viviam de mês a mês. Não tinham nem carro e nem dinheiro para alugar carro, e muito menos para reservar pousadas e comprar passagens de avião. Muitas eram idosas e com problemas de locomoção. A maioria esmagadora das vítimas do Katrina tinha raça, tinha classe.
Na peça “Furacão” − inspirada no romance homônimo de Laurent Gadé, montada pela companhia carioca Amok Teatral e que estreia agora no Sesc Santana − acompanhamos a experiência de uma dessas vítimas paradigmáticas do Katrina: Joséphine Linc Steelson, uma mulher idosa, negra, pobre. A peça fica em cartaz de 17 de janeiro a 16 de fevereiro de 2025.
Até hoje, as pessoas negras de Nova Orleans se ofendem quando alguém se refere ao Katrina como um “desastre natural”. Furacões são parte inevitável da vida no Caribe e Golfo do México. Eles são inocentes. As mortes nos Estados Unidos foram causadas não pelo furacão, mas por políticas públicas centenárias que conscientemente protegem as pessoas brancas e afluentes enquanto deixam à própria sorte as pessoas negras e mais pobres. Não houve nada de natural em nenhuma morte ocorrida em Nova Orleans durante a passagem do furacão Katrina.
O que houve em Nova Orleans foi uma limpeza étnica que expulsou boa parte da população negra da cidade e lavou do mapa vários bairros pobres, liberando-os para a especulação imobiliária e criando oportunidades de negócio que foram entusiasticamente (e sem nenhuma vergonha) celebradas pela elite branca da cidade. Os ricos ficaram mais ricos; os pobres, mais pobres.
À medida em que avançamos rumo ao futuro, o Katrina provavelmente permanecerá como o evento inaugural do século das mudanças climáticas. A tragédia é que, vinte anos atrás, assistíamos vídeos de terras distantes na TV (“tadinhos deles!”) e, hoje, gravamos esses vídeos com nossos próprios celulares, em nossas próprias ruas, documentando as enchentes que levaram nossas casas, os incêndios que levaram nossas famílias.
Alex Castro, 50, escritor, tem 8 livros publicados no Brasil e no exterior, entre eles “A autobiografia do poeta-escravo” (Hedra, 2015), “Outrofobia: textos militantes” (Publisher Brasil, 2015), “Atenção.” (Rocco, 2019) e “Mentiras Reunidas” (Oficina Raquel, 2023). Atualmente, escreve para veículos como “Folha de São Paulo”, “451”, “Rascunho” e “Revista Pernambuco”. Morou em Nova Orleans entre 2005 e 2011. Site: alexcastro.com.br Instagram: instagram.com/outrofobia Newsletter: alexcastro.substack.com
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