O ano é 1973. No Brasil, a ditadura militar censura os meios de comunicação e tortura presos políticos sob o comando de Médici, no Chile, Salvador Allende é assassinado e Pinochet chega ao poder por meio de um golpe militar, na Argentina, Perón vence a sua terceira eleição para a presidência. Se para a América Latina o ano de 1973 foi determinante na sua história política, nos EUA, seu envolvimento direto na Guerra Fria e na Guerra do Vietnã tensionavam a geopolítica mundial naquele momento, ao mesmo tempo em que acontecia a reeleição de Richard Nixon, o presidente que, há dois anos, havia dito a famosa frase “America’s public enemy number one in the United States is drug abuse” (“o uso abusivo de drogas é o inimigo número um dos Estados Unidos”) e iniciado assim, a até hoje famosa e controversa “guerra às drogas”.
Um dia após o fatídico discurso de 1971, Nixon afirmou que para derrotar esse inimigo, seria necessário executar uma ofensiva total. Como consequência desse plano, a população carcerária de crimes relacionados às drogas tem um salto instantâneo nos EUA, com o predomínio de negros, latinos, trabalhadores mais pobres e moradores dos subúrbios, no país que passaria a ser, em breve, reconhecido como o número 1 no ranking de consumidores de substâncias psicoativas.
Foi nesse contexto que, na noite de 11 de agosto de 1973, em um salão de festa na Av. Sedgwick, número 1520, no bairro do Bronx, em Nova Iorque, dois irmãos nascidos na Jamaica uniram em uma mesma festa os quatro elementos que juntos formariam e caracterizariam a partir dali o hip-hop. Era o nascimento de uma nova cultura.
A Av. Sedgwick está localizada, mais precisamente, no South Bronx, local habitado em sua maioria por negros e latinos, muitos deles sofrendo com o abandono do Estado, o desemprego e violência que assolava os ‘guetos’ americanos, muito em reflexo a guerra às drogas do presidente Nixon. A degradação do bairro fez com que a classe média que ali morava migrasse para bairros mais seguros e em alguns casos chegavam a pagar pessoas para incendiar as suas casas para que recebessem o valor do seguro. Escombros e prédios abandonados formavam a paisagem do Bronx, que passava a se tornar o cenário ideal para o surgimento e a atuação de gangues, em torno do tráfico de drogas.
A fim de conseguir dinheiro para comprar roupas novas para a volta às aulas que se aproximava, a estudante do high school americano, Cindy Campbell, organizou uma festa no salão do prédio em que morava com sua família na Av. Sedwick, número 1520, na noite de 11 de agosto de 1973. Ela mesma confeccionou, à mão, os convites, que informavam o horário da festa (das 21h às 4h), o preço da entrada: mulheres pagariam 25 centavos e homens 50 centavos e que, além disso, anunciava a atração musical da noite, um tal de Kool Herc, que também atendia como Clive Campbell, seu irmão de 18 anos que já fazia seus primeiros experimentos como DJ.
Nascidos em Kingston, capital da Jamaica, Cindy e Clive passaram a infância sob influência dos “sistemas de som” da ilha, que proporcionavam entretenimento para as populações mais carentes da Jamaica. Se no seu surgimento, na década de 40, os sistemas de som tocavam majoritariamente R&B americano, logo a demanda por uma sonoridade nacional surgiu, aquecendo a indústria fonográfica jamaicana e dando origem ao ska, dancehall, reggae e rocksteady ali produzidos.
Foi sob essa influência que, naquela festa, Kool Herc montou seu equipamento (que havia sido produzido com a ajuda de seu pai e levava o nome de “The Herculoids”) e, utilizando a técnica de carrossel (com dois toca-discos executando a mesma música, o DJ prolonga os compassos do beatbreaker), deu a base para que os primeiros b-boys e b-girls experimentassem unir passos por eles criados aos já clássicos de James Brown, enquanto seu amigo Coke La Rock aproveitava as batidas criadas por Herc para gritar algumas rimar rápidas, a fim de animar o público presente. Cindy, que já tinha sua TAG como grafiteira, “PEP-1(174)”, estava, naquela noite, rodeada de outros amigos grafiteiros exibindo suas TAG’s. Nascia assim, da união entre MC, DJ, breakdance e grafite naquele salão de festas no Bronx, o movimento hip-hop.
Apesar de ter o seu nascimento sacramentado naquela noite de 1973, a cultura só foi ter o nome hip-hop estabelecido mais tarde. Para Cindy Campbell, muito disso se deve ao fato de que, em 1984, o filme “Beat Street” chegou aos cinemas, produzido por David Picker e dirigido por Stan Lathan. Em entrevista recente, Cindy reflete “A certa altura, as pessoas não sabiam para onde o hip-hop estava indo, ele passou despercebido, mas Harry fez o filme porque sabia que algo especial estava acontecendo; levou o hip-hop a outro nível e a música se tornou internacional.”
O filme de fato, pelo menos aqui no Brasil, teve um papel fundamental para o surgimento e fortalecimento da cultura que já começava a tomar as ruas e desafiar a ditadura militar que, em breve, chegaria ao fim, mas cuja violência e intolerância permaneceriam na sociedade por muitos anos.
Lançado em 8 de junho de 1984, Beat Street tem a força de uma história cativante, a partir do romance entre um DJ e uma compositora de jazz e coreógrafa, uma trilha sonora que produziu clássicos instantâneos, com músicas de Grandmaster Melle Mel & the Furious Five, Afrika Bambaataa & Soulsonic Force, Jazzy Jay, Doug E. Fresh, além das participações luxuosas de ícones da cultura hip-hop como Kool Herc e as crews lendárias de dança de rua Rock Steady Crew e New York City Breakers.
Sobre o filme, Fabiano Minu, grafiteiro de Guarulhos e um dos pioneiros do hip-hop em São Paulo, diz na websérie Olhares Sobre São Paulo: Especial Hip-Hop, “O breaking começou como moda, depois quando veio o Beat Street, a gente começou a entender que era uma cultura de rua. Muita gente não fala isso, mas a São Bento teve seu início devido ao filme Beat Street. Para vocês entenderem como foi o impacto do filme.”
Para Marcelinho Backspin, b-boy da old school do hip-hop paulistano, o contato com os primeiros passos que viriam a ser o breaking, aconteceu em 1982, em que passos de ‘popping’ apareciam em um clipe da banda CHIC (possivelmente da música Hangin’ Out a partir do minuto 1:57) e eram reproduzidos pelos jovens nas festas de rua. Depois disso, em 1983, ele conta que há uma explosão do ‘street dance’, a dança de rua, que se consolida com o lançamento do Beat Street, em 1984.
Se para Minu e Marcelinho, o hip-hop ganha nome, corpo e significado em meados de 1984, muito antes disso, na década de 1970, um tal de Nelson Gonçalves Campos Filho desembarcava em São Paulo, vindo de Triunfo, Pernambuco, para mudar de vez a história da cultura de rua em São Paulo.
Ainda no Nordeste, Nelson Triunfo formava o seu primeiro grupo de dança, “Os Invertebrados”, cujos passos de dança eram tão inovadores e desafiavam os limites do corpo, fazendo com que parecessem não ter ossos, daí o nome.
Para ele, o seu primeiro contato com algo similar ao que conhecemos atualmente como rap aconteceu ainda no Nordeste, com a “embolada” (ou coco de embolada) que, a partir de uma batucada, em sua maioria de pandeiros, uma dupla de “cantadores” ou “repentistas” cria rimas ágeis e de improviso em cima daquele ritmo também improvisado do batuque, assim como, mais tarde, mc’s e rappers fariam em cima dos samples e beats criados pelos DJ’s.
E não é só na música que Nelson defende que as referências são muito anteriores àquelas firmadas em 1973 na festa dos Campbell. Sobre o breakdance, ele indica uma rápida pesquisa na internet digitando “break na Nigéria, 1959”. Logo descobrimos um vídeo que mostra que, já na década de 50, na Nigéria, grupos de pessoas executavam passos de dança muito similares aos que, mais tarde, seriam característicos do breakdance, como “rodar de costas” e “tartaruga”.
Chegando em São Paulo, em 1977, Nelson se torna figurinha carimbada dos bailes black da cidade e, sob a influência do funk e soul brasileiros, funda a Funk & Cia, grupo que leva a dança para as ruas do centro de São Paulo, sendo fundamental para o desenvolvimento da estação São Bento do metrô como ponto de encontro da cultura hip-hop e marco na resistência a força policial e intolerância social em torno do surgimento do movimento no Brasil.
Nelson se torna símbolo da dança de rua e da cultura hip-hop, incorporando as referências americanas, mas priorizando a cultura nacional e todos os elementos que já faziam parte da sua vivência, criando assim, o hip-hop brasileiro em sua essência.
São Paulo, 1985. No Brasil, tinha fim – ainda que mais teórico do que prático – a ditadura militar que assolou o país por duas décadas e suprimiu a cultura nacional por meio de censura, prisões, tortura e exílio. Após tanto tempo vivendo sob um regime de violência e opressão, era claro que a situação não seria apaziguada de repente e que as periferias e suas populações seriam as últimas a serem poupadas dessas práticas durante essa mudança de regime.
Em resposta a esse cotidiano de repressão e violência que seguia, jovens usavam o centro de São Paulo como ponto de encontro para juntos conseguirem trocar experiências e se fortalecer para, num ato de resistência, seguir dançando, rimando, grafitando e discotecando. É nesse movimento que surge a São Bento. Mais do que um ponto de encontro mais acessível, já que ficava no centro da cidade, local que recebia linhas de ônibus de todas as regiões da cidade e onde culminavam as poucas estações de metrô disponíveis na época, a São Bento surge como um catalisador da cultura hip-hop no Brasil, um marco para a juventude da época que queria, além de se divertir, resgatar alguma perspectiva de futuro que constantemente era suprimida, seja pela violência do Estado, seja pela marginalização por parte da sociedade civil.
Se nos EUA o hip-hop nasce no Bronx, bairro majoritariamente negro e latino, por aqui não é diferente. O movimento surge e ganha corpo nas periferias de São Paulo, a partir da rápida identificação daqueles jovens com a realidade norte-americana retratada nas músicas, clipes e filmes e que em nada se diferenciava daquela aqui vivida pela população negra e periférica paulistana. Aos poucos, são incorporados elementos da cultura brasileira e situações no nosso cotidiano às referências estrangeiras e o hip-hop ganhava adesão e força, porém, ainda sofria com a resistência da maioria da sociedade, que associava a cultura ao crime.
Se hoje os Racionais MC’s é um dos grupos mais conceituados da música nacional, tem um documentário sobre a sua carreira na Netflix e o livro com as letras do seu álbum Sobrevivendo ao Inferno como leitura obrigatória para o vestibular, essa aceitação e respeito em massa são muito recentes. São deles algumas das composições mais emblemáticas do hip-hop nacional, que melhor traduzem toda a violência sofrida por muitos anos pelos que compõem o movimento.
Recentemente, no dia em que se comemorou os 50 anos do surgimento do hip-hop, a The New York Tymes Magazine cravou “The Future of Rap is Female” (O futuro do rap é feminino), e continuou “As their male counterparts turn depressive and paranoid, it’s the women who are having all the fun” (enquanto seus ‘equivalentes’ masculinos se tornam depressivos e paranoicos, são as mulheres que se divertem). Foi também no dia 11 de agosto de 2023 que a minissérie “Ladies First – A Story of Women in Hip-Hop” (Primeiro as damas – a história das mulheres no hip-hop) estreou na Netflix mundial com a proposta de reverenciar e reforçar a importância das pioneiras da cena, como Sha Rock, Remy Ma, Yo-Yo, Roxanne Shante, MC Lyte, Da Brat, Monie Love, Bahamadia, Rah Digga e Queen Latifah, por meio, não só de depoimentos das próprias, como com falas de rappers importantes da geração atual, como Latto, Saweetie, Coi Leray, Chika, Rapsody, Kash Doll e Tierra Whack.
Não é à toa que, tanto a matéria da The NYT Magazine, quanto a estreia da minissérie na Netflix, tenham acontecido no dia em que o hip-hop esteve mais em voga nos últimos tempos. Há uma movimentação de reconhecimento e valorização das mulheres na cena, mesmo que tardia.
Por muitas vezes, quando o dia 11 de agosto de 1973 é relembrado, Kool Herc é o primeiro nome a ser citado, ignorando o fato de que, quem organizou a festa e as atrações que culminaram na primeira reunião dos quatro elementos fundamentais para o hip-hop, foi sua irmã, Cindy Campbell, que já atuava como grafiteira.
No Brasil não foi diferente. Sharylaine, Dina Di e Rubia RPW são algumas das primeiras mulheres a figurarem na cena hip-hop paulistana e nacional e, sempre que procuradas, retratam as dificuldades e assédios sofridos em um meio tão masculino que se estende aos outros elementos da cultura, como lembra DJ Zeme na websérie Olhares Sobre São Paulo: Especial Hip-Hop “O rap era tipo como masculino, então, uma mulher entrar num lugar que é teoricamente masculino, tem uma (resistência), “pera aí, aqui é só os mano””.
Assim como tudo que fundamenta a cultura hip-hop, a característica principal do rap é falar sobre cotidiano, se basear em histórias reais para criar as suas narrativas. Por isso, ao longo dos anos, vimos rappers homens transitarem das letras de protesto para letras sobre violência, sexo e ostentação, nas quais a mulher figurava como troféu, ou pior, objeto. Com as mulheres não era diferente, as inspirações para a letras também eram o cotidiano, mas dessa vez, do outro lado, como companheiras desses homens. Logo, as temáticas mais recorrentes eram a violência doméstica, o assédio, a discriminação e a exaltação à sexualidade e ao prazer feminino, na sua forma mais livre.
Foi com um álbum altamente politizado, abordando a negritude e o amor, que o rap feminino alcançou seu auge, com o disco The Misseducation of Lauryn Hill levando o Grammy na categoria álbum do ano, em 1998, além da vitória em outras quatro categorias, das onze em que havia sido indicada.
Essa formação baseada na reflexão sobre assuntos pertinentes para a sociedade naquele momento culminou para que hoje o pioneirismo em tratar de certos temas dentro da cultura hip-hop venha de artistas mulheres. Young M.A. e CHIKA trazem a temática LGBTQ+ como a principal em suas letras, enquanto as pioneiras Queen Latifah e Da Brat assumiram recentemente seus relacionamentos com outras mulheres. Cardi B e Nicki Minaj figuram há anos no top 100 de paradas do mundo todo falando abertamente sobre prazer e sexualidade.
Fabiano Minu, grafiteiro da old-school do hip-hop paulistano aponta que as comemorações em torno dos 50 anos do movimento não foram à altura da importância da data, já que não contextualizavam os quatro elementos, as raízes que formaram a cultura e que segmentavam, com eventos só de rap, ou só de grafite, sem primar por algo essencial, que é a junção dos elementos.
Para Marcelinho Backspin, b-boy referência cujo trabalho teve início na década de 80, as comemorações em torno do cinquentenário foram importantes para relembrar a sociedade do papel fundamental do hip-hop na cultura, a partir do momento em que serviu como escape para muitos jovens periféricos, que tinham o caminho do crime ou do uso abusivo de drogas como a única perspectiva e que hoje são profissionais, arte-educadores, professores e seguem honrando esse legado social do movimento. Sobre o futuro, ele reflete “A cultura hip-hop está enraizada nas periferias da cidade, ela é um estilo de vida, que precisa de mais investimentos e estrutura para que projetos sejam realizados. É uma cultura orgânica, underground, que está na mídia e em todo lugar, na política, no esporte, nas Olimpíadas, a tendência do hip-hop é só crescer. O hip-hop não para.”
Fontes:
Revista Culti
Politize
Wikipédia
The Guardian
RapDab
Kalamidade
Tangerina
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