Se por um lado cresce o número de pessoas em situação de rua no país, por outro espalham-se iniciativas para garantir dignidade e autonomia a essa população
POR KARLA DUNDER
Leia a edição de DEZEMBRO/23 da Revista E na íntegra
Moradia é um direito humano. No entanto, estima-se que hoje, no Brasil, mais de 236 mil pessoas não tenham um lugar para morar e estejam em situação de rua. É o que mostram dados de um relatório divulgado pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, publicado em setembro deste ano. Somente na cidade de São Paulo (SP), esse número ultrapassa 53 mil pessoas. “Estamos falando de uma questão social, presente em quase todo o mundo e, no caso de São Paulo, com uma taxa de crescimento maior que a da população da cidade”, explica Silvia Maria Schor, professora da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da Universidade de São Paulo (FEA-USP) e pesquisadora da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe).
Mesmo países ricos, como os Estados Unidos, não escapam dessa triste estatística e contabilizam um grande contingente sem lar. Segundo Schor, em uma noite de fevereiro de 2023, o governo estadunidense contou 580 mil pessoas dormindo nas ruas do país. Coordenador do Movimento Nacional População de Rua (MNPR), Darcy Costa aponta que a pandemia deixou muitas pessoas sem renda e, portanto, sem possibilidade de pagar aluguel, o que levou muita gente para as ruas. Para o dirigente do MNPR, que é ex-morador de rua, quando falamos sobre esta realidade, estamos falando de pessoas, em sua maioria, entre 30 e 50 anos, homens pretos e pardos. “Uma população que sofre com racismo, exclusão, marginalização e que é criminalizada com a política de combate às drogas.”
Costa observa que esse cenário só vai mudar com políticas públicas efetivas de moradia e de trabalho. Trata-se de uma situação complexa e que se arrasta por décadas, principalmente nas grandes cidades. Encontrar uma solução deveria ser desejo de toda a sociedade, mas saber os caminhos para a mudança nem sempre é simples. Há, porém, um número também crescente de iniciativas individuais e coletivas no sentido de se aproximar das pessoas em situação de rua, compreender de perto suas necessidades e se mobilizar na busca do resgate da dignidade e da autonomia dessa população, seja no campo assistencial, na valorização social e também no acesso às artes e à cultura.
Padre Júlio Lancellotti é referência na luta pelos direitos humanos, pedagogo e coordenador da Pastoral do Povo de Rua de São Paulo. Já trabalhou com adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas e crianças com HIV. Há 40 anos, ele serve café da manhã e distribui roupas para os “irmãos da rua” que vão à paróquia São Miguel Arcanjo, no bairro da Mooca, zona Leste da capital paulista. Foi o padre Júlio que popularizou o termo “aporofobia”, um neologismo originado da junção das palavras gregas poros [pobres] + fobos [medo], e que representa aversão ou rejeição aos mais pobres.
“Eu aprendi uma senha para conviver com os irmãos de rua: o olhar. Você tem que conseguir captar o olhar… ler o que os olhos deles estão dizendo”, afirmou em entrevista à revista Mais60, em janeiro de 2022. Padre Júlio reforça que a população em situação de rua é muito heterogênea. “Então, na rua, tem tudo o que tem na sociedade”, explicou.
Em suas redes sociais, ele também denuncia a “arquitetura antipobreza” na cidade de São Paulo. Intervenções hostis que têm como objetivo impedir que a população de rua descanse ou durma em espaços públicos. Pedras, grades, cacos de vidro e até espetos de ferro são instalados para evitar a presença e a permanência dos mais pobres no local.
Em agosto passado, padre Júlio Lancellotti participou do Festival Cultura e Pop Rua – População em Situação de Rua e Direito à Cultura, idealizado pelo Museu da Língua Portuguesa e pelo Sesc São Paulo, uma correalização da Prefeitura da Cidade de São Paulo. A proposta do festival foi a de ser um espaço para a visibilidade da população em situação de rua e um chamado para as instituições culturais compartilharem experiências e imaginarem estratégias de ação cultural que possam se somar e melhorar a vida das pessoas e das cidades. Também participaram da programação representantes de movimentos que promovem a inclusão social por meio da arte, como o Pagode na Lata e a Cia. Mungunzá de Teatro.
Com o intuito de aproveitar o potencial da música, mais especificamente do samba e do pagode, foi criado, em 2017, o Pagode na Lata. O grupo usa a música para reduzir danos e gerar renda para a população de rua e dependentes químicos no território da Luz, região central de São Paulo.
“O samba e o pagode são caminhos para estabelecer vínculos com as pessoas da região e o melhor insumo para a redução de danos, para dar encaminhamento e cuidar. Quando estamos juntos no Pagode, eles não estão usando drogas, e o cachimbo vira baqueta no tamborim”, descreve o sociólogo Marcos Maia, que trabalhou por dois anos com redução de danos no programa Braços Abertos e já foi gerente de um hotel social.
No início, o ponto de encontro do grupo era na região conhecida como Cracolândia. “Um dia, estávamos indo nos encontrar quando uma pessoa saiu correndo atrás de nós; era a Nice. Ela ofereceu o bar para que pudéssemos tocar lá”, recorda Maia. O Pagode na Lata, como explica o sociólogo, organiza a vida das pessoas, porque é um trabalho: “tem ensaio, reunião, tudo com hora marcada – isso é organizador”.
O território onde o projeto é realizado abrange os bairros da Luz, Santa Ifigênia e Bom Retiro e possui equipamentos culturais que passaram a abrir espaço para as pessoas em situação de rua. O Pagode na Lata, por exemplo, já se apresentou no Museu da Língua Portuguesa e no Sesc Bom Retiro. O valor do cachê recebido é dividido igualmente entre os músicos.
Foi em uma dessas apresentações que Jurandir, um dos integrantes do grupo, e que vive há 30 anos na região, decidiu usar o dinheiro para comprar um pandeiro. “Ele pensou na música, e não em comprar drogas”, relembra Maia. E foi na primeira apresentação do Pagode na Lata, na Pinacoteca do Estado, que Jurandir se emocionou. “Por um ano, ele viveu na calçada em frente ao museu e, com os olhos marejados, disse que nunca imaginou que um dia entraria em um lugar como aquele. ‘Entrei, toquei e fui ovacionado’”, relembra Maia.
Realizar um trabalho artístico sem perder a conexão com o compromisso social e político. Essa foi a motivação de um grupo de jovens atores na criação, em 2017, do Teatro de Contêiner Mungunzá, localizado no bairro Santa Efigênia, região central de São Paulo. “O teatro está em um território de grande vulnerabilidade social e não tem como se ausentar dos conflitos, assim todas as ações artísticas estão relacionadas aos direitos humanos, ao lazer e à convivência”, explica Marcos Felipe, artista da Cia. Mungunzá, companhia teatral responsável pela gestão do espaço e uma das que ocupam o local. “Recebemos as pessoas que não são aceitas em muitos equipamentos culturais da região, e posso dizer que o Teatro de Contêiner é o principal espaço sociocultural de direitos humanos dali”, destaca.
Além de manter o espaço físico, a Cia. Mungunzá constrói seu trabalho artístico baseado em um repertório atravessado pelas questões sociais no entorno da Luz. “Nosso trabalho é pensado como insumo artístico de redução de danos. Naquele momento em que a pessoa está ali no teatro, ela sai do consumo abusivo das drogas para ver a peça ou atuar”, conta Felipe. O grupo tem até o Blocolândia – bloco de carnaval da Cracolândia –, coordenado pelos agentes e o mais “careta” do Carnaval: “enquanto o bloco passa, estão apenas aproveitando aquele momento”, descreve o artista.
É também na região central de São Paulo que funciona o Birico Artes, coletivo de artistas de diferentes linguagens e de realidades socioeconômicas distintas: enquanto alguns de seus integrantes vivem nas ruas da Cracolândia, outros têm um lar estabelecido. O trabalho começou durante a pandemia, segundo explica Daniel Mello, integrante dos coletivos Birico e Craco Resiste, quando todo o comércio fechou as portas e alguns serviços da prefeitura foram suspensos. “Ficamos preocupados, porque são pessoas que dependem de doação de marmitas e água.”
O grupo decidiu vender impressões e pôsteres de obras feitas por artistas que vivem nas ruas e os recursos arrecadados são divididos entre os artistas e um fundo de ajuda, que permite, por exemplo, o pagamento de aluguel. “Seguimos o conceito de housing first: a partir de uma moradia, as pessoas conseguem se organizar”, explica Mello. O Birico atua na área assistencial, ao pagar quartos de hotéis no próprio território e, também, na geração de renda. As obras do coletivo já foram expostas em diferentes espaços culturais da região, como a Biblioteca Mário de Andrade.
Outra iniciativa social – e talvez uma das mais antigas desenvolvidas na região, é o jornal O Trecheiro. O nome do periódico remete a um termo que era usado como sinônimo de andarilhos, pessoas em deslocamento. Alderon Costa, da equipe do jornal, conta que em 1983 viveu em situação de rua, condição que ele considera invisibilizadora.
“Não existia diálogo com a sociedade e o poder público. Não havia a ideia de organização para lutar por direitos”, recorda. “Na época, tínhamos a experiência de escrever cartas, mas achávamos importante ter um instrumento que chegasse na mão da população em situação de rua e na sociedade”, conta Costa. Assim, começaram as primeiras edições do que viria a ser um jornal. Tudo mimeografado em folhas de sulfite, recheado com as notícias da rua, com relatos de reuniões e de encontros.
Já nos anos 1990, com a criação da Rede Rua, o jornal ganhou forma e passou a levar informações do que se passava nas ruas, bem como relatos compartilhados pelos próprios moradores para a sociedade civil. “Surgiu por conta da invisibilidade que essa população tinha e tem. Hoje, vários grupos, e até escolas, recebem o jornal. Sempre tem algum trecheiro na discussão da pauta e na produção. Já tivemos vários escritores da rua conosco e pessoas de outros estados também. As histórias são muito fortes”, ressalta Costa. Além de ser um elemento importante para a luta pelos direitos da população de rua, e uma fonte de renda, o veículo é um registro histórico. Iniciativa que, somada a tantas outras, joga luz sobre a questão social, cuja resolução passa pelo engajamento de toda a sociedade.
Na busca por fomentar equidade e justiça social para todas as pessoas, Sesc São Paulo realiza ação permanente no campo dos direitos humanos
A educação e os direitos humanos são foco permanente das ações do Sesc São Paulo por meio de programações realizadas, durante todo o ano, nas unidades ao redor do Estado. Sejam no campo artístico, do lazer, dos esportes, da saúde ou da alimentação, essas atividades visam promover a cultura do respeito, valorizando a diversidade e os princípios democráticos de maneira transversal.
Segundo Flávia Andréa Carvalho, gerente da Gerência de Estudos e Programas Sociais do Sesc São Paulo, a realização dessas ações acaba fomentando percepções críticas do reconhecimento das violações de direitos e das estruturas de desigualdade. “As ações voltadas à promoção e ao respeito aos direitos humanos são inseparáveis da história do próprio Sesc, instituição que considera a dignidade humana e a promoção do bem-estar como valores basilares, orientando todas as ações e programas em suas múltiplas dimensões”, afirma.
As iniciativas do Sesc no campo dos direitos humanos e da valorização social fazem parte de programações diversas, idealizadas pelas equipes da instituição, e também por meio de parcerias com projetos voltados à promoção da equidade e da justiça social para todas as pessoas, em especial para as populações vulnerabilizadas, incluindo pessoas em situação de refúgio e migração.
Confira alguns destaques da programação:
24 DE MAIO
7ª Feira de Ideias
Em parceria com a ONG Conectas Direitos Humanos, essa feira apresenta iniciativas que contribuem para a efetivação dos direitos humanos no Brasil.
Dias 2 e 3/12, sábado e domingo, das 11h às 18h.
SANTO AMARO
Sarauzada dos Direitos Humanos
Em celebração poética aos 75 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, feira de livros e sarau com a presença dos MCs Elizandra Souza (Sarau das Pretas) e Lucas Afonso (Slam da Ponta), além de poetas. Curadoria de Eleilson Leite.
Dia 10/12, domingo, das 11h às 18h30 (Feira de Livros), e das 17h30 às 18h30 (Sarauzada).
CINESESC E SANTO AMARO
DH Fest – Festival de Cultura em Direitos Humanos
Realizado pelo Sesc São Paulo, Instituto Vladimir Herzog e Pardieiro Cultural, o festival reúne debates, cineconcerto, filmes e documentários com temáticas relacionadas aos direitos humanos no campo da cultura.
De 6 a 10/12, quarta a domingo, horários variados.
Acesse a programação completa em sescsp.org.br/dhfest
A EDIÇÃO DE DEZEMBRO/23 DA REVISTA E ESTÁ NO AR!
Para ler a versão digital da Revista E e ficar por dentro de outros conteúdos exclusivos, acesse a nossa página no Portal do Sesc ou baixe grátis o app Sesc SP no seu celular! (download disponível para aparelhos Android ou IOS).
Siga a Revista E nas redes sociais:
Instagram / Facebook / Youtube
A seguir, leia a edição de DEZEMBRO/23 na íntegra. Se preferir, baixe o PDF para levar a Revista E contigo para onde você quiser!
Utilizamos cookies essenciais para personalizar e aprimorar sua experiência neste site. Ao continuar navegando você concorda com estas condições, detalhadas na nossa Política de Cookies de acordo com a nossa Política de Privacidade.