Expoente da cena contemporânea, a dramaturga e diretora peruana Mariana de Althaus acende a fagulha da esperança e convoca o público a repensar suas ações no mundo
Por Maria Júlia Lledó
FOTOS ADRIANA VICHI
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No cenário, folhas secas, uma mesa e um sofá ao redor do palco. O cheiro de eucalipto, em todo teatro, traz o público a uma imersão numa “floresta”. Neste ambiente, zona rural peruana, está a casa onde moram avó, mãe e filha que, em silêncio, queimam por dentro casos de abusos que vivenciaram. Por fora, acompanham, assustadas, pela janela, floresta e animais incendiados de maneira criminosa. Em Quemar el bosque contigo adentro [Queimar o bosque com você dentro], peça escrita e dirigida pela peruana Mariana de Althaus, uma das principais vozes do teatro ibero-americano da contemporaneidade, a violência começa com uma simples fagulha, a qual deixamos escapar, desatentos. Apresentado na sétima edição do MIRADA – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas, realizado em setembro, no Sesc Santos, que neste ano homenageou o Peru, Quemar el bosque contigo adentro e o segundo espetáculo de Althaus, levado ao festival La vida em otros planetas [A vida em outros planetas], trouxeram algo em comum.
Ambas as peças tocaram em feridas ainda tão presentes: a violência contra os corpos mais vulneráveis – mulheres, crianças, fauna, flora – e as injustiças sociais contra professores e alunos de escolas públicas em zonas rurais, no caso de La vida em otros planetas. No entanto, a diretora e dramaturga desdenha a resignação, e convoca o público ao exercício de empatia para a realização de uma mudança a partir desse novo olhar para o outro. “Gostaria que as minhas obras levassem os espectadores a questionar seu papel em assuntos políticos e sociais que os afetam, sem deixar de lado o prazer, a celebração da vida e aquilo que os une, sem perder o sentido do humor, que é o que permite nos aproximarmos de nossas feridas”, disse Althaus.
Também faz parte da obra de Mariana de Althaus, que em junho completou 50 anos, uma revisão histórica do autoritarismo, da violência e de conflitos no país natal. Ponto este que converge com o tema de outros encenadores ibero-americanos, debruçados sobre uma crítica à história oficial que, por séculos, excluiu uma diversidade de protagonistas e narrativas. “Creio que o teatro seja um lugar que chama essas histórias. Por isso, acredito que também vamos ao teatro para recordar, para não voltar a cometer os erros do passado, para nos perguntar o que há no passado que segue acontecendo; o que no passado nos informa sobre o nosso presente e que não conseguimos ver. Às vezes, nos vemos mais refletidos pelo passado, que por um espelho aqui, próximo”, observa a diretora. Nesta Entrevista, Mariana de Althaus fala sobre seu processo criativo, as motivações que transpõe para suas histórias encenadas no palco, de que forma o teatro testemunhal aproxima-se ainda mais do público, e como o humor pode disparar gatilhos.
Você já escreveu 26 peças, das quais dirigiu 20, e transita entre o documental, o testemunhal e o ficcional. Recentemente, adaptou uma ficção, A gaivota, de Anton Tchekhov. O que lhe atrai na escolha desses diferentes gêneros?
Na verdade, a maior parte das obras que já escrevi são ficções. Eu comecei pela ficção. Somente escrevi quatro obras de teatro testemunhal e esta – La vida em otros planetas [A vida em outros planetas] –, que é documental. Quanto ao teatro testemunhal, comecei a abordá-lo há 15 anos, mas alterno: escrevo uma obra de ficção, depois uma testemunhal. Escrevi também uma obra de autoficção, depois da pandemia, na qual a personagem é uma dramaturga, chama-se Mariana, e está em crise. E em 2024, estou fazendo uma versão própria de A gaivota, de Tchekhov. Essa é a primeira vez que adapto um texto clássico, ou parto de um texto clássico para criar algo próprio sobre meu país, sobre minha comunidade, sobre o mundo onde vivo. Então, essa é a primeira vez que monto uma obra de teatro clássica, mas com minhas palavras. Inclusive, tem outro título [Detrás ruge el lago, e em português, Atrás ruge o lago]. Antes, eu fiz uma versão de Os Irmãos Karamazov, de Dostoiévski, mas era um romance.
Na sua opinião, o teatro testemunhal chega mais próximo ao público?
O testemunhal tem uma particularidade. Quando os atores e atrizes estão no palco contando suas histórias, sem a máscara da ficção, enfrentam o pudor, a vergonha, o medo e isso é reconhecido pelo público. Assim, se estabelece uma conexão muito mais direta, sem intermediários, com a história. Como quando vamos ver uma obra de ficção, de alguma maneira, estamos sentados nas poltronas, protegidos, porque sabemos que é mentira aquilo que está acontecendo em cena. E assim, ficamos tranquilos. Mas quando dizem no palco: “Isso não é mentira. Aconteceu conosco”, essa capa que nos protegia, que nos abrigava, cai e ficamos nus diante do que se apresenta. Aí se estabelece uma comunicação muito mais direta e forte, e se produz o efeito do espelho com mais intensidade. Ou seja, se eu conto no palco algo pessoal, com generosidade, sabendo que é algo universal, o público imediatamente pensa: “Comigo acontece o mesmo”; “Eu também me sinto assim”. Então, dá-se um diálogo intenso.
Como é seu processo criativo: a escrita vem acompanhada pelas cenas que você já imagina no palco? Porque, na maioria das vezes, você escreve e dirige seus próprios espetáculos.
Sim. Eu sempre imagino os corpos no palco em uma situação de conflito. E essa imagem me leva a escrever. Primeiro, escrevo várias versões do texto sozinha, às vezes quando faço teatro documental, escrevo paralelamente às entrevistas que faço com os artistas que estarão na obra. Então, esse material serve para que eu escreva. Chego ao primeiro dia de ensaio com uma boa versão, mas que na verdade é uma desculpa para começar outra etapa, que é a mais interessante: como levar essas palavras ao palco e como convertê-las num espetáculo? Aí sim, o texto vai se transformando conforme o que vai acontecendo com os dispositivos cênicos que encontramos: as necessidades do grupo de atores, as minhas novas ideias ou nossas novas ideias. Com isso, o texto que chega ao primeiro dia de ensaio é muito diferente daquele que escrevi em casa.
O teatro é um espaço privilegiado para pensarmos enquanto comunidade, mas também para pensar em nossas feridas esquecidas ou ocultas
Na sétima edição do MIRADA, três ramos deram suporte à pesquisa curatorial desenvolvida para compor a programação: o sonho, a floresta e a esperança. Gostaria que falasse da dimensão do sonho e da esperança, que estão presentes em seus espetáculos, principalmente em A vida em outros planetas, ao trazer a resistência e contribuição dos professores de escolas rurais peruanas para milhares de jovens. Como você chegou até essas histórias e de que forma pensou em adaptá-las para o teatro?
Acredito que A vida em outros planetas conta a história da possibilidade de sonhar. Porque no Peru e, imagino que, em muitos lugares da América Latina, há muitos meninos e meninas sem acesso à educação de qualidade e que não têm, portanto, sequer a possibilidade de sonhar com uma vida melhor que a de seus pais e avós. E são esses professores os protagonistas dessa obra, que dão a essas crianças a possibilidade de se desenvolverem de outra maneira e sair da pobreza. Portanto, de alguma maneira, o espetáculo conta a história de vários sonhos. Não se sabe se eles serão concretizados, mas ter a possibilidade de sonhar em nosso país é um privilégio. Tive acesso a essas histórias porque li um livro que se chama Desde el corazón de la educación rural [Desde o coração da educação rural (2023)], de Daniela Rotalde, uma peruana que reuniu histórias de diferentes professoras de um programa chamado Ensina Peru, que consiste em que egressos de universidades peruanas passem dois anos ensinando em escolas rurais abandonadas pelo Estado. São eles que dão esperança a essas crianças, dando-lhes ferramentas para enfrentar o mundo, mas também, para que creiam nelas mesmas. Essas histórias me sacudiram e me deram muita esperança, mas também, muita raiva, que são os dois pré-requisitos de uma história para que eu possa contá-la. Também tive acesso ao depoimento de outros professores e professoras. Reuni tudo isso e decidi criar uma obra de teatro.
Além de todo esse material, neste espetáculo, os atores também compartilham suas próprias experiências em escolas públicas, correto? Como foi essa contribuição?
Sim. Decidimos que os atores e atrizes que interpretariam esses professores tinham que ter passado pela experiência de alunos de escolas públicas, inclusive, de escolas rurais. Então, eles têm, em cena, a coragem e a generosidade de compartilhar episódios sobre seus colégios, mas também as dificuldades que seus pais tiveram, por exemplo, em escolas rurais, ou em escolas públicas muito precárias. Além disso, contam como seguiram adiante apesar de maus professores ou, talvez, graças a um professor que olhou para eles, os valorizou e lhes deu as ferramentas para seguir adiante.
Esse potencial de transformação da escola que vemos na peça é essencial para o desenvolvimento do pensamento crítico, principalmente em tempos de disseminação de fake news e discursos de ódio. Como analisa esse papel da escola hoje?
A escola tanto pode lhe dar a possibilidade de desenvolver seus valores e qualidades, como também, mutilar esses aspectos. A escola também é esse espaço onde, de repente, é possível crescer valorizando nossas especificidades e convertê-las em ferramentas para uma mudança, e para o pensamento crítico. Há uma educação tradicional muito vertical que põe o professor acima dos alunos, levando-os a uma ordem, na sala de aula, por meio de métodos punitivos.Uma verticalidade violenta, que inibe não somente os afetos, mas também a autoestima, a autovalorização e a possibilidade de se fazer perguntas sobre o mundo, sobre o espaço educativo, sobre sua própria vida e sobre seu país. Apesar disso, eu acredito que a escola é esse lugar ideal para exercitar justamente esse músculo do pensamento crítico, para se fazer perguntas sobre o mundo.
Essa capacidade de provocar reflexões foi uma das características que lhe encantou no fazer artístico?
Sim, claro. Mas no teatro não vamos somente para refletir. Vamos para sonhar e, também, vamos para encontrar a nós mesmos. Desde o princípio, eu via dessa forma, e hoje, mais do que nunca, acredito que a maioria das coisas com as quais vivemos – celular, computador etc. –, e como está organizada a nossa vida, nos afastam de nós mesmos. De nosso mundo interior, de nossas próprias necessidades. E o teatro, que é um lugar onde vamos ver o outro, também é um espelho que nos permite olhar para nós mesmos. Nos aproximar dos demais e de si. E, também, nos permite sentir menos sozinhos, porque estamos sempre pensando que somos defeituosos, que somos os únicos que têm uma ferida, que sentimos dor e que somos diferentes. Até que, no teatro, nos damos conta de que há outras pessoas que sofrem, assim como você, e não necessariamente pelas mesmas razões. Isso também pode nos levar a refletir sobre como o mundo está nos configurando de uma maneira. Como essa ferida está sendo provocada por um contexto político e que não necessariamente é você essa peça que não funciona no sistema.
Sobre o espetáculo Quemar el bosque contigo adentro [Queimar o bosque com você dentro], a violência de gênero e a violência contra a natureza dialogam. Como construiu esse paralelo entre esses dois tipos de violência, contra dois corpos tão distintos e tão similares?
Essa é uma obra de ficção que escrevi ao longo de muitos anos, enquanto escrevia outras obras, e que foi ganhando forma. Comecei com a história de três mulheres: uma avó, uma mãe e uma neta que vivem em um espaço rural ameaçado pelas violências da natureza, mas também pelas violências de gênero. Três mulheres assediadas por diferentes tipos de perigo no seu entorno. Enquanto eu escrevia, começavam a aparecer os animais feridos, como um reflexo das próprias feridas das três mulheres. Então, a obra passou a ser não sobre violência de gênero, mas sobre as violências patriarcais que atingem todos os corpos vulneráveis. Quer seja o corpo das mulheres ou o corpo das crianças, quer seja o corpo dos animais ou da natureza. A natureza, como esse corpo vulnerável, sempre exposta às violências dos seres humanos.
Outro tema também recorrente em sua carreira é revisão histórica. Seu espetáculo Ruído, por exemplo, foi montado no Brasil em 2022, e traz as suas memórias dos anos 1980. Acredita que seja possível falar sobre o passado de forma que o público mais jovem possa se identificar com ele e se comparar?
O teatro é uma arte que convoca todos os tempos. Se colocamos algo no palco, imediatamente sentimos os ecos do passado e do presente. O teatro é um espaço privilegiado para pensarmos enquanto comunidade, mas também para pensar em nossas feridas esquecidas ou ocultas. No cinema, talvez isso seja mais difícil, mas o teatro sempre nos leva a revisitar o passado e isso é fundamental, sobretudo, nesses tempos – creio que, ao menos, na Hispanoamérica, a memória esteja ameaçada. Temos medo da memória, medo de recordar os desaparecidos, os mortos, recordar que houve governos autoritários e que agora, voltamos a vê-los em alguns de nossos países. No Peru, por exemplo, temos muito medo da memória. E o Estado persegue constantemente todos os espaços e oportunidades de memória. Há também um grande negacionismo sobre o que aconteceu. E isso acontece na Argentina, na Espanha… Creio que o teatro seja um lugar que chama essas histórias. Por isso, acredito que também vamos ao teatro para recordar, para não voltar a cometer os erros do passado, para nos perguntar o que há no passado que segue acontecendo; o que o passado nos informa sobre o nosso presente e que não conseguimos ver. Às vezes, nos vemos mais refletidos pelo passado, que por um espelho aqui, próximo.
Acredito que também vamos ao teatro para recordar, para não voltar a cometer os erros do passado, para nos perguntar o que há no passado que segue acontecendo; o que o passado nos informa sobre o nosso presente e que não conseguimos ver
Espetáculo Quemar el bosque contigo adentro, encenada no MIRADA – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas, em setembro deste ano, no Sesc Santos.
Essa revisão histórica, seja no teatro peruano ou no teatro brasileiro, é um dos muitos pontos de convergência que existem entre as produções dramatúrgicas desses países?
Sim. Claro que há uma grande necessidade de memória em nossos países e o teatro acolhe essa necessidade. Vemos essa questão, constantemente, no teatro latino-americano. Histórias que se debruçam sobre o passado com a certeza e a intuição de que há ali uma informação criptografada que está nos faltando para compreendermos o que está acontecendo hoje. Por isso é fascinante o teatro, porque ele nunca vai deixar de refletir sobre todos os lados: sobre o hoje, mas também sobre o ontem.
Na peça Ruído, o humor está presente – caso da personagem Augusta, mãe da família, que assiste à televisão compulsivamente e se sente orgulhosa por conseguir vinho argentino contrabandeado –, apesar de retratar, um cenário de escassez, violência e terrorismo. Como fazer uso do humor para tratar temas sensíveis?
Às vezes, o humor é a única forma de tocar a ferida. Essa obra, Ruído, que foi montada em São Paulo [pela Cia do Escombro], é a obra mais engraçada que eu já escrevi e, curiosamente, ela trata sobre o momento mais difícil da minha vida, enquanto contexto histórico. No meu caso, minha adolescência foi o período de conflito armado no Peru. Em Lima, havia carros-bomba, apagões, assassinatos e crise econômica. Minha adolescência se deu num entorno protegido e privilegiado, mas toda vez que íamos ao cinema, por exemplo, tínhamos que ensaiar como nos jogar ao chão caso houvesse bombas etc. Então, a forma que eu encontrei para falar desse momento foi por meio do humor. Talvez seja uma das obras mais engraçadas e, ao mesmo tempo, a mais dolorida.
Ao longo das últimas décadas, como você avalia a participação e reconhecimento das mulheres nos campos da direção e da dramaturgia no Peru?
Melhorou muito a participação das mulheres tanto na dramaturgia quanto na direção nos teatros de Lima, mas não sei se posso estender essa observação ao teatro feito em outras regiões do país. Em Lima, elevou a demanda por diretoras e dramaturgas. Algumas estão desenvolvendo uma carreira muito interessante e de maneira constante. No entanto, constatamos uma maioria masculina nesses postos, não pela falta de demanda e de oportunidades, mas por uma questão estrutural: em uma sociedade tão machista e patriarcal, ainda custa muito às mulheres acreditar que elas tenham uma voz importante para decidir ocupar postos de liderança.
Por fim, o que você gostaria de provocar no público com suas peças?
Talvez hoje, cada vez mais, tenhamos dificuldade para escutar o outro. Estamos fechados em nossa própria verdade, em nossas próprias certezas. É mais difícil dar esse passo, tentar entender aquele que pensa de forma diferente da gente. E o teatro é esse lugar privilegiado em que um vai escutar o “inimigo”, aquele que não pensa como você, aquele que, na rotina, você assinalaria como “o mau”, “o incorreto”, “o injusto” e, talvez, no teatro possamos perceber que somos mais parecidos com ele do que sequer imaginávamos. E isso pode ajudar a nos compreender melhor e, também, a compreender o mundo. Acredito que o teatro seja um espaço privilegiado para provocar perguntas na comunidade. Gostaria que as minhas obras levassem os espectadores a questionar seu papel em assuntos políticos e sociais que os afetam, sem deixar de lado o prazer, a celebração da vida e aquilo que os une, sem perder o senso de humor, que é o que permite nos aproximarmos de nossas feridas.
Assista a trechos da entrevista com a dramaturga e diretora peruana Mariana de Althaus, realizada na sétima edição do MIRADA – Festival Ibero Americano de Artes Cênicas, no Sesc Santos, em setembro de 2024.
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