Durante muito tempo, as mulheres foram proibidas ou desestimuladas a praticar corridas de longas distâncias. O argumento era de que, devido à “fragilidade feminina”, os exercícios físicos mais intensos poderiam ser perigosos para a saúde delas.
Verônica Hipólito, Neide dos Santos e Luciana Mello estiveram no Sesc Campo Limpo, durante o Sesc Verão 2023, para debater sobre essa desigualdade na participação feminina nos esportes, compartilhar um pouco de suas experiências nas corridas e na prática de atividades físicas. O encontro teve mediação de Gabriela Graça, que é coordenadora de programação da Unidade.
Aproveitamos a oportunidade para entrevistá-las e mostrar um pouco do que rolou nesse encontro especial.
A atleta paralímpica Verônica Hipólito conta que o machismo é um assunto importante a se colocar em pauta no esporte. “A gente fala sobre os homens mais rápidos, mais fortes, mais isso, mais aquilo, mas não falamos sobre a mulher”, ressaltou.
Para ela, abordar o tema com mulheres tão potentes foi a oportunidade de inspirar e debater políticas necessárias para garantir o espaço para a prática feminina. “Quando a gente fala sobre mulheres, sobre o esporte, a gente fala também sobre segurança pública, porque como é que uma mulher vai fazer seu treino sozinha, muitas vezes sem ser assediada?”, disse.
A corredora Neide dos Santos também destacou a importância do encontro para falar sobre o tema para pessoas mais jovens, que vieram prestigiar o evento: “No atual contexto se faz importante falar de arte, cultura e esporte para crianças e mulheres, com mulheres”, destacou.
Verônica refletiu sobre a desigualdade que o gênero feminino enfrentou na história do esporte, em épocas que foram proibidas de praticar ou até terem que solicitar autorização de um homem para viajar para grandes competições. Mesmo com suas conquistas, ela comenta que ainda se surpreende com algumas coisas, como a ausência da presença feminina em cargos como os de treinadoras, coordenadoras, diretoras, presidentes de confederações e comitês, e o fato de muitas atletas serem obrigadas a utilizar roupas que reforçam estereótipos femininos.
“Me assusta muito quando eu ainda vejo algumas modalidades, as mulheres, equipes femininas recebendo roupas hipersexualizadas e não tendo direito de escolher. Por exemplo: nos jogos de praia, elas têm que usar biquínis e queriam shorts, mas não podem. Então, tem muito a conquistar, mas tenho certeza de que estamos no caminho certo”, disse Verônica.
A cantora Luciana Mello também ressaltou essas desigualdades que estavam presentes em tudo, até mesmo no atraso da concessão de direito ao voto para as mulheres. Apontou ainda, que é importante dividir experiências, para que possa ser conquistado cada vez mais espaço para a prática feminina, com maior igualdade salarial.
Adepta do Kickboxing, a cantora conta que nunca passou por situações de preconceito, já que treina de maneira amadora e não participa de competições, mas percebe que quando revela que é praticante dessa luta, muitas pessoas reagem com receio, por considerarem a arte marcial uma prática violenta, relatando que isso acontece por falta de conhecimento das pessoas. “É um esporte, uma luta com uma filosofia incrível por trás”, disse Luciana.
Falando sobre representatividade, Verônica deu como exemplo a história de sua própria família. Nos contou que sua mãe não era uma atleta do alto rendimento, mas tinha a prática de atividades físicas como prioridade, mesmo que as pessoas criticassem o fato dela ter aqueles momentos para prática ao invés de apenas se dedicar às tarefas e à rotina da família.
“Ela entendia que, antes de tudo, era ela. A família vinha também, mas ela tinha que se cuidar também. Tinha que estar feliz”, comentou.
Campeã mundial nos 200m rasos e vice-campeã mundial nos 100m rasos no Campeonato Mundial de Para-Atletismo Lyon 2013, a atleta sabe que inspirou outras mulheres, não somente com a corrida, mas com outras práticas. Mulheres com deficiência de alguma forma viram em mim que poderiam combater um sistema. Entenderam que tinham direitos e que o machismo não podia ser maior do que a nossa voz. Que o machismo não deve ser maior do que a nossa luta. A luta das mulheres”, finaliza.
Figura que também inspirou muitas mulheres para a prática de corrida, a baiana radicada em São Paulo desde 1967, Neide dos Santos é corredora e mora no Capão Redondo. Ela trabalhava de dia em uma oficina de costura, estudava à noite e, nos fins de semana, corria pelas ruas da comunidade.
Mãe de três filhos, superou o luto, abusos e muitas adversidades para ensinar corrida a crianças e mulheres. É idealizadora e gestora do “Projeto Vida Corrida”, que busca a transformação social de uma comunidade marcada por violência e desigualdade. Conta que desde a década de 90, seu grande objetivo é inspirar mais e mais mulheres, para que tenham acesso à prática esportiva.
Um dos exemplos é Maria Gonçalves, que no auge de seus 60 anos sonhava em correr a São Silvestre, e realizou seu sonho com o apoio de Neide. “Em 2012, aos 75 anos, Maria foi a única mulher da sua faixa etária a cruzar a linha de chegada da Maratona Internacional de SP. Atualmente, com 86 anos, continua fazendo caminhadas matinais”, conta Neide.
A ativista social conta que o maior preconceito que presenciou foi quando era a única mulher a praticar atletismo em sua comunidade e treinava com homens. Além disso, recebia críticas por conta do tamanho de suas roupas.
Verônica também enfrentou situações desse tipo: a que mais marcou aconteceu durante os jogos Paralímpicos do Rio, quando alcançou a medalha de prata inédita na história do Brasil, na corrida de 100 metros rasos. Após a conquista o repórter fez uma pergunta que a surpreendeu.
“Primeira pergunta do repórter foi se o tamanho dos meus shorts não incomodaria meu pai e o meu ex-namorado na época. E não era sobre o tamanho do meu short. Não deveria ser sobre o tamanho do meu top, não deveria ser sobre o perfume que eu estava usando ou sobre o que eu comi. Não deveria ser sobre isso. Tinha conquistado uma medalha na maior competição do mundo!”, lembra a atleta.
Podemos notar que, ainda que barreiras tenham sido superadas, há muito o que se conquistar para, de fato, alcançarmos total igualdade de gêneros no acesso ao esporte e no desenvolvimento de atletas e paratletas.
Assim, o evento que encerrou a programação do Sesc Verão 2023, trouxe um recorte do cotidiano de diferentes personagens femininas que lutaram e seguem com vontade de ir cada vez mais longe.
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