Outro dia perguntei a uma criança dentro do terreiro de Candomblé porque era bom ser criança. Ela imediatamente me respondeu que adorava brincar de mundo. Eu, no mar de minha curiosidade, perguntei como era essa brincadeira. Ela disse que era só inventar um mundo diferente desse que a gente vive – que é chato – e ser o que quiser.
As crianças são as potências de transformação do mundo. Os nossos mais velhos e mais velhas dizem que as crianças são como sementes que vão povoar a terra como árvores, com o girar do tempo. Poeticamente, são essas mesmas árvores que vão fornecer oxigênio para a continuidade da vida. Nessa roda entendo a infância como esse estado de presença do conhecer. Os corpos se lançam ao jogo como simulação da vida, inventando os seus mundos paralelos que lhe ajudam a reelaborar os muitos códigos linguísticos e sociais que são impostos nesta sociedade.
A brincadeira em roda, dentro dos princípios africanos, é um simulacro dos ciclos de vida coletivizada, ensaiando as passagens do tempo que giram sobre si, e sob o círculo maior da sociedade. O estado da circularidade, da roda, do cirandar, coloca as crianças, adultos e brincantes na horizontalidade das relações, exercitando as diferenças, os distintos corpos e existências, importando somente a pulsação do grupo. Brincar, experimentar estados de presença em ciranda, se torna um exercício complexo de relacionamento com este mundo, porque os corpos serão imbuídos do rito, alinhavados com a dança, o canto, a relação espacial e a própria manutenção da roda.
No território que hoje compreendemos como Congo, no tempo pré-colonial, existia uma função social – que podemos aproximar da ideia de uma profissão – chamada Ndezi, a cuidadora de crianças, traduzida pelo filósofo congolês Bunseki Fu-Kiau como babá (baby-sitter). Obviamente que ele nos faz uma provocação política para deslocar os valores de educação que temos hoje ao empregar esse termo. Cuidar de crianças para os povos Bakongo é um gesto complexo, justamente pela capacidade que estas têm de enxergar o mundo com o brilho nos olhos, longe de tantos paradigmas que a fase adulta terá que lidar, nem sempre de forma amistosa.
Ser Kindezi, exercitando a arte congo de cuidar de crianças, se configura como um lugar de honraria e respeito perante comunidade, porque a/o Ndezi não só cuida das crianças, como organiza o seu repertório educacional, discutindo sobre valores sociais, históricos, éticos, estéticos, elaborando e mediando o entendimento do mundo, fortalecendo as potências singulares de cada corpo, e protegendo, sistematicamente, dos desafios que reservam os próximos ciclos de desenvolvimento. A/O Ndezi experiente se tornará uma/um anciã/o, um/a ancestral respeitosa/o por todos, seguindo sua contribuição para este mundo para além da vida terrena; fazendo a integração entre as gerações, entre os mais velhos e mais novos, mantendo vivo o estado permanente da circularidade.
Ao pensar nas rodas, nas giras, nas cirandas, nos rodopios é fundamental a expansão de seu sentido educativo, conferindo às crianças mais do que apenas a brincadeira em si, mas os experimentos do vir a ser. A criança deve ser criança, não pular os seus ciclos de vida, para que não comprometa sua lubata wa mvângila (período de criatividade), como nos lembra Fu-Kiau.
O estado de roda exercita um campo de visão amplo, no qual é possível conhecer todas as partes, todas as pessoas que ali estão. Isto porque não importa a posição em que você esteja, a visão será sempre do todo. Aquilo que está atrás de nós e não pode ser visto pelos nossos olhos é facilmente decifrado pelos nossos corpos, os quais detém a faculdade de ver, ouvir, sentir e falar, sem mesmo que eu precise usar os meus olhos, boca, nariz, ouvidos. Na roda as outras pessoas me ajudam a contar aquilo que não vejo atrás de mim, qualquer que seja seu lugar. Exercitamos a confiança no coletivo, compreendendo as diferenças que ali dão às mãos.
Infelizmente na fase adulta vamos nos distanciando da pureza dos olhos do mundo que tudo é interessante, porque tudo é sempre novo. Que a circularidade, as rodas, mantenham viva a conexão intergeracional, fazendo-nos aprender com as sementes de transformação [crianças], porque os seus corpos ainda não se limitaram a aprender. E que as pessoas deste tempo se inspirem nos valores legados de nossos/as ancestrais africanas/os e indígenas, valorizando a infância como uma potência do ser/saber. Que possamos desaprender, girando de mãos dadas no ritmo do brincar!
Tássio Ferreira
Soteropolitano, Multiartista da Cena, filho de Kisimbi, antirracista e antifascista, Professor Adjunto da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), Doutor em Artes Cênicas pelo Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas (PPGAC/UFBA), Líder do grupo de pesquisa Aldeia – Núcleo de Pesquisas Afro-brasileiras em Artes, Ensinagens e Tradições na Diáspora (UFSB/CNPq), Taata dya Nkisi responsável pelo Terreiro Unzó ia Kisimbi ria Maza Nzambi (Simões Filho-Ba).
Para celebrar a importância do brincar e criar oportunidades para que as crianças vivenciem experiências lúdicas diversificadas, o Sesc São Paulo participa, de 25 de maio a 2 de junho, da Semana Mundial do Brincar. O projeto é uma iniciativa da Aliança pela Infância e acontece desde 2009, inspirado pelo Dia Mundial do Brincar, celebrado em 28/5. Com o tema “Vem pra roda – No ritmo do brincar”, a proposta desta 15ª edição é exaltar o que gira em torno da roda, símbolo dos movimentos cíclicos da vida, de ancestralidade e de intercâmbios geracionais.
Conheça a programação completa do Sesc São Paulo na Semana Mundial do Brincar: sescsp.org.br/semanamundialdobrincar
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