Leia a edição de JUNHO/24 da Revista E na íntegra
Diariamente, consumimos em nossos celulares – conscientemente ou não –, uma abundância de posts e vídeos que transitam entre o cômico e o trágico, entre o que é notícia e o que é desinformação. Desde vídeos engraçados de cachorros e gatos a denúncias de injustiças; do último lançamento de filme ou de série em plataformas de streaming a discursos de ódio. Nessa rotina de conteúdos que parecem “rolar” infinitamente, fica em xeque o desafio de selecionar conteúdos, distinguir fake news e até de elaborar uma montanha-russa de emoções que atravessam quem está atrás da tela. Por isso, pesquisadores alertam para os efeitos da “infoxicação” – termo cunhado pelo físico espanhol Alfons Cornella, na última década do século 20 –, esse excesso de informações que está contribuindo para uma sociedade cada vez mais desinformada, ansiosa e cansada.
Segundo o diretor-adjunto da Associação Brasileira de Comunicação Pública, Michel Carvalho da Silva, doutor em ciências humanas e sociais pela Universidade Federal do ABC (UFABC), nesse cenário de hiperestimulação sensorial, quem não sabe discernir qualidade e quantidade de informação está mais propenso a ficar “infoxicado”. “Até porque as mentes humanas possuem capacidade limitada de atenção e sofrem com tantos dados e notícias. Daí a preocupação com as campanhas de desinformação que, valendo-se dessa fadiga informativa generalizada, propaga crenças equivocadas, geralmente embaladas numa linguagem simples e direta, como observamos em alguns memes ou em vídeos engraçadinhos”, explica Silva, que ministrou o curso A era da infoxicação: a produção da ignorância em ambientes hiperconectados, no Centro de Pesquisa e Formação (CPF) do Sesc São Paulo.
Sem vilanizar os celulares ou as mídias sociais, a questão por trás desse fenômeno é a consciência e o bom uso do tempo gasto nas redes, de acordo com o professor da pós-graduação em comunicação da Faculdade Cásper Líbero Luís Mauro Sá Martino, doutor em ciências sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). “Cada postagem, cada troca de mensagens, tem um conteúdo. E, para dar conta disso, precisamos de tempo. Esse é o problema do excesso de informações consumidas em alta velocidade: não há como, de maneira instantânea, dar conta dessa quantidade de dados”, pondera. Afinal, como traçar caminhos para evitar a infoxicação? Neste Em Pauta, Silva e Martino levantam reflexões e sugestões para lidar com esse cenário.
Por Michel Carvalho da Silva
Se para você o cansaço de ficar no celular, atualizando o feed de notícias a todo momento, é equiparado ao de treinar na academia sem sair do lugar, talvez você esteja ficando infoxicado. O neologismo “infoxicação”, criado pelo físico espanhol Alfons Cornella em 1995, tem relação com o consumo desmedido de informações – de todo tipo e qualidade –, que pode afetar o bem-estar, a saúde emocional e até mesmo a qualidade do tempo das pessoas no dia a dia. Para o autor, esse fenômeno é consequência de um mundo onde a exaustividade (“tudo sobre”) prevalece sobre a relevância (“a coisa mais importante”).
No atual ecossistema comunicativo – hiperconectado e caótico –, somos inundados por dados e mensagens, produzidos tanto por profissionais da comunicação quanto por amadores, tanto por humanos quanto por dispositivos automatizados. A abundância de informações – verdadeiras ou não – torna complexa a busca por fontes idôneas e orientações confiáveis quando se precisa, como se verificou durante os períodos mais críticos da pandemia da Covid-19. Esse cenário de excesso informativo favorece a infoxicação, de tal modo que as pessoas não conseguem se fixar naquilo que é importante e pode impactar a sua vida e de seu entorno.
Numa analogia simples, o excesso informativo é como estar num rodízio de pizza. Quando ainda nem terminamos de digerir a primeira fatia, já chega outro sabor. No caso da dieta midiática, mal atualizamos o feed de notícias e já somos notificados por mais uma mensagem, num processo de retroalimentação, dado o grau de centralidade das mídias em nossas vidas. Nesse cenário de hiperestimulação sensorial, aqueles que confundem quantidade de informação com qualidade são os mais propensos a ficarem infoxicados. Até porque as mentes humanas possuem capacidade limitada de atenção e sofrem com tantos dados e notícias. Daí a preocupação com as campanhas de desinformação que, valendo-se dessa fadiga informativa generalizada, propagam crenças equivocadas, geralmente embaladas numa linguagem simples e direta.
Diante desse contexto de sobrecarga informacional, crescem as preocupações acerca dos potenciais danos da infoxicação ao ser humano, que vão desde a ansiedade e estresse, até sintomas somáticos que prejudicam a concentração e o pensamento crítico. O excesso de trabalho cognitivo, que envolve a assimilação de mais informações do que a capacidade do ser humano permite, provoca fraturas no sono e impede o repouso. Ao criticar o caráter inexorável do regime 24/7, Jonathan Crary afirma que “o tempo para descanso e regeneração dos seres humanos é caro demais e não é estruturalmente possível no capitalismo contemporâneo”, em 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono (Ubu, 2016).
A infoxicação dialoga com a patologia FOMO, uma sigla em inglês para fear of missing out, que, traduzida para o português, significa “medo de ficar de fora” do que está acontecendo, principalmente no ecossistema digital. A FOMO é caracterizada por uma ansiedade relacionada ao exagerado uso de celulares e de plataformas digitais. Essa sensação de medo produz um ritual de checagem constante de aplicativos, em que o sujeito sente necessidade de ficar olhando o tempo todo o feed de notícias e, quando não consegue, como no trânsito ou no trabalho, pode sentir irritação.
A chamada “era da infoxicação” contribui para a produção sistemática da ignorância, isto é, do “não saber” ou da “privação de conhecimento”. Em Homo Deus (Companhia das Letras, 2016), Yuval Noah Harari argumenta que, antigamente, a censura oficial funcionava bloqueando o fluxo de informação. Já no século 21, ela o faz inundando as pessoas de informações irrelevantes. O autor chama a atenção para o fato de que hoje não sabemos mais no que prestar atenção e, na maior parte do tempo, passamos o dia discutindo questões secundárias. “Em tempos antigos, ter poder significava ter acesso a dados. Atualmente, ter poder significa saber o que ignorar”, sustenta Harari.
De fato, ambientes infoxicados favorecem campanhas de desinformação, que corroem o tecido social e geram um sentimento de ceticismo generalizado em relação às instituições tradicionais de construção e validação do conhecimento, como o Estado, a imprensa profissional e, sobretudo, a ciência. A agnotologia, conceito difundido por Robert Proctor para indicar o estudo da promoção da ignorância e da incerteza em campos nos quais o consenso científico está bem estabelecido, chama a atenção para técnicas desenvolvidas por agentes políticos e econômicos a fim de confundir grupos de interesse acerca da realidade em que vivem.
Pioneira na produção deliberada de ignorância, a indústria do tabaco investiu pesado em sua campanha, por décadas na mídia, para desacreditar as pesquisas que relacionavam o consumo de cigarro ao câncer de pulmão. Hoje, o negacionismo climático conta com alguns influenciadores digitais para contrapor a tese de que a temperatura do planeta está aumentando e que essa escalada é produto da ação humana. Mais do que propagar desinformação, os produtores de ignorância têm o objetivo de gerar controvérsias, como o movimento antivacina ou os grupos de extrema-direita no Brasil, que questionam a integridade das urnas eletrônicas.
Evidentemente, todos somos ignorantes em algum grau e em determinados assuntos. Proctor explica que existem diferentes modalidades de ignorância: a passiva (omissão, lacuna); a seletiva (por hierarquização, ao focarmos nisso ao invés daquilo); e a ativa (por decisão consciente). Também existe a chamada ignorância virtuosa, que se apresenta como resistência a um saber indesejado ou perigoso. Quem nunca escutou a frase: “Não sei nem quero saber e tenho raiva de quem sabe”? Sem dúvida, desconhecer certos fatos nos traz conforto. No entanto, para viver em sociedade é preciso ter uma compreensão compartilhada da realidade. Por isso, a produção deliberada de ignorância é um problema para a gestão pública, principalmente quando, por exemplo, se tenta mitigar os danos de uma pandemia.
No final dos anos 1990, os “ciberotimistas” acreditavam que a expansão da internet representaria um salto no desenvolvimento humano. Pensava-se que, de posse de dispositivos digitais, as pessoas teriam acesso a um grande repositório de conhecimento, materializando o mito do sujeito iluminista bem-informado, que se guia pela razão. Porém, o que verificamos hoje é uma parcela significativa da sociedade que se orienta por informações sem lastro com a realidade ou por teorias conspiratórias. A questão não é simplesmente de fluência, mas de capacidade analítica para selecionar, distinguir e hierarquizar as informações em circulação no ecossistema midiático. Para isso, é preciso ter momentos de desconexão, repouso e ócio, o que paradoxalmente contraria esse sujeito neoliberal, que opera sob a égide do imperativo contemporâneo da atualização e não tem tempo para refletir sobre o que consome nas redes sociais.
Por Luís Mauro Sá Martino
Você já esteve em algum lugar com barulho, muito barulho, a ponto de não mais conseguir distinguir cada um dos sons? Há vários ambientes onde isso pode acontecer, seja nas ruas de uma cidade em dia de congestionamento, em uma reunião de trabalho mais acalorada, ou mesmo em um bar com música ao vivo e um sistema de som particularmente desregulado. Depois de um tempo, por maior que seja o esforço, todos os sons se misturam transformados em ruído. É impossível encontrar qualquer sentido e, depois de um tempo, é comum a pessoa se sentir atordoada.
Em música, esse tipo de agrupamento sonoro às vezes é chamado de cluster, ou “aglomerado”. É o que acontece se você apertar várias teclas juntas de um piano com a palma da mão. Não é possível distinguir o som de cada nota, e a impressão é mais de um ruído do que de música. É quase um paradoxo: há muitos sons ao mesmo tempo e, por conta disso, não é possível distinguir – ou entender – nenhum. Essa é a conexão para entender um fenômeno contemporâneo poderoso, mas quase invisível: o cansaço decorrente do excesso de informações. Existe um termo para isso, criado pelo físico espanhol Alfons Cornella: infoxicação, resultado de “informação” e “intoxicação”. Assim como em um cluster musical, você está ouvindo muitos sons, porém, não consegue distinguir nenhum, o excesso de informação pode resultar, paradoxalmente, em informação nenhuma.
“Que mal há nisso?”, você pode perguntar. A rigor, nenhum. Pode ser entediante esperar na fila do ônibus ou ficar sem fazer nada durante um percurso urbano de transporte público. Redes digitais oferecem entretenimento rápido e aparentemente sem custo (a discussão do “aparentemente” é longa, por isso fica para outro dia). Também faço isso às vezes – ultimamente tenho acompanhado posts de filhotes de tartaruga e capivaras. Mas há efeitos colaterais, e precisamos saber o que estamos fazendo. Esse cenário pode estar contribuindo para criar pessoas cansadas, ansiosas e desinformadas.
Logo nas primeiras horas da manhã, uma pessoa conectada em qualquer rede social já teve acesso a centenas de posts. Nos ônibus e trens de qualquer grande cidade, a imagem de pessoas olhando para a tela de seus celulares, passando o dedo na tela para ver a próxima postagem é comum. Se você prestar atenção – nas pessoas, não na tela – e observar a velocidade do movimento, vai notar que os olhos não param mais do que um segundo em cada post. Raramente algo merece mais tempo, dez ou 12 segundos.
Essa quantidade de informação vai além de nossa capacidade cerebral. Nossa atenção, até onde podemos saber, é limitada. Diante de um nível muito alto de dados, nossa capacidade de gravar e absorver se dilui. Em situações nas quais você precisa mesmo manter a concentração horas a fio em uma tarefa, o resultado é um esgotamento mental, às vezes mais difícil de resolver do que o cansaço físico. Nas redes digitais, como não há essa obrigação, o resultado é o oposto – uma intensa dispersão.
Cada post chama a atenção durante um tempo mínimo, causa um efeito igualmente mínimo e é arrastado para cima, substituído pelo próximo e recomeçando a cadeia. Depois de algumas horas, você viu centenas de informações, vídeos, letras coloridas, danças, anúncios – lembra-se do “aparentemente” sem custo? – e pode se perguntar: quanto disso você reteve? Seus olhos provavelmente estarão cansados da luminosidade da tela, sua mente recebeu milhões de bits de informação e o resultado, exceto por alguns posts compartilhados, talvez seja nenhum.
Nosso cérebro, continuamente estimulado, é sempre convocado para ficar em estado de alerta. Nossa sociedade parece ter perdido a ideia de “tempo livre”, e qualquer segundo sem atividade é imediatamente preenchido por informações, seja a troca de mensagens, seja o post na mídia digital ou conferindo alguma coisa do trabalho no aplicativo de produtividade. A próxima postagem pode ser sensacional, trazer a recompensa que estamos esperando, ou o alerta do grupo da família ou do trabalho pode significar uma demanda imediata.
A velocidade do humano parece estar cada dia mais ligada aos ritmos do digital, no qual tudo é instantâneo – ao que parece. O instante se tornou a medida de tempo predominante no mundo contemporâneo. Um dos resultados possíveis desse cenário pode ser a ansiedade decorrente dessa expectativa em relação às trocas de mensagens e às interações em redes digitais.
Até aqui falamos das questões técnicas e de forma. Mas, cada postagem, cada troca de mensagens, tem um conteúdo. E, para dar conta disso, precisamos de tempo. Esse é o problema do excesso de informações consumidas em alta velocidade: não há como, de maneira instantânea, dar conta dessa quantidade de dados. Pode ser um pouco contra intuitivo, porém, em quantidades muito altas, informação pode gerar desinformação.
Sem dúvida, a informação é importante. Como professor, seria a última pessoa a falar o contrário. No entanto, ela não basta. É necessário transformá-la em conhecimento, e isso leva tempo – exatamente o que não temos. Para isso, você precisa contrastar esse dado novo com todo um repertório anterior, formado de outros saberes, experiências de vida. É necessário recorrer à memória e, por que não, à imaginação. Isso demanda um período de reflexão sobre o que está na tela, diante de nossos olhos. Quando isso não acontece, há o risco de você tomar a informação por seu valor nominal, fora de contexto, distante de suas implicações. E, na velocidade das mídias digitais, antes de passar para o próximo post, existe um risco ainda maior – o de você acreditar nessa informação sem maiores cuidados.
“Então, é só acabar com as redes e tudo bem?”, alguém pode perguntar. Evidentemente que não. Seria o mesmo que propor acabar com os instrumentos musicais porque, quando mal tocados, podem fazer barulho. Antes de levantar um dedo acusador contra os smartphones e as mídias sociais, vale lembrar também seu potencial de conexão entre pessoas, a visibilidade conquistada por vários grupos sociais e as possibilidades de trocas de informações importantes. O potencial das redes digitais e a necessidade de informação para agir estão ligados, e seus resultados para a cidadania são expressivos.
Qual a diferença? O direcionamento da informação. Para manter a comparação com a música, a rolagem infinita da tela do smartphone na expectativa do próximo post poderia estar perto do cluster, em uma infoxicação; no caso das conexões voltadas para alguma finalidade, é como se você estivesse ouvindo música e distinguindo os sons, a letra, a melodia e assim por diante. Ela faz sentido. Essa, talvez, seja a melhor conexão.
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