Iniciativas no estado de São Paulo evidenciam a potência empreendedora da economia criativa, fundamentada em valores como coletividade e valorização de territórios
POR LUNA D’ALAMA
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Em meio a um divórcio turbulento durante a pandemia, a paulistana Simone Oliveira se viu sem trabalho nem renda, na cidade de Jacareí (SP). Tinha apenas oito reais na carteira e zero rede de apoio. Foi então que resolveu fazer tranças em casa e, por acaso, uma das clientes gostou do brinco que Oliveira usava. “Havia feito aquele acessório para mim mesma, num momento de tristeza, com caixa de leite, anzol e um tecido colorido de estampa afro. Ela pediu logo quatro, para presentear algumas amigas. Eu não sabia nem cobrar, fiz a dez reais cada e dei o prazo de uma semana para entrega. Mas, antes, tirei algumas fotos, postei nas redes sociais e outras pessoas se interessaram pelos produtos”, lembra hoje a empresária da marca Sih Oliveira Afrostyle, que vende brincos, colares, anéis, bolsas, carteiras, cintos, viseiras e pochetes para todo o Brasil, pela internet.
Com a demanda concentrada na capital paulista, Oliveira decidiu se estabelecer no Jardim Ibirapuera, periferia da zona Sul. Recebeu dicas para melhorar o acabamento dos itens, ganhou tecidos com iconografias africanas e buscou inspirações criativas online, além de fazer cursos de gestão de moda, design de acessórios e desenvolvimento de pessoas. “Por meio do meu negócio, fortaleço elos ancestrais da cultura afro e da trajetória do povo negro, que foram tão apagados”, conta a artesã.
No dia a dia, Oliveira é cercada por mulheres que a ajudam e que são ajudadas por ela. Em casa, as filhas adultas compartilham suas postagens, enquanto a neta de nove anos diz que deseja ser igual à avó quando crescer. O público consumidor da marca Sih Oliveira também é predominantemente feminino, formado por mulheres na faixa dos 30 anos, das classes B e C. “Além disso, produzo feiras e eventos junto a outras artesãs, muitas delas em situação de violência doméstica e/ou vulnerabilidade social, para que haja giro financeiro coletivo. Busco elevar a autoestima dessas mulheres e lhes dar forças para que consigam dar a volta por cima, assim como eu consegui”, afirma a empreendedora, que sonha com uma loja física e pretende oferecer cursos gratuitos.
A história de Simone Oliveira é um dos inúmeros exemplos de empreendedorismo por necessidade, nascidos nas periferias das grandes cidades do país. Com muito trabalho e criatividade, indivíduos integram redes produtivas, se fortalecem, organizam juntos e viabilizam outros modelos de economia para o desenvolvimento local dos territórios e a geração de emprego e renda. Dessa forma, pessoas e coletivos conquistam autonomia, dignidade, cidadania e exploram seus potenciais criativos.
Segundo Cláudia Leitão, doutora em sociologia pela Universidade Sorbonne, em Paris, e ex-secretária de Economia Criativa do Ministério da Cultura (2011-2013), os empreendedores precisam agir em rede. “Não apenas nas redes sociais, mas em rede ao reagregar as relações sociais, a promover a humanização e a sobrevivência comunitária. Muitos desses empreendimentos são realizados por coletivos que trabalham nos setores criativos e culturais para encontrar seu lugar no mundo e também transformá-lo. Essas iniciativas contra-hegemônicas, sejam de economias criativas, circulares, solidárias ou verdes, são uma saída para a emancipação financeira e social”, explica a autora do livro Criatividade e emancipação nas comunidades-rede: Contribuições para uma economia criativa brasileira (Martins Fontes, 2023).
Consultora nessa área para a Organização Mundial do Comércio (OMC) e para a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), há mais de dez anos, Cláudia Leitão conheceu de perto a realidade da Austrália, primeiro país a tratar do tema, na década de 1990. Ela observa que há no Brasil toda uma economia submersa, desconhecida e imensurável. “São milhões de negócios informais, invisíveis e pouco compreendidos, mas com uma força enorme”, analisa. Em seu mais recente trabalho, ela lista sete princípios para uma economia criativa forte: cidadania e democracia; biodiversidade cultural e tecnodiversidade; sustentabilidade (econômica, ambiental, social, cultural e política); inovação; inclusão produtiva; bem-comum; e bem-viver.
Leitão se inspira no pensamento do economista Celso Furtado (1920-2004), autor de Criatividade e dependência (Companhia das Letras, 2008) – que acreditava na criatividade como um insumo fundamental para o desenvolvimento brasileiro –, e nas ideias do geógrafo Milton Santos (1926-2001), que falava em “territórios usados”, um conceito que envolve a relação das comunidades com os lugares onde habitam, seus usos cotidianos, as formas de viver e produzir, e os modos de ser e estar no mundo. “Precisamos de grupos colaborativos, cooperativos e não competitivos. A força e a potência dessas iniciativas estão no agir e no fazer comunitário, nos territórios, nas ações em rede”, pontua. “São estratégias de resistência, resiliência e pertencimento, além de estabelecerem um diálogo das juventudes com o passado. Como diz o líder indígena Ailton Krenak, o futuro é ancestral. Portanto, temos que compreender e salvaguardar saberes para projetarmos nossa existência daqui para a frente”, complementa.
Foi a ideia de juntar empreendedorismo e periferia, em 2018, que formalizou a criação da empresa Emperifa, com atuação na zona Leste da capital paulista. Segundo Márcio Cardoso Santos, um dos sócios-fundadores, o negócio é voltado para pessoas que residem e atuam em territórios periféricos e querem começar a empreender ou já colocaram a mão na massa. “Oferecemos serviços de capacitação, mentoria e assessoria para profissionais da economia criativa em áreas como: moda, artesanato, audiovisual, gastronomia e estética. Mais de 90% do nosso público é formado por mulheres pretas e pardas, muitas delas são microempreendedoras individuais (MEIs), mas também há pessoas que podem aproveitar essa oportunidade para se formalizar”, observa Santos.
Para o sócio-fundador da Emperifa, quem empreende não pode simplesmente dizer que não gosta de economia ou política. “É preciso compreender que uma ação do governo local ou federal é capaz de impactar diretamente o orçamento familiar. Além disso, um(a) pequeno(a) empreendedor(a) deve pensar no planejamento do negócio, na sua estruturação e gestão, no público-alvo, nos recursos financeiros disponíveis. Entender sobre matéria-prima, pagamento de fornecedores, precificação. Muita gente chega até nós sem esses conceitos, apenas com conhecimentos empíricos, baseados na experiência e na observação”, aponta Santos, que é mestre em administração de empresas pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e ex-professor do Senac São Paulo.
Essa troca ajuda a melhorar os negócios, tem uma força extraordinária. A gente não faz nada sozinho: vai conversando e juntando pessoas em torno de ideias, projetos e ações
Márcio Cardoso Santos, um dos sócios-fundadores do Emperifa
O acompanhamento feito pela Emperifa inclui duas fases distintas, que podem durar até um ano e meio. As primeiras reuniões são semanais, com dores e soluções compartilhadas em grupo pelos profissionais que passam pela capacitação. “Essa troca ajuda a melhorar os negócios, tem uma força extraordinária. A gente não faz nada sozinho: vai conversando e juntando pessoas em torno de ideias, projetos e ações”, ressalta Santos. Já a segunda etapa inclui o aporte de um capital-semente (que varia de 3 mil reais a 10 mil reais) para ser aplicado em negócios selecionados, com patrocínio de instituições e fundações atuantes nesses locais.
O monitoramento, então, torna-se mensal ou bimestral. Ainda de acordo com Santos, a Emperifa procura dialogar com os territórios geográficos onde se faz presente, fortalecê-los e levar atores locais para conversar com os mentorados. “Resgatar a história e os patrimônios dos nossos bairros, a exemplo do Memorial Penha de França, pode nos ajudar a trazer clientes e a comercializar produtos e serviços. Além disso, desde a pandemia, nos digitalizamos mais e incentivamos que todos usem a tecnologia a seu favor: as redes sociais para enviar orçamentos e divulgar informações, com boas fotos e vídeos de apresentação”, recomenda.
Criada em 2021, com dez inscritas, a Feira Cultural Mulher Empreendedora Heliópolis se expandiu para incluir a comunidade LGBTQIA+ e hoje se chama Feira Empreendedora Divas do Sol Heliópolis. A articuladora territorial, produtora de eventos e empreendedora Elaine Vital, que integra a equipe, à frente do evento (realizado no segundo sábado de cada mês), revela que o projeto ganhou fôlego nos últimos anos, com cerca de 70 participantes ocupando o calçadão do Largo de São João Clímaco, na zona Sul de São Paulo. “Temos barracas de artesanato, moda, gastronomia e diversos serviços, como massagem, acupuntura e leitura de tarô. Nossa maior potência é essa união, nos juntamos para nos completarmos. O que cada pessoa tem de melhor pode servir de ajuda para outra que está defasada”, acredita Vital, que também coordena encontros mensais sobre empreendedorismo no espaço TEIA Heliópolis, dentro do Centro Educacional Unificado (CEU) do bairro.
Nessas reuniões, cada participante fala sobre o próprio negócio, suas habilidades, necessidades, dificuldades e o que está fazendo para driblá-las. “Há quem cuide das redes sociais de colegas por terem mais facilidade no ambiente digital. Além disso, no fim de 2022, dois empreendimentos de bem-estar se uniram para criar um terceiro, que comercializa produtos e serviços de beleza e saúde para empresas”, exemplifica Elaine Vital. A empreendedora também atende a pedidos das(os) alunas(os) para falar sobre temas como marketing digital, mídias sociais e aplicativos de negócios, convidando parceiros que ministram cursos, palestras e oficinas.
“Empreender costuma ser muito solitário, você tem que fazer tudo (ou quase tudo) sozinho(a), ser todos os departamentos de uma empresa: RH, financeiro, produção, marketing, comercial. Então, trabalhamos juntos(as) para não ficar tão pesado para ninguém”, conta Vital. Ela própria, mãe de um rapaz de 21 anos, divide-se entre inúmeras funções: é também cofundadora da Editora Gráfica Heliópolis, apresentadora do podcast PodEmpreender Helipa, coordenadora do Slam do Helipa e integrante do projeto Mudas de Ideias, que realiza intervenções artísticas voltadas a temáticas socioambientais.
Empreendimentos que priorizam territórios e a coletividade vão muito além da capital paulista e se estendem por várias regiões do estado. Um deles fica na Vila da Mata, uma das comunidades próximas ao Parque Estadual Restinga de Bertioga, no litoral norte de São Paulo. No local onde vivem, há mais de 60 anos, cerca de 140 famílias (formadas, sobretudo, por pescadores caiçaras e imigrantes nordestinos), é feito um trabalho de turismo de base comunitária, observação de aves e horta comunitária, com cultivo de Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANCs). A Vila da Mata também tem um espaço cultural multiuso, no qual o público pode ver apresentações de teatro e cinema.
Por falar em sétima arte, segundo a pedagoga, educadora socioambiental e monitora de trilhas Maura Pereira, a comunidade se assemelha à retratada no filme Bacurau (2019), de Kleber Mendonça Filho, por não aparecer oficialmente nos mapas. “Inclusive, exibimos esse longa-metragem na praça, ao ar livre. É contraditório estarmos localizados numa área de proteção ambiental integral, mas sermos apenas um pontinho que quase não se vê, perto de enormes condomínios na Riviera de São Lourenço e na praia de Boraceia. Após muitos anos, finalmente nossas ruas ganharam nomes – de pássaros. Eu moro na Rua Sabiá. Também tem a Tucanos, Beija-flor, Bem-te-vi, Sanhaço”, revela Pereira, que atualmente preside a Associação Vila da Mata.
De acordo com a pedagoga, a comunidade se une para lutar por seus direitos, preservar o território e garantir a subsistência diária. “Vejo o impacto positivo que causamos na vida das pessoas pela forma como elas saem transformadas daqui. Mostramos nosso modo de vida a visitantes do mundo inteiro, para que nos conheçam, experimentem o que produzimos (geleias, chás, açafrão, mandioca, banana, amora, abóbora) e caminhem, literalmente, ao nosso lado”, afirma. Desde o início do projeto, que inclui ainda experiências culinárias e rodas de contação de histórias, a Vila da Mata tem recebido públicos diversos, de crianças a idosos, além de estudantes, monitores ambientais autônomos e grupos do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS).
Outro exemplo de iniciativa, dessa vez no interior de São Paulo, é a Rede de Apoio a Mulheres Agroflorestoras (Rama) de Barra do Turvo, a cerca de 140 quilômetros de Registro, no Vale do Ribeira. Em atividade, desde 2015, a Rama reúne mais de 70 agricultoras familiares e quilombolas que se juntam para realizar mutirões, limpar roças e fazer plantios e colheitas de orgânicos. Segundo a integrante Jane Aparecida Santos, quando se unem, as mulheres também têm maior liberdade e intimidade para conversar sobre diferentes assuntos, dos domésticos aos profissionais. “Plantamos banana, mandioca, milho, batata-doce, conforme a época. Entre março e abril, é tempo de verduras como couve e alface. Também entregamos cestas de consumo consciente e mandioca chips em cidades como Registro e na capital”, conta a agricultora, que integra a diretoria da Associação de Remanescentes de Quilombo dos Bairros Ribeirão Grande e Terra Seca, além de ser artista nas horas vagas, escrevendo e declamando poemas e letras de música. Jane Santos também é fundadora do coletivo de mulheres Perobas, atualmente com nove participantes. O nome vem da madeira que seu avô cortava para construir casas e canoas. “Fazemos arrecadações de alimentos, levantamos fundos para ajudar quem precisa. Se alguém estiver doente e não puder ir à roça, damos uma força. Também produzimos banana e mandioca chips, açúcar mascavo, rapadura, cuscuz, farinha de milho, geleias e conservas”, enumera. Esses coletivos, segundo a quilombola, são importantes para se manter economicamente ativa, cultivar a própria terra e produzir alimentos mais saudáveis. “As pessoas que compram da gente também comem melhor. Todos ganham”, finaliza.
Precisamos de grupos colaborativos, cooperativos e não competitivos. A força e a potência dessas iniciativas estão no agir e no fazer comunitário, nos territórios, nas ações em rede
Cláudia Leitão, ex-secretária de Economia Criativa do Ministério da Cultura (2011-2013)
De 16 a 24 de março, 22 unidades do Sesc São Paulo promovem a ação Nós: criação, trabalho e cidadania
A cada dois anos, o Sesc São Paulo realiza a ação em rede Nós: criação, trabalho e cidadania, que em 2024 ocorre de 16 a 24 de março, em 22 unidades da instituição na capital, Grande São Paulo, interior e litoral. Com o tema “Fomento e fortalecimento de redes locais”, essa terceira edição do projeto dialoga com experiências solidárias, olhando para os territórios, o desenvolvimento comunitário, a inserção no mundo do trabalho, a geração de emprego e renda, o fomento à inclusão produtiva e o intercâmbio de conhecimentos. Compõem a programação, coletivos, cooperativas, associações, organizações sociais e empreendimentos periféricos e de povos tradicionais, que inclui cursos, feiras, debates, apresentações de música e dança entre outras atividades.
Segundo Cristina Fongaro Peres, que integra a Gerência de Educação para a Sustentabilidade e Cidadania do Sesc São Paulo, essa ação em rede é um momento importante de valorização de diversas formas de criação, trabalho e geração de renda, que refletem aprendizados e articulações nos territórios. “O propósito é incentivar conexões entre coletivos, iniciativas e pessoas, tendo como pano de fundo a inclusão produtiva e o desenvolvimento comunitário. Um convite para apreciar e reconhecer a força dos que estão por perto, aplicando seu potencial criativo em busca de autonomia e cidadania”, destaca. Confira alguns destaques da programação:
POMPEIA
Autonomias coletivas – Economias que transformam
O empreendedorismo por necessidade é uma realidade nas periferias. Por isso, a conversa discute estratégias, iniciativas e redes produtivas voltadas à geração de trabalho e renda em cenários de desemprego e necessidades crescentes. Com Claudia Leitão e Joaquim Melo.
Dia 16/3, sábado, às 19h. GRÁTIS.
SANTANA
Feira de artesanato e economia sustentável
Oportunidade de conhecer mestras, mestres, processos e produtos de diferentes técnicas de artesanato, desde as tradicionais – como bordado, cerâmica, trançado em fibras diversas e entalhe em madeira -, até as mais inovadoras, como moldagem em PET, torção de cápsulas, fusing/vidro, azulejo/mosaico.
De 16 a 24/3, sábados e domingos, das 11h às 16h. GRÁTIS.
GUARULHOS
Feira de brechós Casa de Vó
A feira destaca empreendimentos femininos de moda sustentável, celebrando a diversidade de produtos elaborados por mulheres empreendedoras, além de convidar visitantes conhecer mais sobre as iniciativas locais.
Dia 17/3, domingo, das 11h às 17h. GRÁTIS.
PIRACICABA
Mobiliza: festa cultural da periferia
Da capoeira ao hip-hop, passando pelo teatro ao ritmo cururu, diferentes atividades refletem a diversidade cultural e artística dessa região do estado de SP. O evento ainda destaca a efervescência cultural que permeia territórios periféricos, valorizando e engajando ações coletivas.
Dia 17/3, domingo, das 10h às 17h. GRÁTIS.
Mais informações em sescsp.org.br/nos
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