Por Domênica dos Reis
Terapeuta ocupacional, compõe um grupo de estudos na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e contribuiu na pesquisa sobre a atuação de Dona Ivone nessa área.
Peço licença para iniciar contextualizando o meu primeiro encontro com Dona Ivone Lara, apresentada pelo meu querido pai por meio de um toca fitas.
Em minhas recordações ainda é presente a lembrança de maneira melódica e entoada, ela cantar a música “Alguém me avisou” ¹ com sua potente voz:
“Foram me chamar…
eu estou aqui que há,
eu vim de lá,
eu vim de lá pequenininho…
Alguém me avisou para pisar nesse chão devagarinho…”
Desde a minha infância Dona Ivone Lara se tornou referência. Me questionava com alegria: “uma mulher, no samba?” Com o passar dos anos, outras dimensões foram se fortalecendo como referência e pude compreender que a identificação era para além de ser mulher, mas uma mulher preta no samba, que se assemelhava às mulheres que convivi.
Em 2013, ingressei na universidade pública, através da implementação do sistema de cotas, no curso de Terapia Ocupacional, processo que demarca a minha identidade acadêmica. É nesse contexto que surge o meu segundo encontro com Dona Ivone Lara. Foi na união com Jaime Leite Jr. e Magno Nunes, outros estudantes negros de terapia ocupacional, que nos debruçamos em pensar Dona Ivone Lara como profissional de Saúde, enfermeira, assistente social e especialista em terapia ocupacional. A partir do encontro de corpos e desejos, no ano de 2016 construímos o Grupo de Estudo Dona Ivone Lara de Terapia Ocupacional, sendo constituído por estudantes de diversos lugares do Brasil que, assentadas/os de suas vivências plurais, se reuniam virtualmente com a proposta de questionar a invisibilidade da Dona Ivone Lara na Terapia ocupacional e na Saúde mental e, da mesma forma, pensar o cuidado da população preta e seus acessos, refletir o ser negro enquanto trabalhadores do SUS, operacionalizar a Política Nacional de Saúde integral da População Negra e produzir estratégias de cuidado para a população preta dentro e fora da terapia ocupacional.
Dentro da realidade acadêmica foram construídas coletivamente diferentes maneiras de debater na Terapia Ocupacional, por meio de trabalhos em eventos científicos, participação em aulas em diversas universidades e a publicação de artigos acadêmicos como os títulos “Dona Ivone Lara e terapia ocupacional: devir-negro da história da profissão”; “Terapia ocupacional e população negra: possibilidades para o enfrentamento do racismo e desigualdade racial”²; “‘Asfixias sociais’ da população negra e questões para a Terapia Ocupacional”³.
Atualmente compomos o grupo com a multiplicidade de ser e estar como profissionais da Terapia ocupacional, desde trabalhadores da rede pública de saúde, mestrandos, doutorandos, professores em universidades, mantendo o compromisso ético político pautado no desenvolvimento pleno e o bem viver da população preta, inspirados pelo fazer da D. Ivone Lara seja na música ou na saúde.4
Com o passar do tempo, Dona Ivone Lara se transformou em minha companhia, seja no dia a dia ou, na prática, profissional. Realizei um resgate da sua história, identificando que sua sensibilidade se relaciona diretamente com suas memórias e enfrentamentos transformados em composições e melodias. Sua interpretação de “Um Sorriso Negro” se eternizou e se faz presente em rodas de sambas de maneira astuta e cheia de altivez. Para além da resistência, flui e rememora na subjetividade preta a pulsão palmarina5.
No que tange o direito à memória preta, o respeito à ancestralidade e a espiritualidade é possível identificar na música que fez em homenagem ao seu pai maior “Axé de Ianga”. Na música Tiê, traz de maneira tão singular o direito ao retorno do olhar adulto à memória infantil, cantando como se relacionava com seu passarinho que nomeava seu melhor amigo e trazia de maneira leve enfrentamentos da infância e de toda uma vida.
Além disso, uma característica que é marcante trazida pela prática dela no samba e que se relaciona diretamente com a Saúde Mental é a maneira como valoriza o cotidiano e sentimentos. Dona Ivone Lara utilizou a música e o samba como recurso de produção de vida, as rodas de sambas ultrapassaram os muros do Hospital psiquiátrico e chegaram na avenida da Sapucaí, a exemplo, temos a aceleração da bateria do Salgueiro. Há um pioneirismo6 de reforma psiquiátrica, em expandir o ser estar louco, que possibilitou a expressão, pulsão de vida!
Uma das coisas que mais inspira e instiga a minha atuação nos serviços substitutivos de saúde
mental é dar nome a essas práticas. Um conceito ao qual vem fazendo sentido é Atividades Afrorreferenciadas, construído pelas terapeutas ocupacionais pretas Anna Carolina Santos e Marcia
da Costa, que criaram o Laboratório de Estudos Africanos integrado às atividades e à Terapia
Ocupacional – Isé, do Rio de Janeiro. Neste espaço tive a oportunidade de aprender a ampliar o olhar da atividade na Terapia Ocupacional, a partir das perspectivas africanas e/ou afro-brasileiras e afrorreferenciar não só Dona Ivone Lara, mas também celebrar a existência de outra terapeuta ocupacional preta chamada Margarida Trindade (mãe de Raquel e Solano Trindade) que utilizava a cultura popular como recurso para a produção de saúde. Por fim, é nessa perspectiva que compreendo as práticas antimanicoloniais8. Sendo esta uma reflexão que vem sendo produzida pela enfermeira Bárbara Gomes e pelo psicólogo Emiliano David, podem e devem ser produzidas na Rede de Atenção Psicossocial, a partir do sentir, do cotidiano, das trocas, das experiências. Por exemplo, a roda de samba é uma manifestação cultural sim, mas também vejo que além da produção do lazer ela pode ser utilizada como recurso de saúde, já que é uma atividade que propõe experiências que afetam as subjetividades. Possibilita estarmos lado a lado por meio do círculo, proporciona a troca de olhares, o toque dos corpos, permite a relação com os pés no chão, o corpo movimenta, pode gerar até mesmo calor, a experiência do som, de melodia seja ela dos instrumentos ou a simples possibilidade de soltar a voz e entoar um sentimento que se reúne com outros sentimentos.
A sabedoria de Dona Ivone Lara nos permite a não se esquecer que nascemos para sonhar e cantar, ser e estar pela força da imaginação, que melodicamente deixa o recado em sua música “Força
da imaginação”9:
“Força da imaginação, vai lá
Além dos pés e do chão, chega lá,
O que a mão ainda não toca
Coração um dia alcança….”
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