Partilhando o que temos e sabemos como práticas de existência e resistência
Por Márcia Cristina Américo e Luiz Marcos de França Dias*
Nesses últimos meses, em tempos de pandemia do Coronavírus, muito se tem perguntado como nós quilombolas temos nos organizado quanto ao enfrentamento de tal adversidade. Essa resposta não é tão simples, pois envolve a compreensão de um processo histórico de resistência pela manutenção da vida em territórios coletivos.
Iniciemos, então, apresentando o contexto em que vivemos no Vale do Ribeira, que está localizado entre os estados de São Paulo e Paraná. A região possui imenso valor cultural e ambiental pela presença de várias unidades de conservação e diversos povos e comunidades tradicionais, como indígenas, caiçaras, ribeirinhos e quilombolas; fatores que propiciam ser possuidora do maior remanescente de Mata Atlântica preservada do país.
Das 6 mil comunidades quilombolas no Brasil, no Vale do Ribeira (São Paulo) estão 37 comunidades de um total de 59 presentes no estado. Na Estância Turística de Eldorado, município com maior número de quilombos do estado (15 no total), está o Quilombo São Pedro, onde vivem 50 famílias, a 60km do centro urbano. Para se chegar ao território, parte do percurso é feito pelos 12 km de estrada de chão batido.
O boletim epistemológico do Observatório da Covid-19 nos Quilombos, organizado pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Quilombolas (CONAQ) e pelo Instituto Socioambiental (ISA), denuncia o rápido aumento de infectados e óbitos pelo Coronavirus em territórios quilombolas, a ausência de medidas do Estado e a invisibilidade de tais povos, refletida pela falta de informações específicas, principalmente em âmbito municipal. Até o dia 23 de julho de 2020, 3.467 mil casos foram confirmados e ocorreram 136 óbitos por Covid-19 nos quilombos do Brasil. Como um contraponto a esses alarmantes e crescentes índices, a aprovação do projeto de Lei nº 1.142/2020 seria uma possibilidade de estabelecimento de medidas de proteção social a serem adotadas pelo governo para prevenção do contágio e da disseminação da Covid-19 nos territórios de povos quilombolas, indígenas e outras comunidades tradicionais. No entanto, ao sancionar a Lei (que vigora com o número 14.021/2020), foram vetados 16 pontos essenciais, dentre eles a garantia do acesso universal à água potável, distribuição de produtos de higiene e limpeza, cestas básicas, sementes e ferramentas, oferta emergencial de leito hospitalares e de unidade de terapia intensiva (UTI), entre outros. Sem menosprezar os demais pontos também essenciais, o ato de negar acesso à água e ao alimento demonstra que a ideologia capitalista, individualista e de exploração ainda impera dentro das estruturas de governo que, em inúmeros casos, insiste em suprimir os direitos fundamentais daqueles e daquelas que já quase não têm acesso a esses. A efetivação de políticas públicas voltadas aos povos e comunidades tradicionais tem sido um desafio na articulação e reivindicação do movimento social quilombola local e nacional.
Segundo dados da Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo, até o último 27 de julho, os registros estaduais somam 487.654 mil casos e mais de 21.676 mil mortes, sendo 73 óbitos na região do Vale do Ribeira, que conta com mais de 3 mil casos, sendo boa parte deles nas cidades em que há hospitais de referência: Registro (726 casos) e Pariquera-Açú (362 casos).
No quilombo São Pedro e nas comunidades vizinhas, no dia a dia todo o cuidado tem sido pouco. A infecção de uma única pessoa quilombola poderá causar um impacto quase que incalculável se tratando de um contexto em que alguns direitos básicos têm sido negligenciados nas quinze comunidades quilombolas do município. Em relação ao transporte público, por exemplo, há somente linha de ônibus saindo da comunidade vizinha, que fica a 12km; no entanto, no período da pandemia, por diversas vezes, ela foi suspensa, deixando as famílias sem esse meio de acesso à cidade. Cabe também apontar que as consultas médicas que ocorriam duas vezes ao mês nos quilombos foram suspensas e transferidas à Unidade Básica de Saúde na zona urbana do município, ou seja, a presença do especialista em saúde já era rara e se tornou ainda mais, se aliada a subtração das linhas de ônibus municipal. Nesse sentido, há uma preocupação das famílias quilombolas relacionada à longa distância até os centros de saúde, aliada superlotação dos poucos leitos para tratamento de Covid-19 disponíveis no Hospital Regional de Pariquera-Açú (10 no total) e Hospital Regional de Registro (25 leitos), que recebem pacientes de quase todos os municípios da região do Vale do Ribeira, também para atendimento com outros especialistas.
No início da segunda quinzena do mês de julho foi confirmado o primeiro caso de Covid-19 em uma das comunidades quilombolas, no município de Eldorado. Cabe considerar que a reabertura da economia por parte do estado de São Paulo, aliada ao aumento dos índices em um curto período no município, pode ocasionar em mais problemas a serem enfrentados pelas comunidades quilombolas.
Perante este contexto, acreditamos que há ainda dúvidas sobre o questionamento inicial: como nós quilombolas temos nos organizado quanto ao enfrentamento da pandemia? Em meio à crise, os quilombos enfrentam também o processo de retrocesso de políticas públicas e precarização do pouco que se tinha. As comunidades têm se organizado em nível local, estadual e nacional contra a violência institucional, os conflitos fundiários, racismo ambiental e as injustiças que abarcam as questões de raça, classe, gênero e território, fatores que inviabilizam a existência plena no território.
Diria, após o exposto, que a proteção das comunidades quilombolas está fundamentalmente ligada à manutenção de uma rede de cuidados, segurança e proteção interna e externa entre comunidades, atrelada aos conhecimentos da roça de coivara¹, das ervas medicinais, da relação com elementos materiais e imateriais do território, que por sua vez estão ligados às africanidades e à manutenção do local ancestral e da vida dos filhos e filhas da comunidade. E essa forma de organização, que não está pautada no monetário/dinheirizável, tem se estendido e se mantido na troca de alimentos, mudas e sementes, trocas de dias de trabalhos e mutirões, nas reunidas para o beneficiamento de alimentos como farinha de mandioca e arroz, na construção de casas de pau a pique, entre outras.
Em diálogo, as associações dos quilombos Galvão, São Pedro e Ivaporunduva se organizaram para oficializar o fechamento da passagem que dá acesso às três comunidades para pessoas que não residem nesses territórios. Homens e mulheres (adultos e jovens), de forma voluntária, realizaram o revezamento durante 24 horas no ponto de contenção de acesso. Diante da necessidade, as máscaras foram confeccionadas por quilombolas a baixo custo, para a proteção das famílias quilombolas das três comunidades vizinhas.
A Associação Quilombo Ivaporunduva realizou ações individuais internas, como compra de alimentos não produzidos no território, pensando no amparo das famílias para que não houvesse circulação dos quilombolas na zona urbana. Para o acesso ao Programa Merenda em casa, destinado a alunos da rede estadual de educação de São Paulo, as famílias foram auxiliadas por um universitário quilombola, que efetuou os cadastros desses, acessando a internet com seu aparelho no único ponto da comunidade que tem sinal de celular. Já no processo de solicitação do auxílio emergencial do Governo Federal, em diversas comunidades, quilombolas que trabalham na cidade realizaram os cadastros das pessoas que não têm acesso e prática com a tecnologia.
A Associação Quilombo São Pedro contribuiu com a doação de uma variedade de produtos da terra para uma aldeia indígena de Eldorado: palmito, limão, banana, batata doce, mandioca, cará, laranja, mexerica, abóbora e alface retirados diretamente das roças e hortas quilombolas. Além disso, da mesma maneira que outros povos e comunidades tradicionais do Vale do Ribeira, agricultores e agricultoras do Quilombo São Pedro têm contribuído para a alimentação de muitas famílias em situação de vulnerabilidade social de cidades da região, como Iporanga e Eldorado, e de bairros da capital paulista, como Vila Brasilândia e Capão Redondo. Através de ações operacionalizadas pela Cooperativa dos Agricultores Quilombolas do Vale do Ribeira (COOPERQUIVALE), de Eldorado, e pela comunidade caiçara da Enseada da Baleia, de Cananéia, com apoio de instituições parceiras, os alimentos saem das nossas roças quilombolas e são levados à mesa de quem mais necessita. O ato perpassa a alimentação do corpo, pois é fruto de saberes presentes em territórios coletivos ancestrais, pautados num modo de cultivo que não degrada o meio ambiente, que gera renda às famílias, sem pautar-se num sistema de exploração imposto pelo capitalismo.
¹ A roça de coivara está interligada a prática e saberes tradicionais quilombolas do Vale do Ribeira, consiste na supressão da vegetação nativa, seguida da queima, plantio, cultivo, colheita, e reutilização da mesma área por mais alguns ciclos, até utilização máxima dos nutrientes ali presentes, e por fim, o abandono do local por um período de 7 a 10 anos propiciando a regeneração da mata. Somente após essa última etapa é que o ciclo pode ser reiniciado na mesma área.
* Márcia Cristina Américo é doutora em educação, pesquisadora, educadora, feminista e articuladora do Coletivo Mulheres Quilombolas na Luta e membra da Associação dos Remanescentes de Quilombo de São Pedro, Eldorado-SP, Brasil.
* Luiz Marcos de França Dias é quilombola, mestre em educação pela Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP), docente da Rede Estadual de Educação de São Paulo e membro da Associação dos Remanescentes de Quilombo de São Pedro, Eldorado-SP, Brasil
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