Nas artes não há um fim, assim como na vida do homem. Portanto, a vida do homem seria uma arte, pois percorre no ermo da infindável viagem (…).*
São muitos os elementos que cruzam a jornada vivida pelo imigrante japonês Takeo Sawada (1917-2004) na região Oeste do estado de São Paulo com a de milhares de imigrantes nipônicos que chegaram na parte paulista do Vale do Ribeira, no início do século 20. As famílias cultivando campos de arroz na terra natal, a busca por um futuro melhor em terra estrangeira, a longa travessia rumo a uma terra desconhecida, o recomeçar no cultivo agrícola em solo brasileiro, a formação das colônias, o conviver em comunidade, a salvaguarda do modo de vida e da cultura tradicional.
Estas são algumas das referências que podem ser observadas na exposição À sombra do flamboyant que o Sesc Registro oferece ao público do Vale do Ribeira até 30 de julho, apresentando a trajetória e a obra do artista plástico, poeta, escritor e arte-educador Takeo Sawada, o imigrante que chegou do Japão em 1933, com 16 anos de idade, e se fixou em terras do interior paulista.
É lá, na região de Presidente Prudente, que ele inicia a vida no Brasil, trabalhando no campo como agricultor; depois, já no meio urbano, como professor ensinando a língua-pátria a filhos de conterrâneos, ao mesmo tempo em que se dedica à grande missão que o tornaria referência em arte-educação: ensinar crianças – e foram milhares delas – a criarem arte, através do livre desenhar e pintar e a partir da observação da natureza e do território ao redor.
Seguindo a mesma prática que o artista utilizava com as crianças em sua escola de artes, o público que visita a exposição em Registro também é convidado a observar o espaço e o entorno do local onde a mostra está instalada na cidade – um exercício para avivar memórias e refletir sobre conexões existentes entre a vida, as palavras e as imagens criadas pelo artista Takeo Sawada e o território do Vale do Ribeira.
O espaço expositivo está no complexo arquitetônico do Sesc Registro, um prédio centenário que é considerado o símbolo da colonização japonesa no Vale do Ribeira. No local, funcionou o maior engenho de arroz da América Latina e o principal centro de apoio comercial e de infraestrutura aos imigrantes japoneses que à região eram destinados. À frente desse espaço, corre livre o rio Ribeira de Iguape, que nomeia e dá identidade ao território. E cobrindo todo o Vale, a Mata Atlântica que o caracteriza como um lugar rico em biodiversidade.
“Não tem lugar mais emblemático para Sawada-San estar do que aqui no Vale do Ribeira”, sentencia Carmo Malacrida, artista visual que assina a curadoria da exposição junto com as educadoras Valéria Prates e Valquíria Prates. Ex-aluna que acompanhou todo o trabalho do arte-educador por mais de duas décadas, Carmo ressalta que vários fios se entrelaçam quando se trata da escolha do Sesc Registro como segundo local para itinerância da mostra, após ter ficado por seis meses no Sesc de Presidente Prudente. “O Vale do Ribeira tem tudo o que era mais caro à vida de Sawada: a natureza exuberante, as águas do rio, o simbolismo do prédio que a mostra ocupa, a relação com o cultivo do arroz e, especialmente, a cultura dos povos da região”.
É com a diversidade de culturas tradicionais que caracterizam o Vale do Ribeira que a exposição busca dialogar, a partir do olhar para a prática pedagógica de Takeo Sawada. Quem reforça isso é a curadora e educadora Valquíria Prates, ao lembrar que o arte-educador se preocupava muito com a tradição, com o cultivar da sua cultura, com o não deixar essa cultura se apagar com o passar das gerações. “A gente sabe que a comunidade japonesa, as comunidades tradicionais indígenas e quilombolas e outras diversas comunidades do Vale do Ribeira têm uma rica tradição em formação em artes, têm seus mestres educadores e educadoras se dedicando ao ensino da arte como linguagem. O que a exposição busca provocar nos visitantes é a reflexão sobre como cada comunidade se apropria do lugar da arte no seu cotidiano”, comenta.
Para a curadora, À sombra do flamboyant é uma oportunidade para que as pessoas olhem ao redor, ao território em que vivem, aos seus respectivos grupos, escolas e comunidades, e percebam os seus próprios artistas e mestres. “Onde estão os ´Takeos Sawadas` de cada comunidade local? E o quê cada comunidade está fazendo com o legado de seus artistas, com os ensinamentos que partilham? Sabemos que muitos estão na oralidade, mas também pode haver documentos, algum tipo de registro, e a exposição demonstra como é importante garantir que todas essas vivências e criações artísticas sejam conhecidas e reconhecidas pelas próximas gerações”, ressalta Valquíria Prates.
É difícil de explicar, na prática, em uma sala de aula o que as crianças não conhecem, e aqui estão podendo fazer desenhos, emotivos, a partir da realidade.*
A exposição evidencia as várias facetas do multiartista Takeo Sawada, como define a curadora Valéria Prates. “São diversas camadas que se entrelaçam em uma só pessoa”, explica. Mas o trabalho do artista-educador, aquele que estimulava o brotar e deixava crescer os criadores de arte, tem um lugar de destaque na mostra. Educador à frente de seu tempo, Sawada já adotava práticas pedagógicas que ainda hoje estão sendo pensadas e debatidas no meio educacional. Na escola de arte infantil que criou (em 1974) e manteve por quase trinta anos, seus alunos viviam desemparedados.
Suas aulas eram dadas ao ar livre, na natureza, em ambientes dos mais diversos: à sombra de uma árvore – sua preferida desde que pisou em solo brasileiro era o flamboyant – ou uma praça, um sítio, uma olaria, à beira de um rio, em um barco ou até em uma viagem mais longa em que as crianças eram levadas para conhecer o mar. Conectadas com o entorno e seu território, as crianças aprendiam e se desenvolviam, com autonomia no fazer artístico. “Sua prática estimulava a imaginação da criança, cultivava a criação”, reforça Valéria Prates.
Por frequentar as aulas de Takeo Sawada por alguns meses, já como aluna adulta, a curadora Carmo Malacrida pode testemunhar o que o educador falava para as crianças: Escolha um lugar em que você se sinta bem, olhe para as árvores, olhe o que há em volta, ouça os passarinhos, preste atenção em tudo. “Ele estimulava as crianças a olharem o mundo em volta como se estivessem olhando sempre pela primeira vez, porque o encantamento vem daí, desse olhar atento”.
Dentro do ateliê, relata Malacrida, a criança também tinha autonomia. Rodeados de objetos e referências, os pequenos aprendizes desenhavam o que queriam, tinham liberdade para escolher, porque o educador sugeria a cada um: Você tem que tirar as coisas boas que vêm do coração. E na exposição, dentro das diversas gavetas presentes no espaço, o público vai poder observar que os trabalhos dos alunos de Sawada ocupam todo o suporte do papel. Segundo a curadora, isso decorre da orientação do mestre: Não tenham medo do papel, o papel é grande, não precisam fazer o desenho pequenininho. Tem que ter coração grande!.
Coração grande está entre as expressões que nomeiam os cinco núcleos em que a exposição é composta, uma forma que a equipe de curadoras encontrou para traduzir a poética e as vivências de Takeo Sawada. Vivências que começam com a travessia do Japão ao Brasil – a infindável viagem, passam por seu trabalho como arte-educador e culminam com a influência do impressionismo em suas obras.
Além de Coração grande, outras duas expressões de Sawada são destacadas na exposição: Vontade, você e Bom, né! A primeira enfatiza a importância que ele dava à autonomia da criança no seu fazer artístico, e a segunda demonstra como o mestre valorizava o trabalho da criança. Para ele, conforme relata Carmo Malacrida, não havia “desenho errado” ou “pintura feia”. Era sempre bom, né!. Depois, se fosse preciso, e de uma forma muito serena, o educador sugeria ao aluno outro jeito de olhar para a luz, para as formas, para os objetos ou paisagens, de modo a orientar o seu aprendizado.
Ao visitar a exposição de Takeo Sawada no Sesc Registro o público pode conhecer essas e várias outras passagens da vida e relatos sobre o trabalho do arte-educador. A visitação é acompanhada por educadoras da região do Vale do Ribeira que, além de apresentarem toda a trajetória do artista nipo-brasileiro, também propõem atividades que podem ser desenvolvidas com o público infantil, principalmente no ambiente escolar, de forma a propiciar ou ampliar experiências de criação artística aos estudantes da região.
Integram a exposição no Vale do Ribeira uma programação especial que o Sesc Registro realiza por meio de diferentes linguagens artísticas – como oficinas de desenho e espetáculos diversos – e um catálogo que detalha a trajetória, a obra e o fazer educativo de Takeo Sawada. O material também contém importantes questões orientadoras que buscam refletir sobre o desenho da criança e a escola como espaço cultural.
Olhando para o passado | O que vim fazer no Brasil? | Sem ter acumulado bens materiais | pinto com as crianças.*
Takeo Sawada nasceu em 1917 no Japão e chegou ao Brasil (Rancharia/SP) em 1933, com 16 anos de idade. Trabalhou inicialmente em lavouras de café e, depois, de algodão. Nos anos 1950 adquiriu um sítio na região de Presidente Prudente, onde liderou uma campanha para a construção de uma escola no bairro rural. Nos anos 1960 mudou-se para a cidade de Presidente Prudente, onde lecionou língua japonesa na associação nipo-brasileira (Bunkyo) local. Ali também criou, em 1974, o curso de pintura infantil, que até 2001 formou cerca de quatro mil alunos. Muitos de seus alunos foram premiados em concursos nacionais e internacionais de arte infantil. A arte da pintura começou ainda na infância, no Japão, como forma de tentar superar a tristeza pela morte da mãe, que ocorreu quando tinha apenas 10 anos de idade. A produção artística de Takeo Sawada abrange diferentes gêneros da pintura e também a poesia, com haikais e tankas, e a escrita, com diversos ensaios publicados e o livro Flamboyant, um jardim de poesia (1990). Casado com Tiyo Kimura, também imigrante japonesa e com quem teve seis filhos, Takeo Sawada morreu em 2004, vítima de um acidente de carro. Em 2004, por seus poemas recebeu do Japão, in memorian, o prêmio “6th Hoshi to Mori International Tanka Contest”. Em 2008, por ocasião dos Cem Anos da Imigração Japonesa no Brasil, recebeu, in memorian, o Diploma de Honra ao Mérito Kasato Maru pelos relevantes serviços prestados à causa da imigração japonesa.
* Escritos / poemas de Takeo Sawada.
Escrito por Margarete Micheletti
Serviço:
Exposição: À sombra do flamboyant – Takeo Sawada
Aberta à visitação até 30 de julho
Realização: Sesc Registro
Curadoria: Carmo Malacrida, Valquíria Prates e Valéria Prates Gobato.
Apoio: Japan Foundation (São Paulo)
Local: Av. Pref. Jonas Banks Leite, 57 – Centro
Visitação gratuita
De terça a sexta, 9h30 às 21h30
Sábados, domingos e feriados, 10h30 às 18h30.
Agendamento de grupos: agendamento.registro@sescsp.org.br
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