A Soul Music Brasileira na voz de Fernando Ébano

30/06/2022

Compartilhe:

Foto: Jeferson Delgado

Por Lucas Rolfsen

Com mais de vinte anos de carreira e dois discos na bagagem, Solta o Som (2010) e O Meu Nome Leva Fé (2018), o cantor e compositor paulistano Fernando Ébano apresenta-se no Sesc Campo Limpo, no início de julho. No repertório, canções de três ícones da Soul Music brasileira: Tim Maia, Cassiano e Hyldon, no show Velhos Camaradas. Aproveitamos para conversar sobre as suas expectativas, seu retorno ao Brasil, após 12 anos vivendo nos Estados Unidos, o repertório do show e suas raízes familiares e musicais. 

Como e quando a música entrou em sua vida? 

Meus tios vêm de escola de samba. Minha tia foi uma fonte provedora dessa influência, porque possuía um acervo muito extenso de música. Como a minha família curtiu muitos bailes dos anos 1970, isso sempre foi muito presente dentro da minha vida, cresci ouvindo esses artistas, então minha musicalidade interage com essa época. 

Com 13 anos participei de um concurso da Corte Mirim do Carnaval de São Paulo, que elegia o passista mirim, o mestre sala e a porta bandeira, o intérprete, tudo voltado ao Carnaval, mas para as crianças. Ganhei esse concurso. Já tinha a vocação, porque minha tia colecionava os álbuns de Carnaval, e eu cantava samba-enredo, ajudava os ‘esquentas’ dessa escola, cantando. O dono viu que tenho veia artística, musicalidade e me impulsionou a ‘defender’ como sambista na dança, porque eu brincava de rodar pandeiro. Ali, comecei a flertar com a arte de uma forma direta e competitiva.  

Nessa época, você já pensava em prosseguir profissionalmente na música? 

Não pensava muito nisso. Um dos meus tios me arrastava para tudo quanto é samba que tinha e, naquela época, a referência musical das crianças era o Toca do Coelho, um grupo infantil de samba. Quando eu chegava na roda com aquela voz juvenil, me destacava cantando esses sambas. Ali começo a entender que a música ia fazer realmente parte da minha vida.  

Você era muito novo e seu tio acreditava no seu talento. Como era essa relação? 

A verdade é que meu tio me levava para ver e ele fazia com que a roda de samba preparasse esse momento para eu poder brilhar. Eu levava isso muito a sério. Fiz 14 anos e fui convidado a fazer parte da Toca do Coelho. Ia rolar um teste lá. Esse grupo reformulava de tempos em tempos, a molecada ia crescendo, e aí fiquei todo empolgado. Só que eu já estava na idade de fazer a transição e sair. Fui tocar samba em alguns grupos da quebrada. Com 15 para 16 anos, migrei para a Zona Norte e inicio minha trajetória na música. 

De que forma sua relação com a música muda a partir desse momento? 

Comecei a ver a música de uma forma mais profissional e passo a fazer parte do grupo Contratempo. Esse grupo chegou a tocar nas melhores casas de São Paulo. Recebi um convite para fazer parte do grupo Moleque Travesso. Gravei um álbum e fiquei três ou quatro anos.  

Escutei falar que no álbum Thriller, do Michael Jackson, tinha um percussionista brasileiro, o Paulinho da Costa. Passei então a explorar essa minha veia artística. No final da minha passagem pelo Moleque Travesso, trago de volta toda a minha influência e a colocar a Soul Music no meu canto.  

Você morou muitos anos nos Estados Unidos, lá, o mercado local da música, de uma cidade para outra, tem uma estrutura melhor?  

Com certeza. Eu volto dos Estados Unidos [em 2009, para gravar e lançar o primeiro disco, Solta o Som, em 2010] como um artista sem investimento, com uma bagagem a mais, por tudo que vivi ali e passei a aprender em relação à música. Um álbum cheio de influências, referências, naquele momento, sendo um artista independente, era óbvio que não ia acontecer nada se não tivesse apoio. As gravadoras queriam fórmulas que já davam certo. O Brasil nunca foi o país de apoiar artistas novos, que fazem coisas diferentes. Hoje a gente vive um novo tempo.  

Hoje você consegue mostrar seu trabalho de forma mais democrática, né? Como você enxerga esse momento? 

Então, é justamente por isso que eu volto para o meu país. Inclusive, cheguei faz 30 dias. Tenho uma conversa com a minha esposa, que entendeu, junto a mim: o Brasil vive um momento de muitas possibilidades, onde a gente não depende da indústria para fazer as coisas acontecerem, precisa apenas ter uma boa ideia e trabalhar duro. Acho que posso, com toda a minha lucidez, contribuir com a música do Brasil, revisitando aquilo que já corre na minha veia há muito tempo, que é esse show Velhos Camaradas, onde me reconecto com a minha cultura, com a música do meu povo, com a representatividade negra. Então, por beber dessa fonte, entendo que tenho esse compromisso de deixar viva a música desses artistas que me deram tudo que tenho.   

Você consegue imaginar e olhar para os desafios que eles três como conjunto ali da época, representando a Soul Music brasileira, tiveram?  

Ver como o Cassiano morreu, ver como Paulo Diniz acabou de morrer, que é também um precursor, ver como o Tim Maia se foi…São artistas que deram para o Brasil uma identidade e não são reverenciados como deveriam, a não ser o Tim Maia. Para mim é uma honra visitar essa história, visitar a música desses caras, acho que minha música não seria possível se não fossem eles. 

Esses artistas, mesmo tendo um momento de sucesso, tiveram momentos difíceis, de ostracismo, não é?  

É o retrato do Brasil, né? O Brasil esquece muito fácil de tudo. De tudo que foi construído. Hoje a gente vê uma nova geração que sequer sabe quem foram esses artistas, não sabem porque estão conseguindo beber dessas fontes. A gente vê uma geração de sambistas que não conhece o mínimo, que é o Fundo de Quintal, por exemplo. A gente vê a molecada bebendo da fonte do trap, do rap, mas não sabe a história de quem projetou essa música aqui. A gente infelizmente sofre pelo apagamento a todo tempo. Então, quando eu revisito a história desses artistas, para mim, é trazer de volta. É um apagamento estrutural. A indústria, que é uma indústria branca, não consegue de forma alguma reverenciar quem de fato merece.  

Falando do show Velhos Camaradas, ouvindo as canções, tem alguma memória afetiva que te toca de forma especial? 

Um dos cantores que me fizeram cantar, foi o Cassiano, é a minha influência mais profunda do canto que eu tenho hoje. Tem uma música do show que me traz uma memória muito profunda, de dentro da minha casa: as reuniões que eu tinha em família. Inclusive, minha tia, que foi empregada doméstica a vida toda, em todo salário trazia um vinil para casa. Essa era a missão dela: manter a nossa discografia ali, sempre bem apurada, bem eclética. E aí, tem uma música chamada Velho Camarada [gravada por Tim Maia, Hyldon e Fábio em 1979], que, inclusive, está nesse repertório. 

Qual foi o maior presente que a música te deu até hoje?  

De onde eu venho, tinha tudo para não estar mais aqui, né? Poderia muito bem ser estatística, e a música salva minha vida. O encontro com a música salva a minha vida literalmente, porque eu cresci ali na quebrada da Caixa D´Água, na Cidade Ademar, onde tinha todo o acesso à criminalidade. Inclusive amigos meus, amigos de infância, eu perdi todos para o crime, para as balas…A música é a minha oportunidade de continuar vivo. 

Dentro desse contexto, você adotou o propósito de seguir na música. As pessoas passaram a torcer por você, não?  

Inclusive salvei muitas vidas também, através daquela picada que tomei, consegui salvar muitos amigos, que hoje trabalham com música. Mostrar esse caminho para muitos amigos. Mas a minha trajetória não seria nada sem a minha família. Realmente tive uma educação muito rígida, mas muito musical. Me deu a oportunidade de viver a vida que eu vivo hoje.  

Você tem previsão de novos projetos? 

Um se chama BlackPagoJam, um EP de sete faixas, onde estou cantando os grandes clássicos da Soul Music: Al Green, Earth, Wind & Fire…São sete artistas, e estou fazendo essa releitura dentro do samba, então a instrumentação é violão de 7 cordas, surdo, pandeiro, tamborim, os instrumentos de samba, trazendo essa influência norte-americana. E tenho um álbum novo, que está pronto e pretendo lançar até o final do ano, que é o Por mim, por nós, com 12 faixas autorais.    

Conteúdo relacionado

Utilizamos cookies essenciais para personalizar e aprimorar sua experiência neste site. Ao continuar navegando você concorda com estas condições, detalhadas na nossa Política de Cookies de acordo com a nossa Política de Privacidade.