A tragédia do capital

07/08/2022

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Em Agamenon 12h, doze atores se revezam em encenação de texto do argentino Rodrigo García

por Kil Abreu

AGAMENON – Voltei do Supermercado e dei uma surra no meu filho (2004), peça do dramaturgo argentino Rodrigo García, é chamada na encenação brasileira de Agamenon 12h. O título não é gratuito. Indica aventura estética  que envolve uma equipe grande de artistas, entre eles e elas doze intérpretes que criaram doze re-dramaturgias cênicas com duração de uma hora cada, a partir do texto original. Como na tragédia clássica, com a qual articula similaridades, o espetáculo atravessa o ciclo solar, como diziam os antigos, e avança pela noite para contar sobre o capital sequestrando a vida.

“Quando pensei em fazer mais uma peça de doze horas não dimensionei bem o tamanho do esforço”, diz o diretor Carlos Canhameiro. “Doze peças que só não são completamente diferentes porque acontecem no mesmo cenário, com quase o mesmo figurino, a partir do mesmo texto. Não havia previsto ensaiar quase doze horas por dia, nem que teria doze faixas musicais inéditas para cada hora da peça, nem luz para cada cena, nem…”. 

O público pode entrar, sair, voltar se quiser, como quem visita um shopping, uma galeria de comércio popular. A extensão temporal fora da ordem não é acidental. Mimetiza o processo de alienação cada vez mais distendido no mundo do trabalho. Dramatiza o tempo útil, tornado inútil, de seres humanos cada vez mais sequestrados nas malhas da produção, administradas sob mentiras a respeito da felicidade. A inspiração imediata do projeto, conta o diretor, veio com a reforma trabalhista de 2017, que entre outras medidas flexibilizou a carga de trabalho até o limite, agora legal, das jornadas de doze horas. Também legitimou o trabalho avulso, enxugou direitos e enfraqueceu os sindicatos ao promover à qualidade de Lei a “negociação” individual entre empregados e patrões, como se de fato se tratasse de uma relação de poder simétrica entre os donos das Casas Bahia, da Volkswagen, e o vendedor de loja, o operário que guia a máquina de encaixe.  Ainda que o texto de García não se refira especificamente à questão do trabalho, a relação não é fortuita. Trata-se, em qualquer caso, da reificação da existência livre para a geração do lucro.

É um tema que ganha representação na cenografia pensada por Renato Bolelli Rebouças. Nela mimetiza-se uma lojinha de camelô que poderia estar no Centro de São Paulo tanto quanto em uma periferia de Recife ou de Taiwan. Pequenas futilidades, delicadezas descartáveis, falseamentos descarados no deserto do real. Dos detalhes infinitos das minibugigangas, ao entorno das estruturas, o cenógrafo chama a atenção para a paisagem que amplifica o sentimento diante daquilo que não sabemos, enfim, se “ainda é construção ou já é ruína”.

Em cena os artistas apresentam-se em revezamento, como no esquema de produção fordista que funda a automatização na indústria. Os ensaios foram feitos separadamente, de maneira que não conhecem o trabalho uns dos outros, umas das outras. Em compensação, a mimética da produção em série encontra resposta em uma tarefa que, embora comum, estimula um desvio importante e dribla o sistema: cada ator, cada atriz foi chamado a criar a sua própria versão da peça. Ainda que a narrativa central permaneça, surgem outras textualidades e sobretudo diferentes teatralidades e visadas sobre o texto.

A encenação em looping de uma mesma célula dramatúrgica já havia sido experimentada por Carlos Canhameiro (com André Capuano e Daniel Gonzalez) em outra montagem: Vigília (2013), de Cassio Pires. O espetáculo, também interpretado ininterruptamente por doze horas, era feito por três atores. Mas ali o mote estava dado: tratava-se de um sujeito que não conseguia dormir e a relação com o tempo distendido dava-se em uma cena compartilhada coletivamente. Agora o elenco é levado a alienar-se do trabalho do outro. Na metalinguística, a montagem comenta a si mesma ao colocar a cena como espaço de representação simbólica da barbárie. Para Canhameiro essa estrutura tende a desfazer da aura que ainda sobrevive no teatro – em tese resistente à massificação e tributário de certa artesania – quando as contradições do modo de produção são confrontadas: “Nós estamos vinculados, anunciados no mercado como força de trabalho mas as forças políticas não reconhecem o trabalho artístico como tal. O período da pandemia no Brasil amplificou isso, mostrou o quanto somos desamparados do ponto de vista trabalhista”.

De fato, não é preciso grande esforço para perceber o limbo em que vivem os artistas, que precisaram articular uma mobilização envolvendo entidades e as alas políticas mais progressistas do Congresso Nacional para poder arrancar do Estado alguns instrumentos “emergenciais” de proteção, que não garantem futuro. Canhameiro lembra o filósofo Paulo Arantes, a propósito do sistema que não só alcança os artistas como os coloca como exceção da exceção, qual seja, a de trabalhadores subprecarizados: “É uma vida besta onde pastamos mansamente entre serviços e mercadorias”.

Foto: Mari Chama

Rapsódia, dinheiro, existência

É desta forma que o espetáculo investiga o texto de García por fora e por dentro. Pela sua fábula, doze vezes representada, e por este plano subliminar que a leva para outras possibilidades de fruição.

Ir ao supermercado e comprar três carrinhos de coisas, comidas inúteis. Voltar para casa, encontrar a família, pegar a estrada, “ir por aí”, ouvir os grilos, ver as estrelas, ir ao restaurante. Parecem coisas pacíficas. A questão é que em Rodrigo García as repetições de uma vida regular são relatadas com o sentimento da revolta íntima de quem percebe a mediocridade da vida vivída. “Sair e se perder por aí, dizem. É mentira. Sempre se sai do mesmo lugar com destino aos mesmos lugares”.

O autor cozinha o paraíso anunciado da felicidade através do consumo em um panelão colocado em fogo alto. A coisa ferve rápido, e fede. Ao ouvi-lo intuímos que são falas de vários personagens. Há o protagonismo de um deles, este sujeito sem nome que, de fato, sai para fazer compras e volta para surrar o filho. E há o filho, a mulher e outras pessoas que falam. Mas no fundo é uma dialógica deliberadamente falseada. Trata-se na verdade de uma única fala, provavelmente a voz do próprio autor, desdobrada em retórica grotesca. Rica em verbos que, no entanto, denuncia o nada da ação diante de um mecanismo inalcançável, que lhe escapa. A violenta imaginação política de Rodrigo García esforça-se para levar a banalidade às suas imagens máximas. Representa o enfrentamento à paralisia na forma de um inconsciente a céu aberto. A ação dramática e o personagem são levados a um esquema mínimo, basicamente o de uma elocução atormentada. A situação não cresce porque já começa no ponto mais alto, no paroxismo da sua denúncia.

Há referências que podem parecer estranhas aos dias atuais. A peça fala em Bill Clinton, Mônica Lewinsky. Mas pouco importa porque os acontecimentos e escândalos sucedem-se na superfície, enquanto o sistema que os move segue inalterado. Talvez por isso a tradução e adaptação (de Canhameiro e Chico Lima) tenha optado por não atualizar as referências, de início dos anos 2000, quando a obra foi escrita. Bin Laden, Lady Di, Saddam Russein, Berlusconi, se já não eram, à época, passam a ser agora parte do acúmulo informacional que a dramaturgia comporta sem problema junto a funcionários do baixo escalão de uma loja de fast-food. Tudo passa a fazer parte de uma mesma paisagem humana composta por gente com ou sem poder resgatada da lixeira da história e reposta agora no rol de enumerações sem valia, a reafirmar o vazio, ao lado de tubos de ketchup e caixinhas de frango frito.

É uma peça que vem na tradição das rapsódias contemporâneas, mas já no seu capítulo avançado, aquele em que o discurso assume quase que totalmente o cinismo, no pensamento tanto quanto na forma de apresentá-lo, de colocá-lo em estado de jogo e fruição. É, em síntese, uma narrativa íntima do cansaço em busca de um horizonte inexistente. Um relato que esperneia o mal-estar do mundo na boca dentada do capital. Nesse sentido está já definitivamente distanciada das formas de romancização da cena que ainda fantasiavam uma sociabilidade assentada em laços comunitários, em expectativas de compartilhamento da experiência como método de agregação social. O texto de García tende mais, pela urgência e desespero, à concisão do conto veloz e a uma regurgitação do veneno consumido em anos de cativeiro. Ao retrato de uma cena de tortura da subjetividade pela propaganda. E a vida girando rápido nas superfícies escorregadias do “mercado”, entre promessas de emoções fugazes e futuro barato. 

“Olha como está o quintal!
Falo pro meu filho
E nós, que temos feito para melhorá-lo?
Nada
E você, o que vai fazer pra melhorá-lo?
Nada
Está assim o quintal
porque temos gastado a vida sem fazer nada
Porque temos gastado a vida fazendo
o que nos disseram que era bom fazer”.

Tragédia e horizonte

A ideia de tragédia moderna centra-se no despertencimento, no abandono do homem pelo divino, à própria sorte. Mas o abandono acontece primeiro sob alguma esperança metafísica que está lá. Aqui, porém, a tragédia é tomada como coisa ordinária, a vida afoga-se em ânsias existenciais que não podem nem mesmo contar, na visão material e niilista de Rodrigo García, com algum mínimo contrato com a transcendência.

O crítico galês Raymond Williams, importante pensador vindo da “nova esquerda” inglesa, estudou o trágico após o fim da tragédia clássica.  Ele diz algo que serve perfeitamente tanto à peça como à montagem brasileira apresentada agora: relaciona a tragédia a acontecimentos do âmbito privado, mas sobretudo à cultura e história determinadas. Determinação, no caso, não é algo acidental. E sendo assim, o que determinaria a existência da tragédia, no texto? “A tragédia começou onde estava o dinheiro”, diz o autor. E estende-se com a alienação no mundo do trabalho, nos mostram os artistas que a levam neste momento à cena. Em ambas as frentes trata-se, como explicou Williams, do destroçamento da moral e, com isso, da instalação da crise ética: “A sociedade se constitui da soma dos seus relacionamentos, e quando estes estão perversamente errados, ou quando as pessoas não mais os compreendem, há uma complicada estrutura de culpa e ilusão que é vivenciada em cada setor da experiência, assim como nos mais óbvios pontos de confluência (…) Antes não conseguíamos reconhecer a tragédia como crise social; agora, comumente, não conseguimos reconhecer a crise social como tragédia[1].

A encenação de Agamenon 12h é, assim, o reconhecimento do trágico nos termos que interessam. Se na tragédia antiga o reconhecimento é o ponto da ação em que a consciência toma contato com a realidade presente, por mais sinistra que seja, aqui, no Brasil de hoje, o trabalho é dobrado. A encenação toma para si a tarefa de atualizar a peça de Rodrigo García e oferecer a ela um contexto em que possa ser lida, experimentada. E nos chama a pensar se do meio da dor podemos nós mesmos, nós mesmas, agir como esta consciência à procura de horizonte.

Foto: Mari Chama

Depoimentos

A equipe de criação de Agamenon 12h foi convidada a escrever depoimentos durante o processo de criação. São notas sobre as questões do texto e sobre as perspectivas de cada artista a respeito de suas narrativas cênicas.

José Roberto Jardim – Ator
Estar num projeto como este, neste tour de force chamado Agamenon 12h, em tempos tão desoladores, renova minhas forças no teatro e na busca por possibilidades de existências e formas outras de expandir sentidos por meio do palco, do corpo e da ação. Teremos doze fissuras, doze singularidades, doze voos cegos rumo ao que mal sabemos. Mas só quem se lança sobre o abismo tem o privilégio de sentir o vento das profundezas sobre o rosto. Sim, a minha forma aqui será proporcional à inquietude. E este espetáculo, entre amig_s/artistas que admiro profundamente, a convite de Carlos Canhameiro para que eu performasse uma das doze horas de sua duração, é um retorno a porquês que me guiam nesta caminhada. Esta será uma jornada rumo a tudo aquilo que penso precisarmos continuar acreditando: na força incendiária que só o Teatro possui.

Anuro e Cacau – Figurino
Ao invés de tentar construir uma identidade complexa para as personagens presentes no texto, o figurino teve como disparador a roupa-uniforme, que funciona como um agente despotencializador de subjetividades. Esse conjunto de peças de vestir funciona como meio de ruptura entre a persona que existe dentro e fora dos sistemas de trabalho, uma relação tão intrínseca à vida cristalizada na contemporaneidade.
Por meio da pesquisa de referências que circulam entre imagens de moda e caminhadas pelo bairro do Bom Retiro, a construção do figurino começou com visitas a lojas de uniformes da Av. Tiradentes. O foco, no primeiro momento, era utilizar os uniformes existentes, porém percebemos que seria mais interessante investigar os códigos presentes, observando acabamentos, tipos de tecido, composições, cores e texturas. Criando assim uma roupa-paródia, um remix de todo o repertório vivenciado na pesquisa.

Amanda Lyra – Atriz
O processo de criação de Agamenon 12 Horas tem sido bastante instigante para mim por dois motivos. Em primeiro lugar, a aventura performática proposta pela direção, com a liberdade de cada intérprete ser também o criador da sua performance, escolhendo como fazer esse texto tão desafiante. O segundo motivo é o texto em si. Gosto muito dos textos do Rodrigo Garcia e acho que esse em especial funciona muito bem para acessarmos o sentimento da violência e da revolta que sentimos sendo brasileiros nos últimos anos. E também a nossa impotência de agir perante tudo isso. Uma mulher que volta do supermercado depois de fazer as compras do mês e espanca o marido, o filho. Uma personagem que se sente alheia às decisões do mundo capitalista, que não criou nada, não inventou nada, não sabe como funciona nada. O texto explora de maneira muito interessante a alienação do trabalhador dos meios de produção e a violência que isso pode gerar na rotina de uma pessoa, de uma família. A peça é um dia de fúria dessa personagem, um surto violento contra essa alienação, uma tentativa meio torpe de entender e explicar o mundo, o capitalismo, a tragédia, a esperança. E a tragédia nesse caso não está em Troia, não é matéria de heróis e deuses. A tragédia aqui é matéria de homens e mulheres medíocres, profanos. A tragédia aqui começa no mundo industrializado, começa nas gôndolas do supermercado. E a esperança está no lixo e na pobreza, e também precisa de dinheiro para funcionar. Quem vai sujar as mãos para resgatar a esperança? E quem vai soltar o dinheiro?

Pedro Machite – Ator
Quando um grego escreveu uma tragédia há milênios atrás, ele jamais imaginou quantas versões e subversões desta obra ainda estariam por vir. Tudo aquilo que a gente põe no mundo já não mais nos pertence, tem vida própria e é atravessado também pelas subjetividades de quem observa, ou melhor, pelos lugares de onde se vê. Eu duvido que o Rodrigo Garcia, ao fazer sua releitura de Agamenon, tenha sequer concebido a possibilidade desse espetáculo ser feito por uma figura drag queen. De fato, é uma ideia que não faz muito sentido, a princípio (mas quem tem limite é município, já diria a sabedoria popular). Ao partir da questão central da violência patriarcal presente na obra, proponho o deboche como arma e o estranhamento como percurso, ao unir um discurso e uma figura tão distantes. Talvez esse espetáculo seja a própria definição de “se perder por aí”, pra ver onde vai dar e eu mal posso esperar pra colocar isso no mundo e descobrir que caminhos são esses que serão atravessados.

Danielli Mendes – Atriz
Como dar pistas falsas, já que estamos falando de uma sociedade sem propósito? Como não gerar opiniões rápidas ou instaurar uma situação de causa e efeito? A violência e a fragilidade, a variação brusca de humor, nada faz sentido para mim, dramatizar, então vamos esvaziar ao máximo, criar outra camada, outras ambiências. Também não se tratava somente de dissociar a fala, o texto das ações corporais. Nas primeiras leituras do texto, entrei em contato com vídeos de pessoas usando óculos de realidade virtual, e eu senti uma pena profunda pela humanidade. Como chegamos nisso? Nos submeter a jogos que provocam ambientes terríveis que deixam os corpos completamente perdidos, histéricos, amedrontados; estamos fazendo de tudo para mediocrizar o nosso organismo e estamos conseguindo com sucesso. Usarei um óculos de realidade virtual, não verei nada de fato, mas coloco o meu corpo no risco de quem vive esses jogos. Para cada parte do texto tenho uma ambiência diferente, um abismo, um ataque de pássaros que bicam os meus olhos, um desequilíbrio de quem sente que vai descer uma montanha russa, uma pastora evangélica que não sabe se prega ou se goza… E o texto vai saindo desses lugares. O texto é uma camada, é uma dinâmica que estará lá compondo com a ambiência virtual. Que desagradável é participar dessa humanidade! “E vamo que vamo”… Em rio com piranhas jacaré nada de costas!

Veronica Valenttino – Atriz
Primeiramente preciso falar de algo importantíssimo desse processo que escolhemos trabalhar a representatividade trans. Geralmente esperamos que nossas corpas adentrem certos espaços já acostumadas a representar apenas personagens que reforçam determinados estereótipos e, por mais que necessário seja essa inclusão, muitas vezes nos incomodamos com alguns lugares em que nossas corpas são lidas e colocadas. No entanto é muito gratificante experimentar outros lugares, falar de outros assuntos, que inclusive são extremamente importantes de se discutir por nosso viés. Estar nesse processo é estar me experimentando quanto atriz criadora e travesti falando de outras inquietudes, incômodos e falhas desse Cistema excludente. É um desafio tanto para com a adaptação do texto para minha singularidade travesti quanto no processo criativo de interpretação. Um tiro no escuro, mas com o alvo certeiro, por estarmos em estado de prontidão e atividade, experimentação e desafio.

Eduardo Bordinhon – Ator
Sempre tive uma relação dúbia com o trabalho. Ao mesmo tempo que odeio – cresci vendo meu pai perder a potência de vida para um subemprego, talvez por isso meus sentimentos -, eu não paro de trabalhar. E me culpo quando não estou trabalhando. Daí, surgiram umas aberrações não tão anormais para nossos tempos: viajo muito a trabalho, trabalho muito, falo mal da ideia de trabalho, trabalho com o que amo, tenho mil frentes de trabalho. Nada especial também em nossos tempos neoliberais e brasileiros. Mas também, longe de um subemprego.
Outro dia, conversando com um rapaz no Uber, ele com a minha idade dizia que queria ir embora de nossa cidade, embora do país. Falou que se era para ter um subemprego, melhor fazer isso num país melhor. Ele quer ir embora, trabalhar “lá fora”, se mostrava frustrado em ter um diploma de engenheiro e não trabalhar na área. Ele e muitos.
Agradeço por trabalhar na coisa, ou nas muitas coisas que amo. Às vezes, me sentindo meio Uber, sempre ciente de que estou longe de sê-lo. Mas a MEI tá lá.
Costumo perguntar aos trabalhadores com quem cruzo na vida o que é mais divertido em seu trabalho e essa pergunta os desconcerta. Passei a fazer isso depois de pensar o quanto dizem, para mim, “que divertido” quando digo que sou artista.
Aí, nos longínquos 2016, me deparei com esse texto, Agamenon, em um estudo que nós (na época eu era parte de um nós) da Cia. de Teatro Acidental estudamos e achei que tinha alguma coisa ali. Aí, me afastei da Cia. para tocar outros trabalhos (sempre eles, sempre agenda conflituosa) e outras piras e levei comigo esse texto. Chamei o Carlos Canhameiro para “montar uma peça pequena, para eu, Cauê Gouveia e Chico Lima” e ele leu o texto e falou de suas ideias de transformar a peça pequena em 12 peças pequenas e era uma ideia irresistível e conversamos da jornada de trabalho de 12 horas inaugurada pelo Temer. 12 trabalhos de Hércules, etc.
E aí, 2018, 2019, pandemia… agora, voltamos para esse texto e fazemos nosso trabalho. E penso nessa trajetória, na minha relação ambígua com o trabalho, no trabalho que dá fazer um texto inteiro no meio de 11 performances que nunca vi e acho o máximo e acho uma felicidade e privilégio imenso fazer isso e parte disso.
E tem o texto, executar o texto, olhar para esse discurso do começo dos anos 2000, do tempo da moderação, de um personagem que não se modera em nada, cuja violência não é moderada, em um mundo sem violência moderada (ainda que contida em certas partes e para certos corpos) e dar corpo a esse texto, a essa violência. Ser meio professor em cena, explicar explicitando a violência, indo a fundo, sujando as mãos no meio das asinhas de frango frito para ver se, no meio desses escombros encontro alguma coisa além.

Janaína Leite – Atriz
Parti da ideia do autômato, da reprodução, do descartável, pra buscar uma presença não psicológica, não dramática pra cena. Alguém que precisa simplesmente reproduzir.
Gosto mais da ideia de habitar uma instalação e ter coisas concretas pra fazer nela do que a ideia de construir ou sustentar uma personagem ou situação.
Gostaria que tudo na cena fosse de alguma forma terceirizado. Uma presença que cumpre coisas e, o que pode, terceiriza. Uma funcionária que bate cartão. Esvaziada de sentido no que faz.

Mariana Senne – Atriz
Quando Carlos Canhameiro me convidou pra participar do projeto Agamenon, eu li o texto do Rodrigo Garcia e me lembrei de um romance de Bernardo Carvalho chamado Reprodução. Nele um estudante de chinês vocifera que a China vai conquistar tudo e eles serão os novos donos do mundo e portanto, como falante de chinês (diga-se de passagem muito iniciante), terá um lugar a pertencer no futuro. Como o narrador do texto de Garcia, o estudante de chinês é um cara muito engraçado, que faz piadas incorretas, conservadoras, homofóbicas, sexistas e tudo aquilo que já podemos imaginar. Ambos os narradores representam pra mim uma espécie de radiografia de um ethos fascistóide. Mas o que me interessa nesse tipo de material, mais do que personagens, narradores, o que se vê tanto em Garcia quanto em Carvalho, é a exposição de um fluxo de pensamento. Que identificamos e reconhecemos. Aí quando se é convidada a se lançar nessa máquina duracional de 12 horas, como criadora me pergunto: como colocar esse fluxo de pensamento em cena e por quê?
Esse processo de criar essa performance, portanto, tem sido uma experiencia solitária de encontro com o texto, deglutição dele, vendo para que imagens me leva. Então falo que é uma performance, pois me preparo sozinha pra encontrar com o Carlos Canhameiro (o diretor, mas sobretudo o olhar que me olha nesse meu exercício de busca) e nesses (poucos) encontros começo a entender os comos e os por quês.
Descobri, seguindo nesse ritmo descrito por duas ou três semanas (já não me lembro mais pois o ritual de uma trabalhadora precária da cultura que tem filho pequeno me levou a armar um esquema de acordar todos os dias às 5h30 da manhã e conseguir decorar texto – sem filho – por três horas), que falar o texto para aquele que me escuta e me olha (no caso o Carlos) me fez perceber que tinha que trazer o máximo de empatia possível, o máximo de humor possível, o máximo de humanidade possível (precisamente a humanidade modelo branca masculina heterossexual e sua – risível – fragilidade branca). Mas sobretudo entender quais gatilhos o texto opera na minha experiência, na maneira como eu vivo, penso, ajo, crio o meu filho, já que o subtítulo do texto é: voltei do supermercado e dei uma surra no meu filho. Enfim, a performance pra mim, portanto, vira uma aproximação e afastamento desse fluxo de pensamento que fala, desse ethos fascista que se presentifica/se performa. E esse jogo acontece entre mim e o texto e acontece simultaneamente entre quem me assiste e me escuta.
Pra mim, o que interessa é entender que esse ethos fascista está de algum modo dentro de nós, como um ovo de serpente pronto a crescer, nascer e se estabelecer como lógica de pensamento. E daí faz sentido como exercício performático investigar como esse pensamento opera, como desmontá-lo e expô-lo, quais estratégias de vitimização usa, que ataques faz nas entrelinhas, o que afirma como liberdade.
Talvez o gesto performático seja então: performar de tal modo a fazer a platéia ir embora. Esse é o ponto que estou agora.

Nilcéia Vicente – Atriz
A experiência de pensar trajetória de Agamenon foi como montar um quebra cabeças com peças que não deviam se encaixar e formar um mosaico que pudesse ser visto e sentido de várias formas. Mixando elementos diversos, cuidando para que ficassem submersos entre camadas e fragmentos da visão convulsiva que o texto propõe e ainda sobreposições pensadas pela direção. Que resultou pra mim na visão de uma personagem patética, um indivíduo frustrado e automatizado, confuso, assustado e portanto, acredito, facilmente reconhecível no nosso panorama de humanidades. Demasiadamente humano e cotidiano.

Cauê Gouveia – Ator
É uma experiência com sentimentos contraditórios: por saber que tem muitas versões da mesma obra, dá pra mergulhar muito na sua proposta de atuação. Dá uma sensação de liberdade saber que a minha versão é só um lado do prisma, não precisa dar conta de todas as nuances e contradições (de um jeito positivo). É quase um diálogo com o fordismo: eu só fabrico a peça que tem a ver com a violência do texto. Quer ver a peça que fala da apatia política que tem no texto? É com o próximo da linha de montagem.
Ao mesmo tempo, quando sei que tem tanta gente que eu admiro fazendo esse mesmo texto, vem o pensamento: “Será que eu tenho as ferramentas pra diferenciar a minha proposta de uma maneira significativa?” Dá um receio de fazer algo sem sal, sem originalidade e se ver só como uma máquina de reprodução. Aí lembro que a experiência não é “pra mim” ou “sobre mim”. O público vai montar a imagem que quiser desse quebra cabeça.

Jorge Neto – Ator
O monólogo a partir das máquinas, AI, Voz Google, GPT-3, inteligência artificial, Sophie (primeiro robô humanoide), entre outros. Esse interesse surgiu após conversa com o diretor, onde eu buscava um distanciamento extremo da narrativa e propus três direções: 1 – ponto motor do meu corpo (passaria todo o monologo ativando o esfíncter como objetivo principal); 2 – Interpretar todo o monologo com o objetivo de ser amado em primeiro plano com o texto e; 3 – Ser guiado e estruturado por máquinas, resultado esse o que mais despertou interesse do diretor e o que mais me despertou interesse no processo de pesquisa…

Guilherme Marques – Trilha sonora
Estou produzindo “meio período” dessa jornada de 12 horas, isto é, elaborando 6 horas de música original para seis performances de 1 hora, que ocorrerão em momentos variados, dialogando com as 12 pessoas envolvidas na encenação de Agamenon, ao longo duma temporada que contempla 12 apresentações. Isso significa que cada trilha de 1 hora que produzi tocará 2 vezes durante toda a temporada. Trabalhei nesse material pensando-o como uma colagem de materiais sonoros diversos – melodias, texturas, ruídos, timbres, ritmos e falas; provenientes de fontes sonoras diversas – instrumentos musicais, sons eletrônicos, a voz humana e algumas coletas de internet. Partindo de algumas referências partilhadas com as outras pessoas envolvidas no processo criativo – o texto, as ações performáticas pré-definidas (cantar uma música, dançar uma música e cantar parabéns), a noção imaginária do cenário e a duração da encenação – comecei por gravar “coisas” musicais improvisadas e bastante variadas: alguns solos de bateria, grooves pontuais, melodias e explorações de timbres na harpa do piano, além de sonoridades eletrônicas utilizando computador e aplicativos digitais de “fabricação” sonora. Refletindo sobre minhas leituras do texto, procurei estrutura-lo em seções, que me tocavam com diferentes apelos emocionais – raiva, esgotamento, violência, brutalidade, impotência, consternação, enfim… A partir dessa leitura estrutural do texto comecei a organizar minhas colagens musicais pensando em recortes, sobreposições, transições e junções dos diferentes materiais que havia produzido e coletado anteriormente, além de criar (ou tocar) outros novos, conforme as colagens avançavam e me requisitavam novos elementos de ligação. Num primeiro momento compus três trilhas independentes e distintas em suas formas e materiais empregados, que seriam usadas (segundo minha lógica de raciocínio) como peças únicas sem uma macro conexão estrutural. Num segundo estágio passei a trabalhar com as três músicas restantes encarando-as como partes de uma estrutura maior, que contempla o uso das trilhas em diferentes horas do dia, para potencializar ou colocar em vigília diferentes afetos nas pessoas envolvidas nas performances. Nesta segunda acepção, meu entendimento é de que as seis trilhas que produzi compõem juntas uma totalidade, e cada uma delas explora diferentes perspectivas sonoras em formas e materiais diversos, que permitem uma lógica de aplicação variada conforme o momento em que são empregadas.

Paula Mirhan – Trilha sonora
O maior desafio no processo de composição dessa trilha foi pensar que cada música seria mais um elemento de performatividade, sem ter a necessidade de estimular ou significar a cena, mas ainda assim conseguir criar algo que se sustentasse como obra durante 1h.

Renato Bolelli Rebouças – Instalação cenográfica
Para Agamenon 12h criei, a partir da proposta do Carlos, uma lojinha de camelô, muito comum em grandes centros comerciais, que vende brinquedos, ursinhos de pelúcia, e uma infinita quantidade de presentes, lembranças, souvenirs e todo o tipo de coisa barata, colorida, pequena – em geral feita de plástico – coisas produzidas industrialmente e em série, tanto nas periferias das cidades brasileiras como em outros lugares do mundo, seja na China, em Taiwan, Turquia. Coisas de vida útil relativa, que seguem, depois de uma alegria efêmera, aos cantos, gavetas, armários das casas, e depois inundam as lixeiras, ruas, terrenos baldios e lixões a céu aberto, derretendo lentamente em sua longevidade de 200 a 500 anos, vagando sem uso.
Fomos trocando ideias, impressões e percepções sobre esta situação, traduzimos pra instalação cenográfica o desejo de um “zoom out” no enquadramento do cenário, que passa a revelar não apenas a loja, mas seu entorno: carcaças de lojas vizinhas (estão em construção ou já abandonadas?), em meio a pilhas de ursinhos que estão sendo produzidos, costurados, finalizados. Das coisas “encantadas” que brilham às coisas desalmadas (seja pelo abandono, seja pelo modo de produção). Pilhas de brinquedos, de coisas, de lixo. Pelos nossos pés, ao redor, essas coisas que eram e já não são nada, empilham-se escultoricamente, em composições quase belas.
Neste cenário, que parece distópico mas é uma pequena e precária tradução/ representação do que acontece em milhares de lugares no mundo, vendedores encenam suas performances. Compra e venda, desejo e descarte, emoções líquidas e ansiosas pela novidade seguinte. A triste sedução cotidiana que aceitamos do capitalismo para compensar algum tipo de alegria.


[1] Williams, Raymond. Tragédia Moderna. Cosac & Naify. São Paulo, 2002.


Agamenon 12h

De 10 a 27 de agosto. Quartas a sábados, das 10h às 22h.
Local: Praça (Térreo)
Não há necessidade de inscrição nem retirada de ingressos.
Saiba mais clicando aqui.


Kil Abreu é jornalista, crítico e pesquisador.

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