O carrossel do tempo do “forrozeiro brasileiro” por Mariana Paiva
Mariana Paiva é baiana de Salvador, escritora, jornalista e doutoranda em Teoria e História Literária pela Unicamp. É autora dos livros Canto da Rua (Penalux, 2016), Damário Dacruz: Um homem, uma surpresa (Edições ALB, 2015), Lavanda (Kalango, 2014) e Barroca (P55 Edições, 2011). É coautora da canção Ondas, escolhida pelo público como Melhor Música no Prêmio Caymmi de 2014, e tem textos traduzidos para inglês, espanhol e alemão. Tem contos publicados nas revistas Pessoa, Vacatussa e Livre Opinião, e escreve no blog Assim Falou Mariana. Em 2013, foi uma das primeiras artistas a participar do programa de residência artística da Casa do Sol, onde viveu a escritora Hilda Hilst (1930–2004), com um projeto de escrever um livro sobre o lugar.
Capa por Ale Amaral – Paulistano e pai da Laura. Trabalha no Sesc São Paulo desde 2004, atualmente como designer gráfico no Selo Sesc. Toca bateria no barulhento duo Bugio e colabora musicalmente com diversos artistas nacionais da cena experimental e de improvisação livre.
Gente saindo de tudo quanto é canto e correndo em direção ao caminhão virado no meio da estrada. Não saiu no jornal mas dou garantia de que assim foi, a carga toda esparramada no asfalto e o povo correndo nervoso querendo levar um pouco pra si. Mas não era dinheiro. Não era comida, não era caminhão de mudança, não era cerveja. O que criou o frisson naquele dia na estrada entre as cidades de Eunápolis e Porto Seguro, na Bahia, foram três mil cópias do primeiro CD do forrozeiro Adelmário Coelho. O ano era 1995.
Aí a continuação natural da história seria cortar para o momento em que Adelmário lamentaria o acidente e lembraria que suas tão suadas economias foram investidas em CDs que foram levados por desconhecidos. Mas também não foi bem assim. É que a maior surpresa aconteceu depois daí: Adelmário ligou o rádio um dia e se deparou com sua música tocando. Não fale mal de meu país tava na boca do povo graças a uma senhora que pegou um dos CDs na beira da estrada, levou pra casa e ouviu. Gostou tanto que foi até a rádio FM Porto, de Porto Seguro, e entregou ao locutor Charles. Foi sucesso imediato. O telefone de Adelmário começou a tocar: produtores e empresários queriam contratar seu show. Mas é que ele ainda não tinha banda.
Veja bem: não dá pra culpar o forrozeiro. Ele tinha emprego formal, carteira assinada, cartão de ponto. A ideia de gravar a música em CD foi uma aventura, uma gracinha depois de tanta gente lhe dizer que sua voz era boa. Virar forrozeiro nunca tinha sido sonho do menino que cresceu em Barro Vermelho, distrito de Curaçá, na Bahia, numa casa na qual nunca se ouvia música, ninguém cantava, ninguém dançava. Lá o radinho de pilha só dizia as notícias: quem morreu, a feira que tá mais cara, que celebridade tá de visita ao Brasil. Era o jeito de saber o que acontecia no mundo que existia pra além daquelas bandas.
Não era uma família festeira aquela. Seu José e dona Antonia eram donos do armazém de secos e molhados, e trabalhavam vendendo cigarros enquanto o povo se divertia na praça. Os meninos — eram quatro: Nadete, Nizete, Adelmário e Naidelene — saíam por ali pra dar uma olhada na festa, brincar um pouco e voltar antes que a luz acabasse. A luz da cidade piscava três vezes: na primeira, quem tivesse na rua começava a se despedir dos convivas; na segunda, era pra ir se encaminhando pra casa; e a terceira era breu total. À essa hora, as crianças já deviam estar do lado de dentro de casa.
Adelmário era filho do doutor da cidade, título informal conferido pela população de Barro Vermelho. Na bodega da família vendia de um tudo: querosene, farinha, feijão, perfume, prego e remédio, que seu José mesmo receitava com a sabedoria que a vida lhe deu.
– A pessoa adoecia e mandava um bilhete, ‘Ô, seu José, tô sentindo isso e aquilo’, aí meu pai mandava remédio. Nunca matou ninguém. Se alguém tinha uma dor de dente era ele quem arrancava, isso sem cobrar nada. Ele medicava todo mundo.
Nesse tempo em Barro Vermelho, aprender na escola era na base da palmatória: se dona Guiomar, a professora, perguntasse quanto era nove vezes nove e o menino respondesse 79, era bolo na certa. Se perdesse de ano era o caso de passar o ano seguinte inteiro na roça plantando feijão e milho, catando malva. Orelhão (ou telefone público) chegou ali muito depois: a vida era simples e pro menino Adelmário era de casa para escola, da escola para a bodega ou para a roça dos pais. Não tinha festa, e música menos ainda.
Já rapaz, ele saiu de Barro Vermelho pra ser militar em Salvador. Era o sonho de Adelmário. Serviu por seis anos, e o dinheirinho pouco que ia juntando logo virou um carro: o fusca transformou Adelmário em motorista de táxi. Era ele pra cima e pra baixo de Salvador levando gente pros compromissos. Ao mesmo tempo já fazia curso de segurança industrial. Adelmário sempre foi “correria”, como se diz hoje. Arrumou logo um estágio no Centro Industrial de Aratu e de lá já saiu empregado no Pólo Petroquímico de Camaçari, onde ficou por 20 anos. Nesse tempo era aquilo mesmo que todo mundo sabe: cartão de ponto, trabalho, refeitório, cartão de ponto, ônibus. Todo santo dia.
Tudo muito linear e previsível se não fosse a força de um dos grandes ditados baianos: “Deixe o prego que o martelo chama”. O universo conspirou e, de férias, Adelmário e sua esposa Marinalva — sua fiel escudeira — viajaram para Caruaru. Lá, na cidade que é uma das mecas do forró do Brasil, Adelmário sentiu vontade de gravar uma música. Era tanta gente tocando e cantando por tudo quanto era canto que atiçou o cantor que ele nem sabia que era.
– Na primeira composição você pensa em homenagear sua cidade, tá com uma saudade danada. Eu falava da crueldade da seca, das dificuldades do ser humano e dos animais. Falei: ‘Marinalva, eu vou gravar essa música apenas pra colocar pros amigos’.
O dono do estúdio, Edson Lima — que agora tá pelas bandas do Pará — gostou do que ouviu e quis gravar mais músicas. Adelmário avisou logo que só tinha uma, Barro Vermelho e sua realidade. Aí Edson, que não era besta nem nada, lembrou que estavam em Caruaru, e forrozeiro era o que mais tinha ali. Foi até à casa de Onildo Almeida, compositor famoso por canções gravadas por Luiz Gonzaga, Gilberto Gil e outros, e de lá voltou com cinco músicas. Rápido assim. Adelmário terminou fazendo um vinil com 10 músicas intitulado No balanço do forró, com arranjos de Edson.
– Quando eu cheguei com esse disco em Juazeiro e Senhor do Bonfim a galera se entusiasmou, mas eu tava trabalhando no Pólo, aí disse que não, eu não ia fazer nada, que tinha outro objetivo.
E assim botou o forrozeiro pra hibernar enquanto voltava pra Salvador para bater seu cartão de ponto. No ano seguinte, em 1995, Adelmário voltou a Caruaru, já na intenção de gravar um CD. Foi quando tudo mudou: tinha juntado dinheiro para mandar prensar três mil cópias do CD, e lá na porta do estúdio, foi presenteado com a canção Não fale mal de meu país. Gravou, ficou massa, todo mundo contente. Até o dia do tal acidente com o caminhão virado, pelo menos.
O telefone tocando com o povo querendo show e Adelmário sem banda. Foram ainda sete anos namorando com a música e casado com o trabalho de carteira assinada. Mas um dia o forrozeiro decidiu se aparecer de vez. A condição foi colocada por Marinalva, esposa e fiel escudeira de Adelmário: só ia ter show se os meninos — os filho, William, Will e Daiane — fossem os dançarinos. Era o jeito que tinha de todo mundo ficar junto: se a família toda tivesse envolvida no negócio da música, aí não ia ter saudade nem distância.
Marinalva veio com a ideia: ‘Filhinho, vou botar os meninos pra dançar’. Adelmário estranhou:
– Onde é que já se viu forrozeiro ter dançarino? Aí ficavam os três ali parecendo três patinhos. Depois a gente percebeu que ia ter que formar casais de dançarinos. Aí contratamos um coreógrafo, e nossa linguagem sempre foi de reproduzir nossa cultura, já fiz feira em cima de palco, representação de santa, cangaço. O balé se tornou um ponto altíssimo do projeto.
Depois de um tempo, os filhos foram assumindo outras funções na carreira de Adelmário: Daiane é diretora financeira, enquanto Will e William são diretores administrativos. Marinalva segue acompanhando todos os eventos ao lado de Adelmário.
– Fico feliz de ter esse amparo familiar, que é sagrado. Em meu primeiro DVD, eu apresento minha família cheio de gratidão. Fiz questão de agradecer e vi muitas lágrimas na plateia.
Em 25 anos de carreira Adelmário já fez um pouco de tudo: show em cidade pequena e no exterior, forró de cunho político (Burro é quem mata jumento, sobre a matança dos jumentos, e Sr. Ministro, pelo amor de Deus, em defesa das vaquejadas), sempre no comando de tudo o que acontece (“delegando e demandando”, como ele mesmo diz). Gosta dos fãs e trata todo mundo com carinho: quando acaba o show, se não tiver outro em seguida, fica de uma a uma hora e meia atendendo quem chega. Já chegou a fazer quatro shows por noite, mas hoje em dia, por questão de segurança, não passa de dois.
– Tenho total pé no chão, amiga, e se eu posso dar um conselho pra aqueles que tão começando, é que eles amadureçam observando a segurança, porque vai ter tempo pra fazer tudo. Não precisa se expor, expor a equipe. Faço a reflexão pra quem tá começando, que tem essa condição absurda de querer conquistar tudo a mesmo tempo. A carreira pode ficar curta.
De cantor, admira mesmo o rei Roberto Carlos, “por sua discrição e simplicidade”, apesar de admitir que não é muito de ouvir música. Adelmário, tal qual seu José, gosta mesmo é de escutar as notícias e saber das tendências. As redes sociais, por exemplo, ele acredita que são uma revolução.
– Antigamente, quando eu ia mandar uma música para uma rádio, eu botava a fita no correio e esperava 30 dias pra chegar. Agora você bota na rede social ou na plataforma e todo mundo ouve. Procuro me antenar com a realidade da sociedade, e o conteúdo eu tento levar sempre na esfera construtiva, pra trazer alegria e prazer. Gosto da música popular brasileira com história. Olhe Asa Branca de Luiz Gonzaga centenária aí, ó. Tem música que faz hoje e amanhã você nem sabe mais.
No seletíssimo hall de suas preferências musicais, estão ainda Trio Nordestino (a primeira formação, com Lindu, Cobrinha e Coroné), Martinho da Vila, Simone e Simaria, Maiara e Maraísa e Maria Gadú (“Acho ela bacana pra caramba”, ele diz, todo empolgado). Entre um papo e outro, Adelmário — que no momento da entrevista deveria estar no repouso vocal pré-show — entoa uns versinhos de suas preferidas do Rei, Detalhes e Eu te amo, te amo, te amo.
É mesmo no meio da estrada que ele abre espaço para a entrevista, entre uma e outra cidade do interior, algumas às vezes sem sinal de celular. São dez meses de vida cheia de rotina de alimentação saudável e exercícios diários e dois meses em que tudo fica em suspensão: é quando Adelmário sai em turnê. Todos os horários são alterados, são quilômetros e mais quilômetros de estrada de um show para o outro, e o cantor procura descansar o corpo e a voz para subir ao palco. São João, afinal, é tempo de forró.
Falando nisso, Adelmário diz que já foi muito de dançar, mas agora não dança mais. Marinalva protesta, porque queria seu parceiro de dança animado.
– Ela puxa minha orelha com isso. Olhe, Marinalva é a pessoa que sempre cuidou de tudo, coreografia, venda de show. Ela é o cérebro desse projeto. Ela é muito disciplinada, muito organizada, muito amorosa, muito verdadeira, honesta. Tem os defeitos? Tem os defeitos. Mas as virtudes dela botam no escuro qualquer defeito. Guerreira, quando quer vai mesmo. Estamos juntos há 44 anos, é uma vida, nem sei mais viver sem ela. Meus pais foram nessa mesma linha, os pais dela também. Peço a Deus que nós possamos concluir essa jornada. Eu amo ela muito.
E é nesse clima mesmo de amor que o forró vai. Adelmário se apressa em dizer que a coisa mais rara que tem é ver uma confusão. Pra ele, o forró é o símbolo musical da cultura nordestina, do encontro das famílias, da harmonia. E do xamego, claro. Sua atual música de trabalho, Namorada preferida, evoca um amor antigo que ainda é lembrado com o coração palpitando.
– Ah, o forró é agregador, muito carinhoso…é do namoro, do rostinho colado, da conversinha no ouvido.
Se foi com Não fale mal de meu país que Adelmário ficou conhecido, é por suas love songs que ele é mais lembrado Brasil afora. Tem canção pra tudo quanto é momento: Tempinho da rede fala do amor que esfria com o cotidiano mas que dá pra consertar passando um tempinho colado na rede, enquanto Anjo querubim — que também tem versão em dueto com Ivete Sangalo — vai em busca do amor perdido pedindo pro baião arrancar a dor do peito pra não chorar. A gente entende, Adelmário, afinal, o amor, como diria o poeta Vinicius de Moraes, “é a coisa mais triste quando se desfaz”. Quem nunca, né? Atesto e dou fé.
Mas é que também, com um forrozinho tocando e cabeça no ombro de alguém, os pés encadeados no ritmo da dança, talvez seja mais fácil amar. É nisso que Adelmário aposta nesses mais de 20 anos de carreira, que falar de amor tem espaço sim no salão de dança. E ele não vai sozinho nisso: ao longo desse tempo teve as mais diversas parcerias, de Ivete Sangalo a Zelito Miranda, de Carlinhos Brown a Del Feliz, de Leo Macedo a Marquinhos Café. Quem vier vem bem vindo e é recebido pela efusiva voz de Adelmário, todo contente pelas voltas que a vida dá (como seria diferente? ele talvez seja a primeira pessoa do mundo favorecida com sua carga saqueada à beira da estrada).
– Quero levar essa música um pouquinho mais a frente, cristalizar ela mais a nível de Brasil. Eu gostaria de ver meu forró em outros lugares. Veja bem, eu sempre penso em elevar ao máximo essa minha informação musical, mas eu não sei o limite dela. Sou feliz com o que já consegui, que é ter minha família do meu lado, na paz. Sou feliz.
E quem é que vai dizer que não? Adelmário vai em seu próprio caminho cheio de trilhas sonoras de amor e zambumba, enchendo sua casa e tantas outras por aí da música que não tinha naquela lá em Barro Vermelho, onde cresceu. Mas é que ele tá tirando o atraso…
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