Por Geni Núñez
Depois de abril, agosto é um dos meses em que nós, povos indígenas, temos uma de nossas agendas de ativismo das mais intensas, inclusive, no dia nove deste mês, é celebrado o Dia Internacional dos Povos Indígenas. Estas datas com ênfase em nossas pautas são uma das maneiras de fortalecermos nossas lutas, que, no entanto, excedem este calendário.
Sabemos que, historicamente, povos indígenas têm sido colocados, quase sempre, na posição de objetos de pesquisa, tanto em dissertações e teses, como também nas produções artísticas, audiovisuais, literárias. Até à Constituição de 1988, éramos associados à menoridade social, uma categoria que nos equiparava à infância do humano. Embora saibamos do tom pejorativo desta atribuição, celebramos as crianças e reforçamos que a comparação com elas é um presente, um elogio. Apesar disso, sabemos que a intenção política deste atrelamento tinha, e ainda tem, um objetivo de nos tutelar. Se infância vem do “infante”, daquele que não fala por si só, então nós também teríamos condições de fazê-lo por nós mesmos, pois, por meio da tutela, haveria sempre um Outro, que este sim, saberia como nos traduzir, como nos apresentar, como nos resumir para o mundo. Diante disso, faço aqui uma nota para relembrar que as crianças, bem como os demais bichos, têm sim suas formas de expressão, são pessoas, são gentes inteiras.
Contra colonizando este movimento de tutela, povos indígenas de diversas etnias vêm produzindo, criando, escrevendo, filmando, dançando, cantando suas próprias narrativas. Neste sentido, não é que apenas agora estamos “tendo voz”, mas é recente que se tenha uma escuta maior destas perspectivas. Para isso, é fundamental contarmos com o apoio de instituições que possam ser, conosco, alto-falantes que reverberem estas histórias, que ecoem estas denúncias, que expandam nossos chamados. Nisso, saudamos as equipes das unidades do Sesc que têm se disponibilizado a construir alianças que fortaleçam nossa diversidade.
Inclusive, multiplicidade e diversidade são das palavras que talvez melhor descrevam a programação do Agosto Indígena e da Mostra de Cinemas Indígenas: Cinemas da Terra e da Vida, realizada no CineSesc, pois cada uma dessas atividades traz notícias do quanto, ao contrário do discurso racista que nos crê homogêneos, somos muitos. Esta multiplicidade está nas linguagens que utilizamos, na diversidade dos territórios de que partimos, para os quais chegamos, está nas gerações, nas etnias, no gênero, na sexualidade, está, sobretudo, na singularidade dos modos de vida.
Desde as rodas de conversa que celebram nossas literaturas, até os curtas, médias e longas-metragens de nossos cinemas, o que cada pessoa poderá acompanhar nesta programação será um contato com a afirmação de nossa autonomia. Contestando as profecias que pregavam nosso desaparecimento, conforme fôssemos integrados, o que cada um dos trabalhos sinaliza é nossa capacidade de invenção e a força de nossa memória viva.
Após séculos de colonização em que se tentou incutir uma série de estereótipos sobre nossos povos, filmes indígenas podem ser uma poderosa ferramenta de reflorestamento de imaginários, uma vez que, por meio deste protagonismo, poderemos nos contar, em primeira pessoa (do plural), nossas dores, alegrias, nossas caminhadas.
Talvez, mais do que apresentar mais de um lugar ao mesmo tempo, o que esta programação convida é para mais de um tempo em um mesmo lugar, ou em lugares variados. Que outros mundos convivem aqui? De que outras formas poderemos conviver e confluir com os demais seres e conosco mesmos? Imagem também é imaginação e as nossas, indígenas, trazem denúncias, mas também compartilham sonhos, muitos dos quais só podem ser vividos coletivamente. E é para esta coletividade que nós te convidamos.
Geni Núñez é indígena Guarani, escritora, psicóloga, mestra e doutora pela UFSC, membra CDH – Conselho Federal de Psicologia e também da ABIPSI – Articulação Brasileira de Indígenas Psicólogos(as).
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