Alegria, minha gente! O legado centenário de Ivone Lara

15/04/2023

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Alegria, minha gente!

O legado centenário de Ivone Lara

Por Ilessi
Cantora, compositora, professora de canto e pesquisadora musical. Atuando desde 1998, tem quatro discos lançados, sendo o mais recente “Dama de Espadas”, de 2020.

Meu primeiro contato com Dona Ivone Lara foi através do disco “Alegria, minha gente”, lançado em 1982, um ano depois de meu nascimento. Meu pai sempre foi um grande comprador de discos e adquiriu este logo que foi lançado. A sensação que tenho em relação a este álbum é como se fizesse parte de mim antes de eu me entender por gente.

Desde muito nova, me chamava a atenção o fato de ela ocupar um lugar no meio do samba quase que absolutamente ocupado pelos homens. Uma mulher cantora e compositora, sendo a primeira mulher a compor um samba-enredo no Grupo Especial e a fazer parte – ainda que simbolicamente – da ala de compositores de uma escola de samba, o Império Serrano.

Depois de ganhar um pouco mais de maturidade, fui tomando consciência de que esta atenção se transformava em algo maior. Dona Ivone é, sem dúvida, minha maior referência de mulher cantora compositora negra brasileira. Então, dá para pelo menos imaginar a importância dessa mulher na minha vida. Eu, uma mulher cantora compositora negra brasileira.

Eu sempre me fascinei por figuras revolucionárias. E, para mim, Dona Ivone foi uma das mulheres mais revolucionárias do mundo. Digo isso não só pelo que grande parte das pessoas que têm acesso e conhecem sua vida e obra sabem, no que se refere a uma mulher que foi política, estrategista e vanguardista, por exemplo, quando apresenta seus sambas como sendo de autoria de seus primos, Mestre Fuleiro e Tio Hélio, para que eles fossem aceitos no meio do samba, majoritariamente masculino. Ou em relação ao fato de que somente aos 56 anos ela pode se dedicar integralmente à carreira artística, ainda assim, com dificuldades. Ou ainda em relação a sua atuação fora da música, mesmo com todas as restrições impostas a negros e pobres, ela conseguiu:

Aos 17 anos ingressar na Faculdade de Enfermagem atual UNIRIO, onde se graduou enfermeira.

Aos 21 anos, prestar concurso público para o Ministério da Saúde

Aos 25 ser contratada pelo Instituto de Psiquiatria do Engenho de Dentro, onde se especializou em terapia ocupacional com a médica psiquiatra Nise da Silveira, desempenhando nesta área um papel fundamental na reforma psiquiátrica no Brasil, a partir da década de 1970.

Formar-se em Serviço Social, sendo uma das primeiras assistentes sociais do Brasil e uma das primeiras mulheres negras a se formarem em um curso superior no país. E eu também sou formada em Serviço Social pela UFRJ.

Ou mesmo considerando que ela teve tanto uma formação advinda da cultura popular carioca, do samba, do jongo e do choro, quanto uma formação mais clássica, tendo aulas de canto e coro com Lucília Guimarães e recebendo elogios do marido desta, o maestro Heitor Villa-Lobos.

Digo tudo isso também pela revolução estético-musical que ela realizou, que, para mim, também tem um imenso caráter político.

A singularidade de seu canto, de seu timbre e sua interpretação elegante, refinada, singela, forte, inteligente e emocionada. Pela criação de um estilo marcante e extremamente sofisticado de improvisação vocal através de contracantos.

A profundidade e a diversidade de suas composições, tanto música, quanto letra (sendo as que ela mesma fazia ou as feitas por seus parceiros, coisa que ela tinha um faro afiadíssimo para escolher).

E uma mulher que, mesmo com tanto sofrimento e cansaço, teve um profundo amor à vida, e não abriu mão de sua verdade, “fruto de tanta maldade que já conheceu”. Um exemplo para que nós negros não sucumbamos, apesar de tudo.

Uma mulher que craquelou a caixinha de “mães do mundo” em que insistem em enquadrar as mulheres negras. Ela subverteu e invadiu os espaços masculinos, se permitindo vadiar, criar e se realizar.

Que nos ensinou a potência de ser, realizar, atuar com força e intensidade, e, ao mesmo tempo, com profunda delicadeza.

Que nos ensinou sobre fé.

Que nos transmitiu o aviso atento e forte da necessidade de “pisar nesse chão devagarinho”.

Viva o legado centenário de Dona Ivone Lara!

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