Alexandre Matias, do Trabalho Sujo, lembra de seus grandes encontros artísticos neste século nas unidades Sesc
Alexandre Matias, 42 anos, é jornalista há mais de vinte anos e tem sua produção centralizada no site Trabalho Sujo (www.trabalhosujo.com.br). Atualmente é curador de música no Centro Cultural São Paulo e no Centro da Terra.
Capa por Ale Amaral – Paulistano e pai da Laura. Trabalha no Sesc São Paulo desde 2004, atualmente como designer gráfico no Selo Sesc. Toca bateria no barulhento duo Bugio e colabora musicalmente com diversos artistas nacionais da cena experimental e de improvisação livre.
Tenho uma enorme dívida com o Sesc. Eu e pelo menos umas duas gerações próximas à minha. Porque foi graças à rede de centros culturais espalhada por São Paulo que pude assistir a alguns dos shows da minha vida — desde turnês internacionais de bandas estrangeiras minúsculas às primeiras vindas ao país de titãs da música não-comercial — e também a participar de momentos cruciais para a evolução da música brasileira.
Sou de Brasília, estudei na Unicamp e passei parte de quase todos os anos 90 em Campinas, bebericando da vida cultural de São Paulo em doses curtas. Quando me mudei para cá no início do século, já tinha noção da importância do Sesc para a cultura da cidade, mas uma sequência de shows no Sesc Pompeia, um dos melhores lugares de São Paulo, cristalizou a importância destes centros culturais na minha vida.
Não recordo com precisão as datas (aconteceram exatamente na virada do século), mas foram três shows duplos que tive a oportunidade de ver extasiado no teatro daquela unidade: dois Stereolab, dois Yo La Tengo e dois Tortoise com a participação de Tom Zé. Os shows cruzavam uma série de tendências que seguiriam unidades anos depois: organizados pela produtora mineira Motor Music, eles conectavam a cena independente brasileira à rede internacional underground e ajudavam a reunir pessoas desconhecidas com o mesmo tipo de pensamento no mesmo lugar. Parte do público destas noites seguiu ferrenho seus caminhos no meio independente brasileiro, criando bandas, selos, sites, zines, produtoras e gravadoras que ajudariam a aumentar a auto-estima do incipiente indie brasileiro ao mesmo tempo que mostravam que seus equivalentes estrangeiros não eram rockstars esnobes e que gostavam de colocar a mão na massa.
Poucos anos depois, no final de 2002, essa mesma cena se encontraria no festival Upload, que consagraria essa primeira fase do novo indie brasileiro na Choperia do Sesc Pompeia, ao reunir três atrações de peso: os Los Hermanos encerrando a turnê de seu disco O Bloco do Eu Sozinho, o Instituto apresentando-se pela primeira vez ao vivo (apresentando o rapper Sabotage ao público indie) e os gaúchos do Cachorro Grande em plena primeira fase de sua carreira, com o vocalista Beto Bruno sendo atingido pela guitarra de Marcelo Gross na testa e terminando o show banhado no próprio sangue.
A Choperia — que agora chama-se Comedoria — é um dos melhores palcos de São Paulo e perdi as contas de quantas noites felizes passei ali.
Dois shows do Television, dois do Dean & Britta, dois do Lee Ranaldo, Budos Band, Bootsy Collins, Sebadoh, Bob Mould, Racionais MCs, BadBadNotGood, Júpiter Maçã, Pin Ups, Guilherme Arantes, Kassin, BNegão, Fagner tocando com o Cidadão Instigado, Deerhoof, o Instituto tocando Pink Floyd, João Donato, Bixiga 70, a Céu tocando Beatles com os Mockers, Metá Metá, Marcelo Camelo e Rodrigo Amarante em discos solo, além das atrações do festival nova-iorquino Nublu e do paulistano Jazz na Fábrica.
Duas situações amarram meu coração ainda mais a esta unidade do Sesc: em 2004 fui convidado para fazer a mediação de bate-papos com o público de alguns dos participantes da quarta edição do festival Hype, com nomes de peso da música de vanguarda da época, como Fennesz e Wolf Eyes, mas o grande destaque era a participação do japonês Damo Suzuki, vocalista da mítica banda alemã Can, que viria para o Brasil para uma jam session com nomes de peso de nossa música experimental (como Carlos Issa do Objeto Amarelo, Maurício Takara, Miguel Barella e Sérgio Ugeda, do grupo Diagonal). O papo aconteceria no mesmo dia que a conversa com o escocês Steve Goodman, o Kode9, que explorava músicas de países pouco conhecidos em seu set. Em vez de conversa com cada um deles em horas separadas, resolvi reunir os dois num mesmo papo de duas horas, numa longa conversa que me abriu a cabeça em relação a mercado, estética, vanguarda, produção comercial e artística. Fui conversar com dois artistas e ganhei uma aula particular, que pude dividir com o público.
O outro evento foi o convite para fazer a curadoria do célebre Prata da Casa, a sessão voltada para bandas iniciantes realizada toda terça-feira, gratuitamente, na própria choperia, em 2012. Sempre acompanhei a cena independente brasileira e tive a sorte de poder reunir uma geração e tanto na minha edição do Prata. Foram shows gratuitos de nomes tão diferentes quanto O Terno, Onagra Claudique, Bonifrate, Maíra Freitas, Rodrigo Caçapa, Kika, Sambanzo, Pazes, Afroeletro, Dead Lover’s Twisted Heart, Chinese Cookie Poets, Elo da Corrente, Gang do Eletro, Madrid, Circo Motel, Mahmundi, Cícero, Silva, A Banda de Joseph Tourton, Rafael Castro, Iconili, Max B.O., Me and the Plant, Tibério Azul, Jorginho Neto, Psilosamples, Quarto Negro, Dona Cila do Coco, Tibless e Elma, entre outros. Fui o primeiro jornalista convidado a fazer parte da curadoria que não trabalhava em um caderno de cultura — fui reconhecido pelo meu site, o Trabalho Sujo, que já tinha mais de quinze anos de serviços prestados à música brasileira.
Mas não é só o Sesc Pompeia que fala mais alto às minhas lembranças. No Teatro do Sesc Pinheiros pude assistir à consagração de novos nomes da música brasileira, como shows históricos de Emicida e Tulipa, bem como apresentações mágicas de nomes tão diferentes quanto o maestro brasileiro Arthur Verocai, o guitarrista nigeriano Bombino e o saxofonista norte-americano Ornette Coleman, cuja apresentação foi interrompida por um blecaute, que o veterano do free jazz tirou de letra, tocando mesmo sem energia elétrica.
No Sesc Santo André pude assistir às diversas edições do melhor festival de hip hop de São Paulo, que começou no século passado trazendo Afrika Bambaataa para o Brasil pela primeira vez quando ainda se chamava Duloco e, depois de mudar o nome para Indie Hip Hop (e posteriormente para Batuque), com shows históricos de Jurassic 5, Mos Def, Lyrics Born, Blackalicious, Hieroglyphics, Talib Kweli e De La Soul, além de consolidar a geração do rap brasileiro pós-Racionais, com as primeiras apresentações de peso de artistas como Instituto e Sabotage, Xis, DJ Primo, Elo da Corrente, Contrafluxo, Rappin Hood, Mzuri Sana, Black Alien, Kamau, Emicida, Academia Brasileira de Rimas, Ogi e Mamelo Sound System. Shows históricos e de formação para a cena.
Quem me trazia para o Sesc Santana foi o projeto Rotações, feito ao lado do site Radiola Urbana, em que músicos brasileiros eram convidados para resgatar discos na íntegra dos anos 1973, 1974 e 1975 — assim pude ver Céu tocando o Catch a Fire de Bob Marley, o Cidadão Instigado tocando o Dark Side of the Moon do Pink Floyd, O Terno tocando o Lóki de Arnaldo Baptista, Emicida, Thiago França e Rodrigo Campos recriando o primeiro disco de Cartola, Karina Buhr tocando o primeiro disco dos Secos e Molhados.
O Teatro do Sesc Vila Mariana também foi palco de apresentações memoráveis, como o projeto Hallogallo do guitarrista do Neu! Michael Rother, Criolo lançando seu Convoque Seu Buda, um show inacreditavelmente alto do Mogwai em 2003, o Lô Borges tocando pela primeira vez ao vivo seu mágico primeiro disco no início deste ano. A Comedoria do Sesc Belenzinho também me deu momentos sensacionais, como o show das Rakta ou a apresentação do DJ Flying Lotus ao lado do baixista Thundercat.
Foram — e são — experiências sentimentais causadas pelo vínculo por uma música que não toca no rádio, não move multidões nem movimenta cifras de dinheiro. São artistas que abraçam a experiência e o novo, a mensagem mais que o meio, o contato humano mais que o mercado.
Os Sescs sempre abriram portas da percepção sensorial por meio de encontros intensos e intimistas, reunindo dezenas, centenas ou no máximo um milhar de pessoas ao mesmo tempo para um abraço coletivo para com a arte. São eventos e situações que ajudaram a me entender como profissional, como cidadão, como ser humano.
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