Angélica Freitas nos guia pela memória da música caipira a partir da história da dupla Alvarenga e Ranchinho.
Angélica Freitas é poeta e tradutora, e uma das mais destacadas vozes da poesia brasileira contemporânea. Publicou os livros Rilke Shake (Cosac Naify / 7 letras, 2007) e O Útero é do Tamanho de um Punho (Cosac Naify, 2012) — vencedor do prêmio de Melhor Livro de Poesia de 2012, da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). Lançou também o romance gráfico Guadalupe (Companhia das Letras).
Capa por Ale Amaral – Paulistano e pai da Laura. Trabalha no Sesc São Paulo desde 2004, atualmente como designer gráfico no Selo Sesc. Toca bateria no barulhento duo Bugio e colabora musicalmente com diversos artistas nacionais da cena experimental e de improvisação livre.
“ouve meu cântico, quase sem ritmo / que é a voz de um tísico, magro, esquelético / poesia épica, em forma esdrúxula / feita sem métrica, com rima rápida”
Assim começa “O Drama de Angélica”, um dos maiores hits da dupla Alvarenga e Ranchinho.
Durante muito tempo, não houve Angélica em território nacional que escapasse de ser agraciada com pelo menos um trecho dessa quilométrica música. Eu mesma precisei ouvir, incontáveis vezes, a tragédia de minha xará, que tinha uma beleza helênica e havia morrido de cólica. Foi na adolescência (no fim dos anos 1980, no Rio Grande do Sul) que tomei contato com a obra de Alvarenga e Ranchinho, por meio de outra dupla de cantores e músicos, a Tangos & Tragédias. Eu era muito tímida e ficava nervosa quando alguém perguntava: “Conhece ‘O Drama de Angélica’?”. Antes de poder responder, lá vinha a cantoria. Com o passar do tempo, dei o devido valor a esse primor de composição. Além do humor fino, o que dizer das rimas, todas em proparoxítonas?
“Essa música é a avó de ‘Construção’, do Chico Buarque”, me diz o poeta Fabrício Corsaletti, paulista de Santo Anastácio e um fã da música caipira. É, também, a pessoa que mais entende de poesia que eu conheço.
Mas, para minha surpresa, Fabrício é um dos poucos amigos — de trinta e poucos anos — que conhecem Alvarenga e Ranchinho. Fiz um teste. Escrevi o início de “Romance de uma caveira” (“Eram duas caveiras que se amavam / E à meia-noite se encontravam”) no Facebook. Muita gente veio comentar que conhecia a canção. “Minha avó cantava essa música para mim”, escreveu uma conhecida, que morria de medo das tais caveiras. Houve vários comentários de teor parecido. Ou seja, em algum momento, Alvarenga e Ranchinho foram tão famosos que hoje suas músicas parecem ser de domínio popular.
Pergunto à cantora Cida Moreira, grande intérprete de Brecht e Kurt Weill, e dona de um senso de humor maravilhoso, se Alvarenga e Ranchinho foram importantes em sua formação musical. Bingo. Ela diz que sim. “Eles eram muito fortes musicalmente, influenciaram muitas gerações, até a música sertaneja perder sua origem principal, como vemos hoje. Eram ingênuos, bem humorados, contavam casos.”
Percebi que eu pouco sabia sobre a dupla e resolvi descobrir mais sobre sua história. Aliás, por ser tão surpreendente, me chamou a atenção Alvarenga e Ranchinho ainda não terem um livro dedicado só a eles.
Alvarenga só houve um, mas Ranchinhos foram três. Murilo Alvarenga nasceu em Itaúna, Minas Gerais, em 22 de maio de 1911. Diésis dos Santos Gaia (que nome etéreo para um caipira!), o primeiro Ranchinho, era natural de Jacareí, São Paulo, e veio ao mundo em 23 de maio de 1912. Ou seja: estamos falando de dois senhores geminianos. Por falar nisso, uma de suas músicas mais engraçadas se intitula justamente “Horóscopo”, e, claro, é uma sátira. Tomando como exemplo o mês em que nasceram: “Cuidado com o mês de maio / Não se case nem a muque / Criança do mês de maio / Já vem dançando botuque”.
Na categoria efemérides, é importante dizer que no ano passado, seu primeiro disco, “Circuito da Gávea / Liga dos Bichos”, um 78 rpm que saiu pela Victor, completou 80 anos.
Os dois se conheceram nos anos 1930 (provavelmente em 1933, segundo a pesquisadora Rosa Nepomuceno1), em Santos, no Circo Pinheiro, de propriedade do tio de Alvarenga. Murilo vivia com a família do tio no bairro paulistano do Brás desde criança, quando sua mãe morreu. No circo, fazia alguns números: era trapezista e malabarista. Diésis já ganhava a vida cantando na rádio, e tinha o apelido de Ranchinho porque gostava muito do samba-canção “No Rancho Fundo”, de Ary Barroso e Lamartine Babo. Por que o diminutivo? Por sua baixa estatura. Mas Diésis tinha um problema: era boêmio e faltava muito ao trabalho. Em especial do programa Fantástico, por ocasião da morte de Alvarenga, em 1978, o Ranchinho original abriu seu coração e contou os motivos que o levaram a desistir da dupla. “Abandonei por várias razões. Mulheres. Cachaça. Irresponsabilidade. Jogo. Gastei todo o dinheiro que eu tinha.” Muito carismático, acabou ocupando grande parte da reportagem. O locutor do programa televisivo parecia lamentar mais a pobreza do primeiro Ranchinho (hoje ele depende da ajuda dos outros nas ruas de São Paulo) do que o falecimento de seu colega2.
Como era impossível contar com Ranchinho, Alvarenga teve de pedir ao seu meio-irmão, Delamare de Abreu, que cobrisse as ausências cada vez mais frequentes do parceiro. Mas a verdade é que Delamare não gostava muito de ser o Ranchinho postiço (mais tarde, foi ser pastor protestante). Foi Homero de Souza Campos (1930–1997) que encarnou Ranchinho fielmente de 1965 até a morte de Alvarenga, em 1978. Basta ver os vídeos dos dois em ação para notar o olhar de admiração de Homero para com Murilo, afinal o chefe daquela empreitada musical que durou mais de quarenta anos.
Consta que, no velório de Alvarenga, os três Ranchinhos estiveram presentes.
Quem imagina os dois vivendo na roça, pitando um cigarro de palha e observando a vida besta das galinhas passar, bem, está enganado. Quando Murilo e Diésis se conheceram e começaram a cantar no Circo Pinheiro, nos anos 1930, eles ainda não eram caipiras. E mesmo quando decidiram ir trabalhar na capital paulista, em circos e teatros, e posteriormente na recém-inaugurada Rádio São Paulo, de seu repertório constavam gêneros muito urbanos como tangos, valsas e marchinhas de carnaval. Algo curioso costumava acontecer quando eles se apresentavam: em vez de se emocionar com os tangos entoados, a plateia achava a maior graça dos cantores. As pessoas não paravam de rir. Não havia jeito de serem levados a sério. Tanto melhor para eles, que foram espertos e abraçaram essa comicidade. Começaram a contar anedotas e piadas nos shows, além, claro, de cantar paródias3.
O potencial de fazer rir veio a inspirar outra dupla algumas décadas depois: Tangos e Tragédias, que mencionei antes, composta originalmente pelos gaúchos Hique Gomez e Nico Nicolaiewski (que morreu em 2014). Os maestros Kraunus e Pletskaya, como eram conhecidos, arrancavam gargalhadas com dois hits alvarenga-ranchinianos: “O Drama de Angélica” e “Romance de uma Caveira”. Ainda hoje, a dupla, em nova formação (com a cantora e instrumentista Simone Rasslan), apresenta essas canções e talvez seja a maior responsável pela divulgação da obra de Alvarenga e Ranchinho no país. Enviei um e-mail a Hique Gomez para lhe perguntar sobre a dupla caipira, e ele respondeu: “Você não acredita que estou ensaiando o Drama de Angélica com corais aqui em Portugal para três shows. Três corais diferentes”. Sobre a importância de Alvarenga e Ranchinho, escreveu: “Quando começamos a entender que o nosso trabalho estava se caracterizando como humorístico, tivemos esse padrão a que recorrer”.
Lá pelos anos 1940, eles já eram conhecidos como Os milionários do riso. A popularidade de Alvarenga e Ranchinho não teria sido possível sem a ação de um grande agitador da música caipira, o jornalista, escritor e empresário Cornélio Pires (1884–1958). Cornélio tinha um sonho: colocar a caipirada toda para tocar nas vitrolas do Brasil. Com dinheiro próprio, bancou os primeiros 78 rpm dos cantores daquela que era conhecida como a sua Turma Caipira. Com os artistas, saía a viajar pelo interior do país. E, como era um homem de visão, teve uma grande sacada para difundir esse tipo de música: comercializar toca-discos. Quem comprasse um aparelho ganhava dois ou três 78 rpms. (E a roça inteira ficava a girar a manivela de suas vitrolas para ouvir as cantorias em duas vozes.)
“O aparecimento dos discos caipiras coincidiu com o crescimento do rádio, e um ajudou o outro”, escreve o jornalista José Hamilton Ribeiro em seu livro “Música Caipira: as 270 maiores modas de todos os tempos” (Realejo Livros, 2015). Pois foi justamente na Rádio São Paulo que Alvarenga e Ranchinho — ainda em sua versão urbana — tiraram a sorte grande. E isso teve muito que ver com o sobrinho de Cornélio Pires, Ariovaldo Pires (1907–1979), também conhecido como Capitão Furtado.
Capitão Furtado era um famoso radialista na carioca Rádio Cruzeiro e tinha um programa muito popular chamado Cascatinha do Genaro. Em 1934, mudou-se para a capital paulista para trabalhar na Rádio São Paulo. Naquele momento, estava à procura de uma dupla para atuar em “Fazendo Fita” (1935)4, que seria o primeiro filme falado rodado em São Paulo, com direção de Vittorio Capellaro. Buscava substitutos para a dupla caipira e Caçula, que havia desistido das filmagens. Vendo Alvarenga e Ranchinho circular pela rádio, ele pensou que a duplinha seria perfeita para os papéis. Fez o convite. Como não eram bobos, eles aceitaram5. Foi uma mudança de guarda-roupa, de repertório e de vida. Escreve Rosa Nepomuceno em “Música Caipira: da roça ao rodeio” (Editora 34, 1999), “Em três anos juntos, tinham virado humoristas, artistas de cinema e, sem terem nascido na roça, dupla caipira”. Nada mau.
Alguns anos depois, quando voltou para o Rio para trabalhar no famoso Cassino da Urca, Capitão Furtado levou consigo Alvarenga e Ranchinho. Os dois cantaram em meio a uma constelação de artistas nacionais e internacionais — consta que o cantor americano Bing Crosby (1903–1977) teria vindo cumprimentar a dupla depois de um show.
Eram a atração caipira do cassino, um toque de um Brasil ainda predominantemente rural. Ficaram tão famosos que foram convidados a se apresentar na Argentina (em 1936, uma temporada no Teatro Smart) e em Portugal (em 1950). Mas, no Cassino Estoril, em terras portuguesas, o repertório usual não fez sucesso. A plateia, de maioria estrangeira, só se empolgou mesmo quando Alvarenga puxou um “Mamãe eu quero”. E até o final da temporada, só tocaram músicas carnavalescas.
“Quem não conhece esse baixinho tão gordinho / Que agora está quietinho / Governou lá no Catete 15 anos / Hoje tá só urubusservando”, cantavam os dois em “Salada Política” (1947). O baixinho tão gordinho, claro, era Getúlio Vargas, que havia sido deposto e tinha esperanças de voltar ao poder. Por causa de suas críticas ao político, Alvarenga e Ranchinho foram presos quatro vezes pelo Departamento de Imprensa e Propaganda de seu governo. Mal os shows acabavam e eles eram levados diretamente para o xilindró, onde passavam a noite. Até que um dia foram convocados para tocar suas sátiras diante de Getúlio. Os caipiras ficaram receosos, mas foram encontrá-lo.
Há pelo menos duas versões para esta história. A primeira, contada pelo historiador Boris Fausto em artigo de 20056, diz que a dupla foi levada até o Palácio das Laranjeiras por Alzira Vargas, filha do político e grande apreciadora da obra dos cantores. Lá, Getúlio teria escutado as canções e, achando-as engraçadas, deu ordens para que não fossem mais censurados. A segunda versão é do primeiro Ranchinho, Diésis dos Anjos Gaia. Em entrevista a um programa televisivo, disse que a dupla fora convidada a cantar num aniversário de Getúlio Vargas em sua fazenda na cidade de São Borja, Rio Grande do Sul.
“Chegando lá, nós cantamos todas as músicas, todas as críticas que nós fazíamos dele. E ele gostou, riu muito, se divertiu bastante. E diante de todos os ministros, diante de todos os censores, diante daquela gente toda, ele nos liberou, disse que podíamos continuar fazendo críticas, desde que fosse uma crítica razoável, que não ofendesse o físico nem a moral de ninguém.”
Para Boris Fausto, depois desse encontro, a verve não foi a mesma. “Naturalmente, como contrapartida, Alvarenga e Ranchinho trataram de se conter. Uma acomodação bem típica do nosso padrão cultural”, escreveu.
Entre as canções famosas que espinafravam Getúlio está a paródia “História de um soldado” (a música original era de 1907, “O soldado que perdeu a parada”, de Eduardo das Neves). Neste caso, a crítica é à burocracia: “O marechal, que não gosta de embrulho/ Pegou logo na pena e escreveu para o Getúlio/ O Getúlio que é homem muito ativo/ pegou a papelada e mandou para o arquivo”.
Outro político que se incomodou bastante com as sátiras foi Jânio Quadros, o Homem da Vassoura, naquele momento governador da cidade de São Paulo e candidato presidencial. Ele chegou a proibir o disco “Alvarenga e Ranchinho e os Políticos” de tocar nas rádios em 1959, multando as emissoras que ousassem desrespeitar seu decreto. O motivo da censura eram estes versos: “O Jânio vem aí, o Jânio vem aí/ Não é trote/ Assistir a posse do Lott”. (O marechal Henrique Teixeira Lott e o político paulista Adhemar de Barros disputaram as eleições para presidente da República em 1960 — a última antes do golpe militar. Jânio acabou saindo vencedor.)
Mas nem tudo era crítica. Juscelino Kubitschek e Adhemar de Barros, porém, caíram nas graças de Alvarenga e Ranchinho, que se engajaram em suas campanhas eleitorais.
Nos anos 1960, eles ainda faziam sátiras e paródias, mas já não tinham tanta repercussão. Segundo a pesquisadora Rosa Nepomuceno, após o golpe de 1964, Alvarenga e Ranchinho acharam melhor não se meter mais com política. Continuaram tocando o repertório caipira no interior de São Paulo e de Minas Gerais, onde estava sua maior base de fãs, até o fim de sua carreira.
Gravada no primeiro 78 rpm da dupla, essa canção, composta com o Capitão Furtado, alude à Segunda Guerra Ítalo-Etíope, ocorrida entre 1935–1936, quando o ditador italiano Benito Mussolini deu ordens às suas tropas para invadir a Abissínia, atual Etiópia. O conflito aqui é transposto para o Brasil, com os personagens Bastiana, uma mulher negra, e Seu Bepe, um homem de origem italiana:
A Itália e Abissínia já tão dando o que falar
Pelo jeito que eu tô vendo isso vai acabá mar
Inda hoje houve um fecha lá no fundo do quintar
A Bastiana com o seu Bepe já chegaram a se unhar
Bastiana virou e disse, eu sou neta de africano
Pra defender minha gente já comprei uma dois cano
Seu Bepe ficou furioso deu um berro de italiano
Mazia, porca miséria e de Itália porco cano
A história acaba com Seu Bepe indo para a “assistência” e Bastiana para a cadeia. Por isso, a música termina pedindo paz.
A canção é dos anos 1950, mas infelizmente continua atualíssima:
Sobe o óleo sobe a banha
Os tubarão se assanha
Se rindo, pintando o sete
Se recorre à greve, então
Veja a compensação
Baixa logo o cassetete
Sobe o preço da bagagem
Também sobe as passage
Claro que Alvarenga e Ranchinho não iriam perder a oportunidade de satirizar a milenar ciência da astrologia.
Quem ainda não casou
Não se case em janeiro
Que a desgraça desse mês
Se arrepete o ano inteiro
Não se case em fevereiro
Fevereiro é mês faiado
Quem se casa nesse mês
Os fios nascem pelado
O cenário é um cemitério:
Eram duas caveiras que se amavam
E à meia-noite se encontravam
Pelo cemitério os dois passeavam
E juras de amor então trocavam
Sentados os dois em riba da lousa fria
A caveira apaixonada assim dizia
Que pelo caveiro de amor morria
E ele de amores por ela vivia
Ao longe uma coruja cantava alegre
De ver os dois caveiros assim felizes
E quando se beijavam em tons fúnebres
A coruja batendo as asas, pedia bis
Mas não houve final feliz no além-túmulo. A caveira acabou trocando o caveiro por um “defunto fresco”.
Parceria com M.G. Barreto, essa canção é um drama em quatro atos, todo rimado em proparoxítonas. Como poema, é um feito, e deve ser uma das canções mais engraçadas de toda a música brasileira. Um trecho:
O dia cálido deixou-me tépido
Achei Angélica já toda trêmula
A terapêutica dose alopática
Lhe dei em xícara de ferro ágate
Tomou num folego triste e bucólica
Esta estrambólica droga fatídica
Caiu no esôfago deixou-a lívida
Dando-lhe cólica e morte trágica
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