Amaro Freitas e as descobertas sonoras em um Brasil profundo

30/07/2024

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Compositor e pianista compartilha processo criativo, sons da floresta amazônica, relação com o público e rotina de turnês brasileiras e internacionais

POR LUCAS ROLFSEN

Leia a edição de AGOSTO/24 da Revista E na íntegra  

Como definir e explicar esse artista e seu caminho na música, que começou em Sangue negro (2016), ganhou o universo com Rasif (2018) e Sankofa (2021), e agora deságua nas profundezas amazônicas em Y’Y (2024)? Essa alma nascida em Recife (PE), no dia três de setembro de 1991 nunca deixou de acreditar no seu potencial, aliando técnica e intuição, sempre com a intenção de celebrar a música ancestral dos povos que cá já existiam antes da colonização. Imerso na Floresta Amazônica, Amaro deu vida a muitas atmosferas musicais no atual trabalho. “Não parece com Recife, não parece com São Paulo. Você está de frente para um gosto, uma comida, uma cultura e um rio que não é comum”, explica o artista. 

O menino que queria tocar bateria, hoje, apresenta uma madura experimentação musical e sensorial. Seja utilizando-se da técnica de piano preparado – que surge com John Cage (1912-1992) na década de 1940, e que, no caso de Amaro, pode fazer com que o instrumento ganhe apitos de madeira, sementes, pregadores de roupa, simulando ruídos entre um acorde e outro –, seja trazendo suas reflexões mais íntimas. “O público que vai para o meu show não vai só para celebrar, mas também, curioso, quer viver uma experiência”, resume. 

Acompanhado pelo baixista Jean Elton e pelo baterista Hugo Medeiros, amigos de longa data, ou sozinho no palco com seu piano – formato de seu show atual –, Freitas colhe os frutos de seu reconhecimento profissional. Até outubro deste ano, ele já terá passado por diversos estados do Brasil, além do Japão, Estados Unidos e continente europeu. Antes de sair em turnê internacional do Y’Y, Amaro Freitas falou de suas múltiplas experiências neste Depoimento, durante apresentações nas unidades do Sesc Campo Limpo e Piracicaba, em junho. “Em um momento, era evangélico e estava tocando na igreja, no outro, conectado com o candomblé, e em outro, com o jazz. Tudo isso foi me formando”, destaca. 

memória 
Ouvia música de igreja, meus pais cantavam para mim. Participei do coral infantil. Isso soava como um ambiente de acolhimento. Ter uma base religiosa é importante para minha identidade como cidadão, e com a família que tive, foi muito bom. É uma lembrança que me faz sentir seguro, é parte da minha autoestima. Me trouxe um senso de coletividade, porque eu sempre fazia tudo em grupo.  

princípio 
Quando comecei a ganhar um salário, pude dizer: “agora, vivo de música”. Dava aula em um projeto social. Em seguida, comecei a tocar em clube de jazz, era um dinheiro que nunca tinha recebido.  Podia me organizar, ajudar minha família e estudar. Depois, em 2016, gravei Sangue negro, álbum extremamente importante para tudo o que acontece hoje. O disco Rasif já tinha a gravadora em Londres, e foi lançado com turnê na Europa, além de vários shows no Brasil. O fluxo foi só aumentando.  

identidade 
Desde Sangue negro, a ideia é fazer discos que tenham a ver com o momento que estou vivendo, eles falam muito mais sobre um território e uma figura representativa, a identidade brasileira. O rompimento [estético] do Sankofa para o Y’Y foi arriscado, mas nunca pensei nessa lógica de mercado. Acho que esse trabalho de piano solo surge da necessidade de querer fazer algo que caminhasse só, e pudesse chegar em outra sonoridade. Acreditei muito nisso. Agora, já estou pensando em uma orquestra, uma banda gringa. Enquanto ouvir o meu coração, posso não ter o público de um milhão de pessoas, mas sempre existirá gente interessada em se conectar com essa música extremamente verdadeira, fresca e que fala sobre a minha experiência no agora. 

brasis 
A identidade de um povo, principalmente nesse momento atual, em que venho passando tanto tempo fora do Brasil, que nos identifica e representa culturalmente é nossa culinária, nossa música, nossa língua. Todas essas coisas traduzem o nosso território. Vamos a um restaurante brasileiro no exterior e a primeira coisa que vai ter é uma feijoada, uma coxinha, uma picanha. Também tem muitos grupos de forró, de samba e de maracatu. Minha busca é se conectar com um país mais profundo, que vem antes de tudo isso.  

florestar  
Amazonas [1973], de Naná Vasconcelos, foi importantíssimo para o processo de construção [de Y’Y]. Essa conexão Pernambuco-Amazônia já tinha rolado com ele. Fazendo esse show, na minha cabeça estou sempre revivendo esse momento. O brasileiro, em geral, está muito distante da Amazônia. Temos uma floresta com a maior biodiversidade do mundo, um povo originário que traz lições milenares através da oralidade, costumes que nem todos os lugares vão ter. Essa sonoridade da floresta tem um sentimento de brasilidade, desse território totalmente diferente. É dizer: “através desse som que você vai escutar agora, vamos imaginar as lendas e os encantamentos amazônicos”. 

(foto: Micael Hocherman)

inspiração 
Às vezes, estou caminhando e vem uma melodia na minha mente, ou me sento ao piano, começo e não consigo terminar, preciso de um tempo. E caminhando de novo, vem a outra parte. Ou estou escutando uma coisa e pronto! Tem uma música, que estou fazendo para o meu próximo disco, que deve sair em 2026, e que comecei a criar no piano há mais ou menos cinco meses. Eu estava querendo fazer a outra parte, mas passei uma semana sem estudar, isso é muito raro. Quando me sentei ao piano, comecei a desenvolvê-la, e se encaixou perfeitamente. O distanciamento, o pensar, o viver outras coisas e, então, voltar, traz uma novidade. Mas, geralmente, é a prática que faz com que eu consiga chegar a lugares inimagináveis. Sempre gostei, também, do desafio de tocar de um jeito que não tocava antes, de me provocar a desenvolver uma melhor técnica aliada à percepção e ao coração aberto.  

retorno  
Muita gente me diz coisas como: “Muito obrigado por me levar à Amazônia”; “Me senti dentro da floresta”; “Queria morar dentro desse show”; “Foi tão bonito poder ver a nossa conexão”. São frases que eu escuto no término do show, porque ele fala sobre a Amazônia, que é a parte A do disco, pensando na estrutura do vinil, mas também sobre o encontro de uma diáspora pulsante mundial. Tem conexão com vários músicos que representam essa sonoridade diaspórica, em diferentes lugares do globo. Por exemplo, na canção Gloriosa, fiz uma homenagem à minha mãe, e chamo as pessoas para solfejar a melodia comigo. A gente cria um ambiente ali, de conexão plena entre plateia e palco. Essa dinâmica toda acaba deixando o público muito envolvido.   

sonoridades  
É um processo longo: as experiências, o estudo, a dedicação e se manter focado. A oportunidade de encontrar outras pessoas também vai enriquecendo, trazendo outros olhares e perspectivas para a música. Ao mesmo tempo em que estou preocupado com temas que falam sobre ancestralidade, algo natural que a vida vai proporcionando, também estou atento ao acaso. Tem momentos em que penso o piano como um instrumento melódico, com esse lirismo que vem da Europa e os hinários da igreja, ou como percussão, por conta do território de onde eu venho: maracatu, coco, baião, ciranda, xaxado, frevo, caboclinho, bumba meu boi. É sobre se permitir esses vários mundos, e trazer isso de uma forma complexa, como o nosso próprio território é. Não queria que soasse apenas como uma experimentação.  

dedicação 
O encontro com [os músicos] Jean Elton e Hugo Medeiros veio de uma amizade que só existiu porque havia em comum a obsessão pelo estudo do instrumento. Celebramos um certo vício de querer tocar e estudar a partir da perspectiva da análise. “Pô, isso é muito difícil. Então, vou voltar para casa, estudar, e quando a gente voltar, vemos o resultado”. Tudo para criar uma liga e intimidade no palco. O Chick Corea (1941-2021), pianista estadunidense, é um grande exemplo disso. Gravei um programa na Itália [Via Dei Matti n°0, comandado por Stefano Bollani e Valentina Cenni, na RAI, rede pública de rádio e TV] e o apresentador me falou que quando acabavam as apresentações que faziam juntos, Chick Corea voltava para o hotel, e Bollani ia tomar uma cerveja, perguntando-se o porquê. Ele respondia: “Amanhã tenho que acordar cedo, estou estudando um pianista do século 20”. Isso é uma coisa que me excita muito: a provocação à criatividade. 

caminho 
Tive muita gente maravilhosa ao meu lado, mas vi várias pessoas que não tiveram força para conseguir. Não sei dizer exatamente se é algo espiritual. Sempre tive uma autoestima muito boa, acho que isso vem da minha mãe. Queria aproveitar tudo ao máximo. Sempre enxerguei as coisas como grandes oportunidades: tocar num teclado melhor, numa banda melhor, estudar. Tantas pessoas poderiam alcançar muitas coisas se tivessem oportunidade. Meu maior aprendizado foi saber manter o pé no chão e a cabeça no céu. Gosto de viajar o mundo, estar em trânsito, e de voltar para casa, Recife. Então, acho que não me perder no caminho é uma das maiores virtudes. E o privilégio hoje é poder me manter para só estudar e viver de música.   

Enquanto ouvir o meu coração, posso não ter o público de um milhão de pessoas, mas sempre existirá gente interessada em se conectar com essa música extremamente verdadeira,
fresca e que fala sobre a minha experiência do agora 

Amaro Freitas

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