Macalé é o nome artístico de Jaime Domingos Cruz, 84 anos. Ele começou a expor e a comercializar seus trabalhos na chamada “feira hippie”, a feira de artes da Praça XV de Novembro, na década de 1970.
Depois disso, realizou atividades educativas, mostras individuais e coletivas em museus, bares, galerias e no Memorial da América Latina, em São Paulo, além de outros eventos culturais em diversas cidades brasileiras, recebendo prêmios.
Bem antes disso, com pouca idade, já produzia arte. E jamais parou de produzir, embora também nunca tenha deixado de exercer paralelamente outras profissões para garantir o sustento da família.
A primeira obra vendida na Praça XV custou Cr$ 127 cruzeiros. Exatamente o valor do salário mensal que recebia como pedreiro contratado pela construtora Alfredo Fritz.
Autodidata, Macalé começou a pintar usando tinta a óleo, a mais difícil de manipular, pela dificuldade em criar linhas precisas com ela.
Foi o ofício exercido na época que o ajudou a criar a técnica que ainda utiliza: “Ganhei cinco tubos de tinta a óleo e um pincel usado, que seriam jogados no lixo. Resolvi diluir a tinta e experimentar a mesma técnica que usava na construção, misturando cal e esmalte”, contou o artista visual, que até pouco tempo atrás pintava à noite para trabalhar de dia como pedreiro, pintor de parede ou decorador: “Nunca pude me dar ao luxo de recusar trabalho”, explicou Macalé, que na infância e adolescência também trabalhou no corte da cana de açúcar, escavou poços e foi entregador de marmitas e de jornal.
Nascido em Orlândia, em 1940, já na primeira infância Macalé conheceu um racismo ainda mais ferrenho que o atual. “Na escola, era muito apelido. Eu tinha uns seis anos e já brigava muito por isso. Eles vinham me atacar, eu reagia. Mas era sempre eu quem ficava de castigo”, contou.
Macalé participou de movimentos de cultura negra, montando peças de teatro, fazendo música e exposições, sempre divulgando a cultura afro-brasileira e a arte contemporânea no Brasil e vendeu obras para outros países.
De temas diversos, a arte de Macalé revela o pensamento e a vivência de um artista talentoso e à frente de seu tempo. “Devastação da natureza” é uma das séries iniciadas na década de 1990. As chamas incandescentes dominando as paisagens não deixam dúvidas de que o artista já estava atento aos incêndios que, hoje, ameaçam de extinção nossos biomas e residências. Crianças brincando nas ruas e baianas à beira-mar também são recorrentes em sua obra, assim como as casas e prédios que fazem parte de uma das séries mais famosas do artista: “O sol nasceu para todos”.
“Eu penso que todo indivíduo deve ter uma casa pra morar. Mas nem todos conseguem. Politicamente, é uma das coisas mais difíceis de conseguir e uma das mais importantes. É o que dá segurança, dignidade, a uma família”, afirmou o artista, casado há quase 60 anos com Maria Benedita do Amaral Cruz e pai de quatro mulheres e de um homem. “Quando eu consegui fazer minha casinha, colocar a primeira telha em cima, foi a coisa mais linda, saí fora do aluguel”, contou Macalé, que construiu a casa própria com suas mãos.
VIDA E OBRA
Abaixo, mais informações sobre o artista, nos trechos da entrevista concedida para o Sesc no dia 25 de outubro de 2024:
Desde quando você começou a produzir arte?
Bom, desde quando eu nasci, né? Eu faço arte, eu sou arteiro. Moleque arteiro sempre fui. Mas, assim… Entrar no mundo das artes foi quando eu comecei a ensinar, brincar com a Márcia (filha). Ela tinha mais ou menos uns quatro aninhos e eu comecei a brincar com ela em papel. E daí tomei gosto pelas cores e fui trabalhando. Aí eu ia pintando, ia colocando na parede os trabalhinhos. Aí veio um amigo meu de Araraquara e disse que eu deveria expor na Praça XV de Novembro. Antigamente, na Praça XV, tinha o movimento hippie, com vários artistas expondo ali. Eu fui.
Isso na década de 1970?
Setenta. Levei uns trabalhinhos que eu tinha, expus na beiradinha da fonte luminosa. O povo passava e olhava. Uns queriam comprar, outros riam, zombavam, né? E assim foi uma semana. Na segunda semana, eu já vendi um trabalho. Aí apareceu o Hélio Miranda, que era um radialista da PRS-7, e me convidou pra dar uma entrevista. Essa entrevista ficou uma semana no ar e foi um sucesso.
O Hélio Miranda gostou do Ibope que deu e conseguiu pra eu expor na Conturp, que era como a Casa da Cultura da época, em frente onde fica o Marp, atualmente. Ali teve venda de obra e deu mais ibope ainda, os jornais todos divulgaram. Essa primeira exposição foi no dia 12 de fevereiro de 1974, há 50 anos.
E por quanto você vendeu seu primeiro trabalho lá na praça?
Foi por Cr$ 127 cruzeiros. Eu não me esqueço do valor porque eu estava trabalhando como pedreiro na Antártica e ganhava exatamente Cr$ 127 por mês.
Você tinha sido contratado pela fábrica da Antártica?
Não, eu trabalhava para uma firma de São Paulo, a Construtora Alfredo Fritz, que prestava serviço lá. Durante o dia eu era pedreiro e à noite eu pintava.
E depois teve um momento em que você parou com tudo e falou: sou artista, vou me dedicar a isso. Ou você sempre teve um trabalho à parte?
Sempre tive um trabalho à parte. Veio a Márcia, primeira filha, depois a Marisa e, quase em seguida, vieram as gêmeas. Logo depois veio o Jaime. Tive que largar inclusive a corrida de bicicleta, que era um hobby que eu não largava por nada. Mas era muito caro, não dava mais. Nessa época, eu trabalhava com cortina, papel de parede, fazia vários trabalhos assim, e decoração de ambiente. Nos trabalhos que eu fazia de decoração, eu oferecia sempre um quadro meu, mostrava e ia fazendo o nome.
E a profissão de pedreiro foi ficando pra trás?
Foi ficando, mas eu nunca perdi o ritmo, nunca perdi a vontade de construir uma casa. E assim nasceu a série “O Sol Nasceu Para Todos”, tema de muitos trabalhos, inclusive o que estou pintando no momento, que estará em exposição no MARP. E foi assim que eu comprei um terreninho e eu mesmo construí a minha própria casa, onde morávamos eu, a Maria (esposa), os cinco filhos, meu pai, minha mãe e algum irmão que sempre estava junto.
O que é a obra “O Sol Nasceu Para Todos”?
Casas. São muitos casarios. É um tema que vem e volta no meu trabalho. Porque, no meu pensamento, todo indivíduo deve ter uma casa para morar, um teto. Eu demorei muitos anos para conseguir a minha. É o tema da minha vida.
Considerando todos os temas, quantas obras você já produziu nesses 50 anos?
Estamos catalogando, mas são mais de 500 trabalhos produzidos.
As trancinhas e as toucas são marca registrada no seu visual. Quando você as adotou?
Sofri um acidente de carro. Bati a cabeça numa coluna e levei vários pontos. Eu ia fazer uma exposição e pensei: “e agora, com esse esparadrapo enorme na cabeça?” Meu cabelo nessa época era curto, usava black power. Então, eu pedi para a minha filha fazer uma touca e comecei a usar para tampar o esparadrapo. Isso foi há uns 30 anos. Hoje devo ter umas dez toucas. E depois do acidente, numa reunião de amigos, uma colega viu o cabelo comprido e começou a enrolar. Eu gostei e adotei.
Que lembrança você tem da sua conexão com o Sesc?
Foram muitas experiências, mas teve um trabalho que foi um dos mais fantásticos da minha vida, o ‘Sítio do Pica Pau Amarelo’. Uma obra gigantesca, que ocupou o andar térreo inteiro do Sesc Ribeirão Preto, em 1994. Eu ambientei o Sesc como se fosse o Sítio do Pica Pau Amarelo, fazendo toda a parte cenográfica. Havia um livro imenso, que era a entrada para o Sítio. Recortei o Monteiro Lobato em tamanho natural, aliás todas as personagens. E você pegava uma ponte e entrava no Reino das Águas Claras. Depois da ponte, entrava no Sítio, onde tinha peixe vivo, árvores frutíferas, bananeira, jabuticabeira e muita folha de cheiro de eucalipto para as pessoas andarem em cima. A família ajudou a montar. Cláudia e Claudete, Márcia e Maria. Fiquei no Sesc uns 30 dias ou mais, sem vir para casa. Dormia e tomava banho lá. Usei 700 quilos de argila para fazer as margens do rio. Minha cabeça girou e eu fui fazendo, fui criando, e o Sesc me apoiando. E quando eu vi, o trabalho era imenso, mas estava pronto.
E no Museu do Café?
Eu fazia oficina com as crianças aos domingos. Muitos artistas, hoje jovens, foram meus alunos. Na época em que criamos o Café com Chorinho. Enquanto os adultos curtiam o chorinho com café da manhã, eu fazia arte com as crianças. Trabalhar no Museu do Café foi muito importante. Eu tenho uma conexão forte com a história do café de Ribeirão Preto, pois trabalhei na lavoura também, quando eu tinha uns 16 anos. Era muito dificil, mas eu enfrentava qualquer tipo de trabalho.
Qual a maior dificuldade que você enfrenta como artista?
O artista brasileiro, no geral, não tem ninguém com quem possa contar. Eu precisava bater nas portas, implorar para fazer uma exposição. Hoje, sinto que várias portas se abriram, principalmente com essa equipe imensa organizando o “Ano Macalé”. O que eu acho importante é deixar um trabalho bem feito para amanhã, as crianças na escola e também os adultos, saberem quem foi o Macalé.
No Ano Macalé, o Sesc Ribeirão realiza as oficinas “Retratos”, que acontecem de 7 a 21 de novembro. Uma oportunidade para o público conhecer e retratar a vida e a obra de Macalé, artista de imensa importância para a cidade, com uma trajetória resiliente e inspiradora, que tem muito a dizer por meio de seus pinceis. As oficinas serão ministradas por jovens artistas e, no encerramento da programação, o próprio Macalé estará presente para um bate-papo e para prestigiar uma exposição dos trabalhos realizados pelos participantes. Cada oficina vai abordar uma técnica diferente – pintura e fotografia. Para mais informações acesso o portal.
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