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29/05/2024

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Leia a edição de JUNHO/24 da Revista E na íntegra

POR CRISTHIANO AGUIAR

ILUSTRAÇÕES DE AMANDA MIRANDA

Quando Márcia, ensanguentada, sair da capela, ela terá dúvidas se de fato existiu o fantasma da Sinhá Torta.

Mas antes é preciso retroceder vários passos, é preciso entender, em primeiro lugar, a escada em espiral do seu coração.

– Nada mais precioso do que ter paz de espírito…

A frase ela soltou enquanto o carro sacolejava pela estrada, horas antes de chegar ao engenho arruinado.

Foi dita num tom de distração – a porta esquecida entreaberta e pela qual o gato da casa foge.

Márcia, porém, não gosta que nada escape de suas mãos. Seu mundo tem muito das muralhas de um castelo, com as ondas do mar espancando as pedras de dentro para fora. Pouco antes da frase, ela cochilava no banco do passageiro, enquanto seu boy dirigia com atenção máxima por causa da chuva. Tinha sonhado com árvores cujas folhas eram fumaça e sangue: um desmantelo dos flamboyants na tarde, como já cantava Alceu Valença.

– Tu acha que a gente consegue ver… a coisa? – Perguntou o ficante, enquanto fazia mais uma ultrapassagem.

A pergunta lhe parecia completamente sem propósito. O máximo de sobrenatural para Márcia consistia em admirar como a paisagem das plantações de cana de açúcar, dos dois lados da estrada, se dissolvia nos vidros ensopados do carro. O cheiro da cana e da terra molhada enchia o veículo. Para Márcia, essa mística bastava.

O ficante se chamava Honório, só que morria de vergonha do próprio nome. Por isso, assinava como H’n. Ele era redator de uma agência em ascensão no Recife e se via como um artista. Grafitava, fazia origamis, escrevia poemas “de subversidade” (sic). Atualmente, H’n buscava respostas nas verdades simples do campo. Viajava nos finais de semana de folga para plantar ou colher vegetais em sítios ou ecovilas dos amigos. Márcia não pegava o que ela classificava como “caras meio viajados”. Mas, diante das circunstâncias do recente fim do seu namoro, H’n era o que tinha pra hoje.

O fim foi triste, como deve ser. Terminado o namoro, ela ficou com o quinhão da culpa; o ex, com o quinhão da mágoa. Talvez eu esteja quebrada?, ela se perguntava. Porque de novo ela tinha entrado numa relação com um plano de fuga. Na noite do término, na sala do apartamento dela, no bairro do Pina, ele reclamou de frieza e rejeições. Ela não entendia: ainda continuavam transando e fazendo coisas ok juntos! A iniciativa do término foi dele. Após refletir um pouco, Márcia aceitou que deveriam acabar. Ela não derramou lágrimas – quando ele partiu do apartamento dela, Márcia sentiu, em meio ao peso do rompimento, o velho sentimento de libertação.

Como também Alceu cantaria, Márcia, na primeira manhã após o término, acordou mais cansada do que sozinha. Trocaram mensagens respeitosas, desculpas pelas palavras afiadas e, nos dias seguintes, os objetos pessoais de cada um foram deixados nos respectivos apartamentos. Márcia pensou como tudo é literatura. A cada minuto, casais trocam juras de amor, ou os objetos do fim. A cada minuto, cada casal enamorado é o mesmo casal, cujos prazeres, tormentos e desfechos formam um círculo desde os primórdios dos tempos.

Era insuportável ficar as noites em casa. Nem ousava retomar, por exemplo, o rascunho do seu segundo romance. Precisava se esquecer nos corpos dos homens. Para isso quase qualquer um servia. E, sim, o sexo pode curar, porque ele é uma das necessidades puras. As noites com H’n a distraíam? Com certeza, ela responderia. Ao mesmo tempo, a cada encontro, ela o repelia mais e mais e mais.

– Tamo chegando. A galera já está lá. Bom que tá estiando. Vai ser ar-re-pi-an-te.

Márcia suspirou – vamos lá.

*

O engenho em ruínas, há uns 40 minutos do Recife, tinha um nome oficial em homenagem a algum santo ou santa, mas o seu nome real era este: Engenho Três Mortes. O tempo esquecera quais mortes foram aquelas. Mas não esquecera da Sinhá Torta, uma das assombrações mais famosas do estado, suposta habitante do engenho. Havia curtas, webcomics, peças de teatro e romances sobre a misteriosa aparição. Há tempos Márcia desejava visitar o lugar para fazer pesquisa para seu novo romance de terror. Logo, se tivesse que aguentar H’n mais um pouco naquele dia, paciência. Suportava os sábados menos do que a companhia dele.

A agência de H’n planejava usar o engenho mal- -assombrado para uma campanha de uma marca de sabonetes. Márcia não tinha ideia como é que um sabonete e uma assombração poderiam combinar, mas aí é que entra a magia da publicidade, não é mesmo? Seu ficante claramente estava feliz que ela o acompanhava – isso a lisonjeou. Ao chegarem no lugar, a apresentou aos colegas de agência que lá estavam com pose de namorado – e aí foi menos interessante. Márcia sentiu desconforto ao descobrir ser a única mulher do grupo. Por fim, chamou sua atenção o incômodo que todos os rapazes da agência expressavam por estarem ali.

– Tu não sente uns calafrio?

Ela não sentia, porém mentiu e disse que sim.

H’n a cercava demais, sem dúvidas. Cometeu a burrada de dizer que estava menstruada: o cara começou a tratá-la como uma boneca de porcelana. Márcia amava carinho, atenção, gentilezas. Porém seu parceiro sugava todo o ar à sua volta e, além disso, impaciência era sua atual condição de sobrevivência.

A tarde caía rápido e não chovia mais.

Feita a social com todo mundo, a escritora garantiu logo um espaço para si, usando como desculpas o fato de que não queria atrapalhar o trabalho de pesquisa deles. Sozinha, vagou pelas ruínas, tomando um caminho sempre oposto ao grupo dos homens, que falavam alto, gritavam coisas, riam e gesticulavam.

A terra estava impregnada dos sons da mata e de umidade – goteiras e lama se espalhavam por todo canto. Insetos e morcegos saíam de suas tocas e tomavam conta da noite. Inundavam os ares com seus sons característicos e com movimentos que lembravam uma natureza embriagada. O que restara do incêndio que há décadas destruiu o engenho era basicamente as estruturas arruinadas da casa-grande, bem como da capela colada à casa. Todo o resto ruíra, ou tinha sido roubado, ou engolido.

Quando deu por si, se encontrava dentro da capela.

Era quase-noite. Tudo pingava. Fungos recobriam tocos de madeira apodrecida; musgo e ervas daninhas nasciam de cada reentrância das pedras da edificação. Não havia espaço para o vazio, ali – tudo fervilhava de uma vida parasitária e vigorosa; cheia de microrganismos, cheia de insetos, de aranhas e de fezes de animais. Márcia passou um bom tempo perdida na observação não da capela – a capela não mais existia – e sim daquelas vidas ocultas dentro da ruína. Apagada, a sua própria muralha. Bem como todos os nomes.

Mergulhada, veio a vertigem.

Como fumaça, fumaça nascida de catástrofes, a entidade tomou uma forma de mulher. A entidade a observava de dentro do que era uma mancha na capela – antecipação da noite. O fantasma – forma móvel, feminina – a encarava com olhos em brasa, véus densos entrelaçados. O susto da aparição foi como um atropelamento. Márcia achou que desmaiaria. Era real o que presenciava, o que sentia? Porque suas pernas diziam CORRA, contudo outra emoção exigia que permanecesse.

Permaneceu. Atraída, seus passos se aprofundaram na noite da capela. Quem assombrava e quem tinha medo? Porque a Sinhá Torta, se uma Sinhá Torta fosse, se retraía e se agitava. Ao olhar pra baixo, Márcia viu escorpiões correndo pelo chão. Dos seus olhos e ouvidos escorreram filetes de sangue. Sangue, também, jorrava pelas suas pernas.

Seguiu.

Ao esticar a mão, ao tocar a Sinhá Torta, dois fios se ataram. Camadas de emoções a invadiram e contaram a história de uma mulher: abandono, frio, esperanças, amor, clausura, fuga. Paixão e incompletude.

Salvação e queda repousavam nos seus lábios. Minha nossa, pensou. Quem é você, que sangra e ama? Abandonada nas encruzilhadas, largada pelas ruínas?

Márcia sussurrou:

– Madalena? Teu nome era… Madalena?

Ao ouvir a pergunta, a presença finalmente partiu.

Do lado de fora da capela, ela se via em estado de risco pela primeira vez em muito tempo. Se sentia tão pequena, um grão naquele mundo largo, onde cabelos de sangue e fogo se agitavam… Márcia continuava a viver a dor. Mas e o fio reatado? Olhou para a capela – tinha vivido um pesadelo acordado? Havia a evidência do sangue, viscoso e com cheiro forte, por todo seu corpo. Márcia escorria pelo rosto, Márcia escorria pelas pernas.

Noite estrelada. Ouviu ao longe vozes masculinas, preocupadas, que a chamavam. Sentiu gosto metálico na boca – sentiu o próprio gosto. Sim, é possível, pensou. Naquela noite, era Márcia que também escapava.

  • Cristhiano Aguiar é escritor, crítico literário e professor paraibano. É autor dos livros Narrativas e espaços ficcionais: uma introdução (Mackenzie, 2017), Na outra margem, o Leviatã (Lote 42, 2018) e Gótico nordestino (Alfaguara, 2022), vencedor do Prêmio Clarice Lispector de melhor livro de contos.
  • Amanda Miranda é artista gráfica, diretora de arte e autora de histórias em quadrinhos. Suas produções abordam temas como feminilidade, sexualidade, violência e caos. Já conquistou diversos prêmios, como o CCXP Awards, HQMix e o Prêmio GRAMPO.

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