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30/06/2017

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Culturas híbridas, um grande pleonasmo?

Em um mundo em que nacionalismos são revividos e se reforçam identidades e fronteiras – físicas e simbólicas – como resposta à insegurança ontológica advinda do cosmopolitismo e da globalização, o tema do hibridismo cultural ganha relevo. Ainda que se reconheçam as desigualdades de poder econômico, social e político e, por consequência, a disparidade das capacidades de grupos influenciarem outros culturalmente, os intercâmbios culturais, alguns vistos como bastante improváveis, ocorrem, com frequência, dando ensejo a manifestações culturais que enriquecem nosso repertório.

Muito do que se convencionou chamar de cultura erudita, cultura popular e cultura de massa, e a própria distinção entre esses termos, é ideológico. As instâncias legitimadoras, como a crítica, a imprensa, a academia e os próprios artistas, convencionam, segundo seus interesses, os padrões de bom gosto e de respeitabilidade no campo cultural. Desta forma, e durante muito tempo, a dita cultura erudita, produzida e veiculada em determinados espaços institucionalizados como academias de arte, museus e teatros, foi vista como a “verdadeira” cultura, de bom gosto, hierarquicamente superior a uma cultura popular vista como vulgar, rudimentar e simplória, quando não criminalizada, em uma visão elitista e muitas vezes eurocêntrica.

Em determinados momentos políticos, porém, seja na formação e independênciade Estados nacionais, seja em revoluções, seja em ditaduras, a cultura popular foi valorizada pelo Estado para reforçar o nacionalismo, legitimar regimes e abafar conflitos sociais. Ao mesmo tempo, a cultura popular é também invocada como resistência a um suposto imperialismo cultural estrangeiro visto como pernicioso.

Se Noel Rosa queixou-se de forma irônica da contaminação que o cinema falado teria trazido para a língua portuguesa e para o samba, parte da esquerda brasileira dos anos 60 do século passado, alinhada à canção de protesto e à ideia de uma música popular brasileira, chegou a marchar contra a guitarra elétrica, vista como imposição da cultura de massa. Nessa lógica, enquanto a cultura popular seria autêntica, pura e refletiria os valores do povo brasileiro, a cultura de massa, em uma acepção fortemente influenciada pela Escola de Frankfurt, seria homogeneizadora, descartável, de baixa qualidade, movida apenas ou principalmente pelo intuito de lucro da indústria cultural.

A dinâmica social mostra, todavia, que a interação entre as ditas culturas erudita, popular e de massa transcende divisões estanques.

Se a cultura popular se apropria de elementos da cultura erudita, ainda que na forma de paródia, a cultura de massa influencia a cultura erudita e a cultura popular e, ao mesmo tempo, se vale da primeira para se legitimar e se nutre da segunda para ganhar penetração social. Estudos culturais defendem que o receptor de uma mensagem não é um objeto passivo, manipulado
pelas elites culturais ou pela indústria cultural. Da mesma forma como uma mesma manifestação cultural será ressignificada a partir
dos valores de cada grupo que entra em contato com ela, a cultura estrangeira é deglutida, hibridizada com elementos locais e vertida, gerando algo novo, em um processo de antropofagia cultural.

Sendo assim, o termo cultura híbrida aparenta ser no fundo um grande pleonasmo, uma vez que uma cultura pura, autêntica, corresponde mais a um discurso ideológico do que ao que vemos na realidade. Ademais, uma cultura pura seria uma cultura estática, morta, pois é da natureza da cultura a permanente transformação. Entusiasta da diversidade cultural, o Sesc São Paulo procura a quebra da dicotomia entre cultura erudita e popular, reconhecendo o mesmo valor em ambas. É assim que cabe tanto uma Bienal de Arte Naïf quanto um Festival de Música de Câmara.

Como instituição voltada à educação não formal, o Sesc São Paulo exerce, ainda, o papel de mediador cultural hibridizador, colocando em contato públicos e artistas de origens, trajetórias, identidades e gostos diferentes. Ao longo do ano de 2015, sob a coordenação do professor da Escola de Comunicação de Artes da USP Walter de Sousa Junior, o Centro de Pesquisa e Formação organizou um grupo de estudos que tinha como objeto as diversas faces do hibridismo cultural.

Os artigos que integram este dossiê são de autoria de alguns dos participantes deste grupo e resultado dos debates travados em seu âmbito. O coordenador e organizador, Walter de Sousa Junior, problematiza os conceitos de cultura erudita, cultura popular e cultura de massa e suas inter-relações em quatro matrizes culturais brasileiras: música, dramaturgia, narrativas populares e humor.

Arlete Fonseca de Andrade, partindo do pensamento filosófico da antiguidade e dos estudos culturais contemporâneos, aborda concepções históricas e culturais do riso, cultura popular e a contribuição de periódicos brasileiros publicados entre os anos de 1910 e 1920, com destaque para O Sacy, fundado por Cornélio Pires, e O Pirralho, fundado por Oswald de Andrade. Milton Fábio Baungartner analisa situações em que a música brasileira da Época de Ouro navegou no sinuoso amálgama da então chamada música “séria” e da nascente música popular urbana e, por fim, como a indústria cultural dela se apropriou, estereotipando-a e divulgando- a ao público consumidor, principalmente por meio do rádio.

Danilo Cymrot analisa os fatores que contribuíram para a incorporação da canção rancheira mexicana na música caipira brasileira, a partir de fins da década de 50 do século passado, e a noção que cantores sertanejos da década seguinte formulam atualmente sobre o que seria sertanejo de raiz.

Por fim, João Paulo Guadanucci fecha o dossiê com a produção artística Certos mal-entendidos, que mescla textos e ilustrações, discutindo a cidade, memória, patrimônio cultural, espaços de cultura, crítica, cultura erudita, popular e de massa.

Na seção Gestão Cultural, publicamos quatro artigos de ex-alunos do Curso Sesc de Gestão Cultural, que resultaram dos trabalhos de conclusão do curso. A edição traz também três artigos inéditos sobre temas relacionados ao campo da educação e da cultura.

O professor Antônio Pedro Tota, em seu artigo América, Américas: modernização e paradigmas, questiona até que ponto a ideia de modernização, bandeira levantada pelos norte-americanos na primeira metade do século XX, podia ser entendia como sinônimo de americanização.

O professor Jaime Ginzburg articula em seu artigo observações sobre filmes que apresentam cenas de violência e acontecimentos
políticos recentes, desenvolvendo uma reflexão sobre violência, cultura e política.

A contribuição de Mariana Aldrigui busca consolidar as diferentes abordagens sobre o turismo urbano, apresentando a evolução do conceito e as características que o distingue do turismo convencional.

Nesta edição, Francisco Humberto Cunha resenha o livro de Isaura Botelho, Dimensões da Cultura: políticas culturais e seus desafios, publicado pelas Edições Sesc.

O artista plástico, compositor e escritor Nuno Ramos é o entrevistado. Por fim, no campo da ficção, Mariana Carrara nos
leva ao intrigante ambiente de um museu de História Natural.

DANILO SANTOS DE MIRANDA
Diretor Regional do Sesc São Paulo

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