Compondo as efemérides de 2022, o bicentenário da independência volta à pauta na Revista do Centro de Pesquisa e Formação com reflexões críticas sobre as proposições elaboradas no passado e sobre as construções de projetos de país, vinculando-as às inquietações de nosso presente e às novas propostas de Brasil, ou Brasis. O dossiê “A Outra Independência” tem origem em seminário homônimo realizado pelo Sesc São Paulo em seu Centro de Pesquisa e Formação (CPF), com curadoria da historiadora Heloísa Starling (UFMG) e integrante de Diversos 22, — conjunto de ações em diferentes linguagens e formatos, como apresentações, shows, exposições, encontros e cursos, a fim de incentivar análises em torno dos projetos, memórias e conexões relativas aos marcos dos 200 anos da soberania brasileira e ao centenário da Semana de Arte Moderna.
O artigo do diplomata e doutor em História Hélio Franchini Neto abre a publicação e apresenta o cenário político social dos anos 1820-1825, quando se delineou o percurso emancipatório da então colônia em relação a Portugal. “Redescobrindo a Independência do Brasil: apontamentos sobre um processo complexo” desfaz o ato cênico às margens do Ipiranga e apresenta diversos aspectos que compuseram esta experiência histórica, desde a chegada da Família Real, a Revolução do Porto, o grito de Dom Pedro I, os conflitos regionais que irrompiam pelo território brasileiro até o seu reconhecimento. Assim, procura destacar um aspecto pouco explorado pela historiografia do período, que diz respeito à fragilidade nstitucional inicial do Estado brasileiro, e abrir novas reflexões críticas para os estudos nesse tema.
A pesquisadora Isabel Lustosa apresenta o artigo “Quando deixamos de ser portugueses: a ruptura entre Portugal e Brasil nos impressos do tempo”, que analisa as disputas de ideias travadas na produção gráfica a partir da liberação das tipografias em 1820, e que concebeu a cisão entre portugueses nascidos em Portugal e aqueles do Brasil e a dissolução da ideia de uma só nação. Ao trazer diversos exemplos dessa disputa ideológica — da discussão sobre o lugar onde D. João VI deveria fixar residência até o uso de palavras de origem indígena, em vez daquelas em língua lusitana — a autora nos apresenta os vestígios escritos do processo de distinção, que se apresentava com a Independência, e que distinguia os brasileiros de seus colonizadores europeus.
O terceiro artigo traça uma arqueologia da utopia brasileira. Em “Cidade do Paraíso no Agreste Pernambucano: a esperança sertaneja em tempos de revolução (1817-1820)”, Danilo Araújo Marques recorda a imaginação de futuros possíveis presente na primeira experiência coletiva de uma utopia messiânica na história do Brasil e delineia o perfil da chamada “tradição da esperança” experimentada no país.
A pesquisadora Inaê Lopes dos Santos revisita a libertação brasileira em “A nação embranquecida e seu passado escravista: outras leituras do Brasil” para defender a tese de que a manutenção da instituição escravista no Brasil pós-independência e os acordos das elites políticas, que racializavam a sociedade no texto constitucional, ajudaram a desenhar os meios pelos quais o racismo continuaria atuante no país.
Em “Rebeldia, Negociação Desencanto: Negros na Independência na Bahia” o historiador João José Reis revisita um artigo de própria autoria, publicado na década de 1980, que discute o que se cunhou como partido negro” no processo de independência da Bahia. Sua revisão traz novos dados, documentos, estudos e apresenta os resultados parciais de uma pesquisa ainda inédita sobre o tema.
A disputa de narrativas sobre a emancipação do Brasil fez emergir a trajetória de mulheres que participaram do processo em diversas cidades brasileiras no início do século XIX. Entre elas estão Bárbara de Alencar, Maria Felipa de Oliveira e a Imperatriz Leopoldina, retratadas aqui por Antonia Pellegrino, Cidinha da Silva e Virginia Starling, respectivamente. Em “Bárbara de Alencar e as raízes brasileiras da violência política de gênero”, Pellegrino estabelece uma relação entre a atuação pública de Bárbara (revolucionária do Crato — região do Cariri Cearense) e a violência política de gênero, analisando as raízes desse modus operandi, tão atual, mas que tem origem histórica em nosso país.
Cidinha da Silva analisa, no texto “200 anos de Independência e suas heroínas: Maria Felipa de Oliveira, uma mulher negra na luta pela independência na Bahia”, a trajetória desta personagem que viveu no Recôncavo baiano. Cidinha mostra como Maria Felipa, através de sua atuação, legou às mulheres negras das gerações posteriores a percepção de que os projetos de autonomia são possíveis e ofereceu um imaginário da liberdade, fornecendo elementos para forjar a própria noção de ancestralidade que inspira movimentos sociais atualmente.
A denominação “imperatriz deselegante”, historicamente utilizada para referir-se à Leopoldina, serve de ponto de partida para que Virginia Starling examine, em “As roupas não tão novas da imperatriz: diálogos entre moda e política na trajetória de dona Leopoldina”, as nuances na construção das narrativas em torno da personagem, revelando o pensamento político da Imperatriz, que merece reconhecimento.
O modo como a canção popular lidou, narrativamente, com o advento da nascente soberania nacional a partir do conceito de comunidades imaginadas é o tema do artigo “Decantando a independência: canção popular e história do Brasil”, no qual Bruno Viveiros utiliza dois eixos: o primeiro abrange as obras que representam a versão tradicional do marco histórico, baseadas no papel centralizador do Imperador e no projeto de unificação política do Brasil; no segundo, aborda as obras que revelam outra visão dos fatos, valorizando, através do imaginário cultural brasileiro, a participação popular em eventos, fatos e ações capazes de alargar a compreensão das experiências sociais envolvidas na construção da brasilidade.
A edição prossegue com três artigos acerca de temas variados. Partido da premissa de que humor é coisa séria, a professora Ana Cristina Carmelino trata o fenômeno como objeto de investigação científica e apresenta as principais correntes teóricas e os gêneros humorísticos.
Quanto à influência das telenovelas no comportamento de consumo turístico de seus públicos, a pesquisadora de doutorado Larissa Fernandes Dutra procura explicar como as produções direcionam para determinados destinos turísticos. A professora Ana Paula Perrota arremata a seção com uma discussão acerca dos direitos dos animais, da luta antiespecista e das dimensões éticas da convivialidade multiespécie.
Nesta edição, duas contribuições dos egressos do Curso Sesc de Gestão Cultural estão disponíveis: “As dinâmicas do trabalho em rede em corredores culturais: estudo de caso da Paulista Cultural”, escrito por Beatriz Matuck, Camila Moura Gonzaga dos Santos e Carla Regina de Oliveira; e “Práticas instituintes entre a gestão cultural e a saúde mental”, de autoria de Tátila Colin Cavignato.
Seguindo o debate sobre o tema do dossiê, a professora Heloísa Starling é a entrevistada desta edição. O professor Tiaraju Pablo D’Andrea resenha o livro “O funk na batida: baile, rua e parlamento”, do pesquisador Danilo Cymrot, recém-publicado pelas Edições Sesc.
Preparados por ocasião do seminário, os poemas originais do grupo “Slam das Minas” foram feitos por meio de pesquisas sobre panfletos e jornais que circulavam há 200 anos, sobretudo nas regiões das revoltas contestatórias. O fechamento fica por conta do fotógrafo Simon Plestenjak, que produziu um ensaio composto por duas séries e pela imbricação e justaposição de fotos da Amazônia.
Com esta publicação, o Sesc procura apresentar outras abordagens sobre a independência do Brasil e estimular o olhar crítico sobre esse processo histórico. Os textos aqui presentes trazem-nos de volta ao surgimento do Estado-nação brasileiro e à conjuntura em que ocorreu a emancipação política, além das múltiplas direções e dos projetos que acompanharam esse momento, o qual ainda hoje se mostra inacabado.
Boa leitura!
Danilo Santos de Miranda
Diretor do Sesc São Paulo
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