Entre letras , imagens e sons: as mulheres e a produção da cultura
Carla Cristina Garcia
“Toda pessoa tem o direito de tomar parte livremente na vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar no progresso científico e nos
benefícios que deste resultam. Todos têm direito à proteção dos interesses morais e materiais ligados a qualquer produção científica, literária ou artística
da sua autoria”.
Artigo 27 da Declaração Universal dos Direitos Humanos
Se examinarmos as listas de clássicos da literatura, das coleções de
pinturas e escultura dos museus e das partituras que as grandes orquestras
interpretam, a escassez de obras de autoria feminina poderia nos
levar a conclusão de que, com efeito, a cultura e a arte são feitas por homens.
Tal escassez tem múltiplas causas que poderiam ser resumidas ao
fato de que, ao longo da história, as mulheres se depararam com diversos
tipos de obstáculos para se tornaram artistas: para criarem, difundirem
suas obras e para deixarem sua marca na história das artes. Como em
outros âmbitos da vida social, a presença das mulheres no campo da produção
da cultura revela a mesma condição de invisibilidade que em outros
campos da vida pública.
Essa situação apresenta consequências específicas que merecem um
exame adequado. Começando pelos números. Ainda hoje, apesar dos avanços
obtidos com a crítica feminista e das várias manifestações levadas a
cabo por coletivos de mulheres artistas feministas1, o número de artistas
mulheres nas coleções e nos acervos de museus de arte continua sendo
tremendamente inferior ao de artistas homens. Uma recente pesquisa
realizada pela ArtNews demonstrou que menos de 30% das exposições
individuais nos principais museus dos Estados Unidos são de obras de
mulheres artistas e apenas três em cada dez artistas representados em
galerias comerciais dos Estados Unidos são mulheres.2 Olhando os números
latino-americanos, constata-se que a situação é a mesma: apenas
20% do acervo do MASP em São Paulo e do MALBA em Buenos Aires são
compostos de obras de mulheres artistas, para ficarmos em apenas dois
exemplos.3
Entre letras, imagens e sons: as mulheres e a produção da cultura
A questão aqui não são apenas os números, mas a falta de referências
femininas nas artes em todas as manifestações que eles produzem. Para
Victoria Sau, as marcas da cultura dadas apenas por categorias exclusivamente
masculinas fazem com que pareça que a cada nova geração as mulheres
estivessem despertando de um sonho e percebessem que, enquanto
dormiam, os homens tivessem feito tudo (SAU, 1990).
Desse modo, pode-se afirmar que o androcentrismo não é exclusivamente
quantitativo. Não se trata apenas de invisibilizar as mulheres e
suas contribuições à cultura, de reduzi-las ao esquecimento ou ao silêncio.
O verdadeiro problema é que se delineia desse modo a dimensão simbólica
da desigualdade que acaba por construir uma narrativa em que tudo
aquilo que é considerado relevante, universal e de destaque são as obras
masculinas.
Não há igualdade sem condições materiais que a torne possível e sem
uma narrativa simbólica que a legitime. Para Fraser (1997), se as mulheres
enfrentam três dimensões principais da desigualdade – redistribuição,
representação e reconhecimento –, a terceira é, talvez, a mais naturalizada
e estrutural, a mais invisível e pertinaz. Para essa autora, trata-se
de um tipo de injustiça que se traduz em ter que viver e criar sob os padrões
culturais que não são próprios e que podem chegar a ser hostis nas
representações interpretativas: aparecer de maneira estereotipada ou ser
diretamente caluniada ou menosprezada. Características essa todas presentes
na cultura dominante no contexto ocidental durante séculos e que
conformaram o imaginário coletivo. Uma cultura protagonizada quase exclusivamente
por homens, com altas doses de misoginia e representativa
de um universo de valores e crenças androcêntricas.
Para mudar esse estado de coisas, é preciso tornar visível o trabalho
feminino na cultura, torná-lo presente, construir memórias e genealogias
que ampliem os conteúdos culturais, abram novos horizontes, novas palavras
e outros significados para que as artes reflitam as contribuições,
propostas e desejos não só dos homens, mas também das mulheres. Para
Telles (2016), o desenvolvimento das reflexões feministas das últimas décadas
tornou possível novas aproximações teóricas e metodológicas sobre
a produção artística.
Estas reflexões, no entanto, não dizem respeito somente às mulheres, pois
abrangem noções centrais nos campos de estudo assim como questões de
desigualdades na sociedade e a construção das subjetividades. […]. Constatou-
se então que a luta para pertencer aos cânones oficiais das artes não
era desejável e que a questão para os marginalizados não é a substituição
de quem o que está nos cânones, no caso a autoridade do homem branco,
mas a mudança de paradigmas. (TELLES, 2016)
Entre letras, imagens e sons: as mulheres e a produção da cultura
É preciso, pois, desenvolver projetos que possam denunciar a profunda
desigualdade que reina no mundo da produção cultural. Sabemos que
uma cultura – científica e artística – criada principalmente por homens
produz conteúdos que reforçam o protagonismo masculino ao apresentar
o homem como sujeito e sua experiência como universal e a mulher como
objeto, musa ou ausente da produção artística e cujas experiências geram
menos interesse.
Contra esse estado de coisas é necessário ampliar as propostas de
atuações nas políticas de igualdade, bem como levar a cabo – por meio de
investigações e pesquisas – a recuperação da história das mulheres e tecer,
assim, uma genealogia que nos devolva a memória e as contribuições
femininas que nos precederam, permitindo-nos compreender que somos
devedoras de seu legado e que fazemos parte dessa longuíssima saga de
mulheres artistas que vai muito além de nós mesmas para desse modo dotar
as artes de referentes femininos.
Muitas são as iniciativas destinadas a reparar o deficit de reconhecimento
da produção das mulheres nas artes e na cultura e aquelas estão
sendo feitas por vários grupos de mulheres artistas de toda natureza:
apresentações escritas não sexistas, exposições de artistas locais, concursos,
programações culturais com perspectiva de gênero, artigos e publicações
específicas, como este dossiê que ora apresentamos com o intuito de
contribuir para esse rico e intenso debate.
1 Um exemplo desse tipo de iniciativa é o protagonizado pelas Guerrillas Girls, um coletivo de artistas feministas criado em Nova York em 1985 com a intenção de denunciar a exclusão das mulheres do mundo das artes e, ao mesmo tempo, promover sua presença.
2 Disponível em: http://www.artnews.com/2015/05/26/taking-the-measure-of-sexism-facts-figures-and-fixes/>. Acesso em: 5 ago. 2016.
3 Disponível em: http://www.select.art.br/edicao/select-no-28/. Acesso em: 15 ago. 2016.
REFERÊNCIAS
FRASER, Nancy. Iustitia Interrupta: reflexiones críticas desde la posición post-socialista.
Bogotá Siglo del Hombre Editores, 1997.
SAU, Victoria. Elementos para una educación no sexista. Feminario de Alicante. Disponivel
em: . Acesso em: 3 mar. 2016.
TELLES, Norma. Apresentação. Cartografias e rupturas: mulheres na arte. In: Labrys,
Estudos Feministas. Disponível em: . Acesso em: 31 ago. 2016.
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