Onde há destroços, vemos o brilho da purpurina
Claudia Wonder
Onde restou o homem sobreviveu semente, sonho a engravidar o tempo.
Mia Couto
Poetas narram histórias e testemunham o que muitas vezes não encontrou
caminho pelos discursos oficiais, acadêmicos ou institucionais. Se
Mia Couto evoca esperança num período pós-guerras em Moçambique, a
artista Claudia Wonder aponta para uma resistência ativa e purpurinada
frente às brutalidades cotidianas que vivem homens e mulheres transexuais
e travestis, estas envolvendo estigmatização, discriminação, exclusão,
violência e até morte.
Michael Pollak, ao apontar para os ditos e não ditos no campo da
memória e da coletividade, lança olhar para as disputas neste campo,
sendo ponto primordial para compreender as implicações do presente na
narrativa do passado. Se toda memória pressupõe um esquecimento, decerto
que é necessário nos questionarmos por onde emudecem nossas histórias,
ultrapassando perspectivas coloniais unilaterais e prezando pela
diversidade de vozes subalternizadas ou mesmo apagadas. Como reflete
o historiador austríaco, são “memórias subterrâneas que prosseguem seu
trabalho de subversão no silêncio”:
O problema que se coloca a longo prazo para as memórias clandestinas
e inaudíveis é o de sua transmissão intacta até o dia em que elas possam
aproveitar uma ocasião para invadir o espaço público e passar do “não-dito”
à contestação e à reivindicação (…). (POLLAK, 1984)
Diante de um cenário em que noções como a de pós-verdade vem ganhando
espaço e revelando indiferença frente a fatos históricos, em contraponto
à valorização de crenças pessoais, coloca-se como ponto fundamental
repensar o papel e a importância da memória no espectro mais amplo da
vida social, uma vez que o deslocamento dos seus fundamentos pode apagar
histórias, silenciar sujeitos e produzir injustiças.
Deste modo, torna-se imprescindível refletir sobre o significado político
e histórico da memória como instrumento para a compreensão das
múltiplas narrativas em disputa e das relações de poder projetadas sobre
aquelas, que podem cindir ou difundir horizontes.
Assim, é também
indispensável a consolidação de reflexões que tornem visível o que fora
silenciado, reprimido ou oprimido, e que estimulem o reconhecimento de
referências plurais e inclusivas capazes de contribuir com as propostas
conceituais de museus, assim como com a dinâmica de patrimônios e intervenções
culturais nas cidades, a fim de ampliar o nosso olhar para o
reconhecimento e a valorização da diversidade sociocultural existente.
A partir de um conjunto diverso de reflexões, o tema do dossiê deste
número é Memória, Cidade e Museu: entre silêncios e mobilizações,
no qual se alumbra a luta por existir na geografia das cidades. Onde
estão as narrativas das minorias na geografia das cidades?
O semiólogo argentino Walter Mignolo – um dos protagonistas do pensamento
decolonial – nos provoca sobre a necessidade de “re-surgir, de
re-emergir, do re-existir de culturas e memórias desprestigiadas”4 na
América Latina. Utilizando uma metáfora do sociólogo peruano, Anibal
Quijano: se o “espelho” 5 pelo qual nos vemos é “distorcido”, como é possível
construirmos imagens mais próprias, sem antes reconhecer a diversidade
de narrativas presentes pelo espaço-tempo que chamamos Brasil?
Os artigos do dossiê se debruçam tanto sobre contextos em espaços
museais, como sobre cidade como espaço de representação e disputas simbólicas
no campo da memória.
Em “Itinerários para memórias da arte transformista paulistana”, Remom
Bortolozzi aponta, para além do apagamento sistemático da memória
LGBT, para o apagamento de travestis e transexuais no espaço público.
Propõe uma “historiografia das subalternas” e desenha uma cartografia
pela cidade de São Paulo, em um movimento de re-existência desta memória
para o tempo presente e para geração futura.
Em “Mobilizações da memória em lugares de morte em São Paulo:
Flávio Sant’anna, Edson Neris e Andrea de Mayo”, Renato Cymbalista
analisa o tema a partir de três casos, nos dois primeiros, parte do que é
provavelmente o apagamento em seu grau mais violento, e no terceiro, do
processo para reconhecimento de nome social pós-morte. O autor reflete
deste modo sobre a potência desses lugares, seja no sentido de reparação
histórica, seja como instrumento pedagógico para movimentos e sociedade
em geral.
Em “O patrimônio contra a gentrificação: a experiência do Inventário
Participativo de Referências Culturais no Minhocão”, Mariana Kimie e
Simone Scifone chamam atenção para o uso do inventariado como instrumento
de resistência frente a processos de expulsão dos mais pobres de
áreas de interesse imobiliário na cidade. Narram um processo ainda em
curso, no qual o processo educativo é central.
Em “Povos indígenas no Brasil, museus e memória: questões emergentes”,
João Paulo Vieira e Eliete Pereira apontam para a crescente reivindicação
dos museus como espaço de articulação política, afirmação étnica
e visibilidade por povos indígenas, na qual protagonizam suas próprias
narrativas sobre patrimônios, memórias e histórias, ultrapassando versões
unificantes, universalizantes e subalternizadas oferecidas por instituições
tradicionais.
Em “Museologia – substantivo feminino: reflexões sobre museologia e
gênero no Brasil”, Ana Audebert e Marijara Souza realizam uma reflexão
de gênero, tomando o termo como ponto de partida para não naturalizar
uma lógica historicamente androcêntrica e, desse modo, possibilitar ações
afirmativas.
Em “Museus, Memórias e Culturas afro-brasileiras”, Marcelo Bernardo
da Cunha apresenta reflexões e questões relativas às presenças e ausências
da memória africana e afro-brasileira em espações museais e no
patrimônio em geral.
Em “Museu do samba carioca: samba, gingado e movimento”, Mario
Chagas e Rondelly Cavulla debruçam o olhar para o caminho que constituiu
o Museu do Samba no Rio de Janeiro, revelando especialmente o
exercício de novas imaginações museais, por Nilcemar Nogueira, neta de
Dona Zica e Cartola.
Em “Memória e Esquecimento LGBT nos Museus, Patrimônios e Espaços
de Memória no Brasil”, Jean Baptista e Tony Boita realizam um mapeamento
das ações relacionadas à memória de gays, lésbicas, bissexuais,
travestis e transexuais em espaços patrimoniais e de memória no Brasil,
apontando para os mesmos como instrumentos estratégicos de afirmação
e resistência e convidando a produções nesse sentido.
Na seção Gestão Cultural são apresentados quatro artigos inéditos
produzidos por ex-alunos do Curso Sesc de Gestão Cultural, cujos temas
referem-se respectivamente: ao processo de formação e aperfeiçoamento
profissional do campo museal em Santa Catarina; às práticas de gestão,
acesso e direitos culturais a partir da experiência do Centro Cultural da
Juventude, na zona norte de São Paulo; às ações e projetos desenvolvidos 8
pelo Museu Paulista durante o fechamento para obras; e, por fim, à reflexão
de inspiração etnográfica sobre as diferentes formas de apropriações
do espaço do Sesc Itaquera por praticantes de voleibol e futsal.
O arquiteto Fernando Atique apresenta a resenha do livro Economia
do Patrimônio Cultural, de Françoise Benhamou (Edições Sesc, 2016),
que analisa a economia do patrimônio cultural e reflete sobre os processos
de mercantilização e consumo no campo da cultura.
A artista visual, pesquisadora e educadora Rosana Paulino é a entrevistada
desta edição da revista e compartilha a sua visão sobre questões
relacionadas à sua trajetória no campo da arte brasileira, além de comentar
as referências estéticas e políticas que moldaram a definição da forma
e concepção de suas obras. Angélica Freitas contribui com o poema Mulher
Casa, com ilustração da artista plástica Karine Guerra.
A reflexão sobre a questão do patrimônio se encerra com as imagens
produzidas pelo fotógrafo Fábio H. Mendes, que documentou a visita dos
alunos à Vila Itororó durante o curso “Bixiga: história, memória e desafios
de um bairro paulistano”, realizado em maio de 2015 no Centro de Pesquisa
e Formação do Sesc São Paulo.
Que as palavras de Mia Couto, que vislumbram esperança fertilizada
no tempo, junto à poética que incita à resistência como forma de sobrevivência,
proferida por Claudia Wonder, sigam instigando o florescimento de
um engajamento a um só tempo poético, sensível e político – cada vez mais
necessário e urgente no campo da cultura.
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