Seja no teatro, na televisão, no cinema ou nas redes sociais, atriz Vera Holtz desafia-se e provoca o público
POR MARIA JÚLIA LLEDÓ
Leia a edição de OUTUBRO/23 da Revista E na íntegra
Não há ponteiros no relógio de Vera Holtz. Para a atriz e diretora, cuja formação em música e artes plásticas complementam uma premiada trajetória no teatro, na televisão e no cinema, o tempo é apenas uma invenção. Talvez seja esse pensamento que a move constantemente, aos 71 anos, na escolha de personagens atemporais e nos projetos de site specific que cria junto a uma equipe no seu canal de Instagram (@veraholtz). “Ela foi apelidada de Vera Viral”, gargalha a atriz, que faz das fotos dessa personagem uma provocação ao status quo na sociedade.
Continuamente provocada pela veia artística da família Holtz, e por mestres do teatro – como Luiz Antônio Martinez Corrêa (1950-1987), Gerald Thomas, Antônio Abujamra (1932-2015), Márcio Meirelles, Mauro Rasi (1949-2003) e os irmãos Adriano e Fernando Guimarães –, Vera acredita num fazer-se e refazer–se diário. No espetáculo Ficções, de Rodrigo Portella, ela interpreta uma ciranda de personagens ao lado do violoncelista Federico Puppi, numa “jam session” – como ela chama – nessa adaptação para o teatro do best-seller Sapiens – Uma breve história da humanidade (Companhia das Letras, 2020), de Yuval Noah Harari.
A peça, que estreou ano passado e já esteve em cartaz no Sesc Guarulhos, em julho, rendeu os prêmios Shell de Melhor Atriz – Rio de Janeiro e o APTR (Associação dos Produtores de Teatro), também na categoria Melhor Atriz. Já no cinema – além da estreia, em agosto, no CineSesc, do documentário ficcional As Quatro Irmãs (2018), dirigido por Evaldo Mocarzel, outro papel recente coroou a atriz no Festival de Cinema de Gramado. Vera recebeu o kikito pela protagonista de Tia Virgínia (2023), de Fábio Meira. Na película, ela vive uma mulher de 70 anos que abdicou dos sonhos para cuidar da mãe doente, até receber, numa noite de Natal, a visita das irmãs Vanda e Valquíria, interpretadas por Arlete Salles e Louise Cardoso. “O kikito agora está sempre comigo, levo até para passear (risos). Ele saiu das Serras Gaúchas e está passeando aqui comigo, nas areias do Rio de Janeiro”, brinca. Nesta Entrevista, Vera Holtz relembra os primeiros contatos com a arte, sua natureza buscadora, a contemplação da finitude e sua vocação para a ficção.
Acho que [o interesse por diversas linguagens artísticas] eu devo aos meus padrinhos. Tia Rita Holtz, que era minha madrinha e professora de canto orfeônico, na época, me conduziu ao Conservatório de Tatuí para a música. E a minha prima Cidinha Holtz, professora de canto coral, também era do conservatório. Foi essa convivência familiar, através da tia Rita, Cidinha e, inclusive, do meu tio, marido da tia Rita, o tio Rolf, que era pintor. Ele pintava mais natureza morta, e tinha convivido, na primeira metade do século passado, com artistas paulistas e de fora. Então, esse convívio com o ateliê do tio Rolf, e com o piano na salinha da frente da casa da tia Rita, foram as minhas primeiras escolhas de arte. Eu estudei piano, me formei na Escola de Artes Plásticas, não sei como se chama hoje, acho que seria Educação Artística –, e em Geometria Descritiva. Depois eu fiz um curso de teatro, já em Piracicaba, quando eu dava aulas de desenho.
Eu me encantei pelo teatro quando assisti à peça com a Myriam Muniz – Se Correr o Bicho Pega, Se Ficar o Bicho Come – que, inclusive, eu vi no [Teatro] Anchieta, do Sesc Consolação. A primeira vez que eu vi uma peça de teatro senti um gongo, um negócio na minha cabeça. Não entendia absolutamente nada daquilo, eu só entendi a parte musical e a parte visual, mas não entendia a dramaturgia, que eu vim a aprender depois, a entender que o espetáculo não se faz somente de imagem e de som, mas também da palavra. Daí eu fui para a Escola de Arte Dramática (EAD) na USP. Depois fui morar no Rio de Janeiro e já estreei na peça Rasga Coração [de Oduvaldo Vianna Filho], em 1979. Então, depois dessa epifania que eu tive na primeira vez em que vi uma peça de teatro, pensei: eu quero seguir esse caminho. O dia em que a porteira se abriu para mim, eu falei: agora eu devo ao mundo e ele deve a mim. Então, vamos jogar esse grande “play” que é a vida.
A sensação que eu tenho é que quanto mais personagens você faz, mais você se amplia, mais você se torna uma pessoa tolerante, ganha conhecimento, aceita o outro, a diversidade, a diferença. Porque a nossa matéria-prima [como artista] é o comportamento do homo sapiens, do “homo sapiens macho”, do “homo sapiens fêmea”. Essa é a nossa paixão. Como ele/ela está se comportando? Quais são as narrativas que ele/ela está inventando? Qual o sistema de crenças que tem? Quais são essas ficções, essas criações da humanidade? Aquilo que foi inventado pelo homem, e não é uma área científica. A gente vive nessa área ficcional. Então, quanto mais você vive, mais você começa a descobrir: isso existe em mim. Esse tipo de interpretação mais orgânica que parte de um sentimento que você já tem é muito doido: você amplia aquela percepção, abre outro canal e, obviamente, vai se expandindo bastante com isso.
Lembro que fiz uma peça, Ópera Joyce (1988), de Alcides Nogueira, e ele me mandou o texto no mesmo dia em que eu estava indo a uma reunião na Globo para estrear na novela Que rei sou eu? (1989), então, foi um negócio doido. A vida sempre me colocou: “você tem dois caminhos”. Aí eu fiz os dois, óbvio, né? E eu não entendi nada de Ópera Joyce, era muito cheia de referências. Falei: “pô, não tô entendendo nada dessa peça”. Aí, [Alcides] me pergunta: “E aí, Vera, gostou?”. Na mesma hora eu falei: “adorei”. Não ia dizer que não tinha entendido nada [risos]. E quanto mais complexa para mim [a obra], quanto mais desconhecida para mim, mais ela me atrai. Eu sempre falo: “não precisa fazer o que você já sabe, porque o que você já sabe não vai te levar a nada [novo]. O desafiador e o provocador é o que realmente sempre me atraiu.
O [Antônio] Abujamra é o meu mestre. Porque o Abu, mesmo ausente, nos atualiza. Ele sempre falava: “Vera, não seja doméstica. Preocupe-se em ser uma pessoa universal”, sabe? E essa questão da televisão [da novela Que Rei Sou Eu?], eu não entendia nada, e o Abujamra ficou do meu lado o tempo todo. Eu expansiva, solar, e o Abu: “Menos (em sussurro) Vera”. O Abujamra foi conduzindo aquela persona de televisão que estava se formando ali. Fizemos Um certo Hamlet (1991), com Cláudia Abreu. Eu também fiz uma leitura de Fedra com ele, no palco, e o Abu era cirúrgico: “Você vai falar: a, b, c, d, pausa, Vera. E eles vão rir”. Fazia exatamente isso e o público ria. Era de um conhecimento absoluto do nosso trabalho e do público. Foi uma convivência por muito tempo e de muito ensinamento. Reverencio o Abujamra até hoje: ele está vivo comigo.
Quando descobri o Instagram, quando eu aterrizo ali, encontro esse lugar para falar sobre o zeitgeist [termo em alemão que significa ‘espírito da época’]. Falei: nossa, esse é o lugar onde vou conseguir criar e falar dessas questões todas [política, sexualidade, solidão etc], e foi espetacular. Eu consigo integrar a atriz na performance, nas artes visuais, trazer um conceito e falar sobre as coisas que me tocam, das coisas do meu tempo. Foi aí que cheguei nesse lugar de performance site specific [obras criadas de acordo com o ambiente e com um espaço determinado] no Instagram. Tem algumas imagens que vêm prontas, e outras eu jogo fora. Ela foi apelidada de “Vera Viral”, logo no começo. Vera Viral é uma identidade bem singular que só quer viver dentro daquele espaço. Se eu falar [para ela] que vai ter exposição, a Vera Viral fica brava comigo e simplesmente some. Deixar fluir, né?
O tempo é uma invenção, então você escolhe acreditar nele ou não. Eu acho que é uma invenção, mas como tudo o que o homem inventa, algumas coisas são ótimas. Eu venho de uma família que, desde muito cedo, convive com os longevos e com os bebês. Então, para mim, é clara a passagem da vida, esse é o ciclo da vida. Não tem como não respeitá-lo, conhecê-lo
e entrar na roda. E a roda gira. Tenho mais de 70 anos, tudo pode acontecer. E a minha família tem uma questão lúdica com os que já se foram. Porque, às vezes, meu pai fala assim: “Chama Frederiquinho para almoçar”. Aí eu falo: “Mas, pai, o Fred já morreu”. Aí, ele cai na risada. Toda a família Holtz é brincalhona. E à medida que outros iam nos deixando, eles iam voltando, iam se reaproximando nas conversas nas mesas, nessa tradição oral. Nem falo “morte” (risos), falo “pós-produção”. E me preparo para isso.
O roteiro de Tia Virginia (2023) foi criado por Fábio Meira a partir das tias dele. Essa é uma história familiar. Eu acho que o cinema se faz mesmo é no dia a dia, na filmagem. O diretor vai, às vezes, repetindo a cena até afiná-la para realmente chegar àquele estágio emocional que ele sabe [onde quer chegar]. E o Fábio sabia perfeitamente. [Ganhar o Kikito de Melhor Atriz por esse filme] foi uma alegria juvenil. Este é um prêmio que povoa muito o imaginário dos atores. No dia da entrega, foi uma alegria, uma comemoração. Você percebe essa família do cinema brasileiro. O Kikito saiu das Serras Gaúchas e está passeando aqui comigo, nas areias do Rio de Janeiro.
Se você escolheu o caminho da arte, fique com ele. Às vezes dá trabalho, mas siga em frente. Amplie seu conhecimento ao máximo que puder. E não só conhecimento em teatro, mas em várias questões da humanidade: história, geografia, política, filosofia, antropologia, artes. Estude o máximo que puder para entender essas narrativas [da humanidade] e, depois, você vai entender o que é a ficção. Você vai viver no mundo da ficção. E como o homem tem essa capacidade de criar e crer coletivamente, se interesse por todas as narrativas do homem. E então, persista. Assista ao máximo de espetáculos que puder e passe a conhecer as pessoas que estão fazendo esses trabalhos. Lembre-se de que teatro não é feito sozinho. Nenhuma arte é feita sozinha. O teatro é uma obra coletiva. Lembre-se de que você está no mundo para viver, para conhecê-lo e para representá-lo.
Confira aqui trechos dessa entrevista em vídeo:
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