Octávio Ignácio – Museu de Imagens do Inconsciente
Vitor Pordeus é médico, ator, psiquiatra cultural e pesquisador. Foi fundador e coordenou o Núcleo de Cultura, Ciência e Saúde da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro (2009-2017), é cofundador da Universidade Popular de Arte e Ciência, do Teatro de DioNises e do Hotel – Spa da Loucura no Instituto Municipal de Saúde Mental Nise da Silveira, Engenho de Dentro, Rio de Janeiro
Vitor sempre conta que descobriu que a arte pode curar por experiência própria, quando o sofrimento pela perda do avô foi maior do que sua racionalidade e seu autocontrole puderam suportar. Foi no teatro que ele encontrou a saída para sua depressão e, ao finalmente conhecer um método de lidar com questões mentais que funcionasse, resolveu se dedicar à psiquiatria. Ele é discípulo da médica psiquiatra brasileira Nise da Silveira, que usou a arte como ferramenta para despertar emoções e solucionar conflitos psíquicos.
Em entrevista, ele fala sobre a importância das manifestações artísticas não só para restabelecer o equilíbrio da mente, mas para prevenir problemas e mantê-la saudável.
Para muitas pessoas, a arte é considerada um passatempo, um lazer, não uma ferramenta de saúde. O que a arte faz com as pessoas que a torna benéfica para a mente?
Para entender os efeitos da arte é preciso voltar às suas origens. A saúde mental reflete a história evolutiva da humanidade, ao mesmo tempo em que a humanidade reflete nossa organização mental, nossa saúde. Somos o único animal no planeta que faz arte propositalmente. As aranhas fazem teias, as abelhas fazem colmeias, que são coisas muito belas, mas não param para admirá-las. As representações pictóricas, as esculturas, as mímicas e as performances rituais começaram a aparecer 7 milhões de anos atrás, quando ainda éramos chimpanzés. Esses bichos fazem rituais coletivos, de sexo, de alimentação, para saudar ou para chamar a chuva, reconhecem plantas medicinais e venenosas. No final do período paleolítico (300 a 400 mil anos atrás) surgem as primeiras esculturas, pinturas e representações ligadas à espécie humana. Ou seja, o surgimento da arte está ligado ao surgimento do nosso próprio psiquismo, da nossa própria atividade de simbolização e de organização. Quando você, hoje, faz uma escultura com argila, por exemplo, está voltando milhões de anos na história humana. Isso ajuda na saúde mental pois é um modo de preencher lacunas e buracos provocados por experiências traumáticas, anormalidades e patologias que apagam memórias. A arte rearticula nossa própria memória evolutiva, de espécie, nosso inconsciente coletivo, dos rituais comunitários bem feitos. A arte é parte do que nos faz cientificamente humanos já que, de acordo com a biologia e a definição científica, o homem é nada mais que um chimpanzé bípede que evolui por meio de seus rituais culturais.
E o que ocorre hoje para termos um aumento tão grande de casos de doenças mentais em diversos níveis de gravidade?
Há algum tempo estamos descolando as nossas ações das nossas palavras. A arte nasce do simbolismo do corpo e de repente ela ficou muito verbal. Isso leva a uma fragmentação psicológica, a uma separação dos processos do corpo e do pensamento. E isso está endêmico. A arte pode estar na jardinagem, na construção de algo, na dança, na pintura. Toda experiência é arte. No livro a Arte como Experiência, de John Dewey (filósofo norte-americano) ele aponta que a arte é o bem viver, o bem fazer. Na maior parte das vezes a arte é benéfica e cura, principalmente quando se coloca as manifestações artísticas como diálogo, e não como monólogo, como aponta Lygia Clark ao dizer que não existe objeto de arte e sim de relação. É o que você faz dele que é mais importante. Por isso que, quando a arte é egóica, como a das celebridades, ela pode enveredar para um lado não saudável. O filósofo moderno Baruch de Espinoza consegue explicar bem por que algumas formas de arte funcionam melhor do que outras para determinadas pessoas. Para ele, a democracia é feita pelas singularidades livremente expressas no espaço público, ou seja, pela liberdade de expressão. Conforme cada indivíduo se expressa, a cooperação se torna possível. Sem isso, é impossível. Este é o regime que estamos vivendo hoje, de competição e introversão. É uma situação de “eu contra o mundo”, “o mundo desconfia de mim então eu ataco esse mundo”. Isso leva a um estado de doença mental, é insalubre, como temos acompanhado. O que é bom ter é um espaço de afeto e liberdade, em que cada um pode pular, cantar, desenhar, dançar, se exprimir. Quando eu dirigi o Hotel da Loucura no Hospital Psiquiátrico Pedro II, no Engenho de Dentro, Rio de Janeiro, eu deixava que todos escrevessem nas paredes, desenhassem, cantassem, a orientação era de sempre ter música e materiais disponíveis, tinha oficinas de teatro três vezes por semana. Isso criava uma rotina, um clima de livre expressão, de improviso, de diálogo, o que mostra que a arte é possível mesmo na população mais complexa do sistema de saúde que é a dos psicóticos crônicos.
Por falar nisso, a gente fala muito facilmente sobre várias doenças, como diabetes, câncer e problemas dos órgãos em geral. Mas a saúde mental tem um estigma ainda. A depressão e a ansiedade são encaradas de um jeito diferente. Mas se a mente faz parte do corpo, por que fazemos essa distinção ao lidar com os problemas da “cabeça”?
A pergunta em si já contêm a resposta. A mente faz parte do corpo. Eu, Vítor, não tenho dúvida disso. Mas socialmente ninguém acredita nisso. Remonta a outro filósofo moderno, René Descartes, que separou a mente do corpo no que chamamos de paradigma, de dualismo cartesiano. Para ele, a mente não está no corpo, que, por sua vez, é uma máquina matemática e não deve se preocupar com emoções. Quem contradiz Descartes é justamente Baruch de Espinoza, para quem a mente é a expressão simultânea do corpo. As ideias e as palavras são expressões de ações corporais e se descolamos os dois, isso resulta em problemas. Mas nós vivemos sob o paradigma cartesiano, é assim que a sociedade encara, que o trabalho encara, que a medicina encara na maior parte das vezes, mexendo nas questões de química e matemática da máquina, com medicamentos, em vez de pensar nos processos de expressão do corpo. Eu enxergo que estamos vivendo uma verdadeira revolução científica e de práticas neste exato momento, em que se passa a enxergar a coletividade, a família, o valor da promoção e da prevenção além da medicalização. Por isso que promover cultura é uma ação preventiva da psiquiatria, antes que as pessoas fiquem doentes, você as reconecta por meio da arte.
Talvez para grande parte das pessoas uma das maiores dificuldades seja notar os efeitos que a arte provoca em si mesmos e nos outros. É possível mensurar isso?
Sim, inclusive utilizando parâmetros clínicos, acompanhando a pressão arterial, o peso, o sono, as alterações de humor. Mas é importante saber que tratamentos relacionados à saúde mental levam tempo, é preciso um trabalho de no mínimo dois anos. Não será em poucos dias que se percebe a evolução. Uma das coisas que acho muito úteis hoje é a possibilidade de registrarmos nossas emoções em fotos, vídeos, áudios, textos. Isso tudo vira material depois, você consegue notar a imagem em movimento, mudanças no olhar, no falar. Vale a pena registrar o que se sente, faço isso com meus pacientes, que já apareceram em entrevistas, vídeos. Isso dá autonomia, promove o discurso daquela pessoa. Se eu pudesse dizer algo, seria para que as pessoas registrem seus pensamentos. Não guardem eles com vocês. Shakespeare já dizia que o mundo é um palco e todo ser humano é um ator. Então atue. Daqui a pouco a cortina se fecha, você não entrou em cena e pode se arrepender
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