Crédito: Bruna Quevedo
Depois de sua passagem pelo Sesc Pompeia, em 2018, a exposição Arte-Veículo foi para o Sesc Santos, em uma versão reduzida, mas mesmo assim com cerca de 100 trabalhos de 40 artistas e grupos. No período de abril a julho, recebeu estudantes, curiosos, crianças, idosos, frequentadores da unidade e da arte.
O nome do projeto Arte-Veículo, por si só, já intriga. Percorrer a obra aprofunda o mistério. São telas de TV, páginas de jornais, instalações indoor e outdoor (ou ainda art-doors), rua, asfalto, imagem, som, sentido. O caminho do conjunto de obras carrega em si o sentido da arte, suas definições, conceitos e provocações.
Seus seis núcleos dão pistas do que se têm pela frente: duvidar da verdade, perder-se, duelar, “ouviver”, hackear e ficcionalizar.
A curadora Ana Maria Maia organizou o todo. São diversas obras realizadas desde 1950 até hoje, com matizes, tendências, dizeres e saberes que, gentilmente, emprestam a liberdade artística aos espectadores, sempre propondo uma troca.
“Arte-Veículo é uma plataforma de pesquisa que foi iniciada há cerca de dez anos. Nela, procura-se entender como a imprensa, os jornais, revistas, a internet e a TV são lugares de experimentação e de disputa de imaginário pelos artistas brasileiros”, explica a curadora.
A exposição foi lançada a partir do livro Arte-Veículo: intervenções na mídia de massa brasileira, de 2015, que tem um viés cronológico. A exposição, não. Ela propõe uma maneira de ver randômica, onde o espectador escolhe por onde ir, podendo voltar, rever e refazer o trajeto sempre que quiser. “A primeira experiência aconteceu no Sesc Pompeia, em 2018, e agora a gente está inaugurando aqui, no Sesc Santos, uma itinerância, uma nova visada sobre Arte-Veículo.”
A performance “Vera Verão” inaugurou a exposição misturando cantos africanos e afro-diaspóricos com música eletrônica, através da atuação de Aretha Sadick e Mama Jo, com a participação da DJ Rayani Sinara. Ao final, em um sinal de reverência, alfazema é espalhada pelo público. Todo o salão se ilumina e refresca os presentes.
“Mais que uma brecha, a gente já chega chutando a porta para criar uma conversa a partir dessa personagem que é a Vera Verão, uma artista que fez muito sucesso entre os anos 80 e 90, que estava em um canal de TV principal no Brasil”, diz Mama Jo. “Apesar de todo o sucesso, havia uma outra pessoa contando a história a partir dos estereótipos e preconceitos que a Vera sofria e da visão que tinha da experiência.”
Uma das primeiras obras a chamar a atenção, além de convidar à participação, é “A Corda”, de Neide Sá. A instalação, montada originalmente nas ruas do Rio de Janeiro, em 1967, é constituída por uma corda, pregadores, palavras soltas, fotos e diversos recortes tirados de revistas e jornais. O trabalho do público é juntar o material e propor algum sentido ao que se pendura ao longo da linha. O título se refere ao duplo sentido entre o varal, ou a corda, e o gesto de acordar, ou despertar da alienação.
Na época de seu lançamento, em plena ditadura militar, invariavelmente eram formadas frases e sinais ofensivos ao regime. A polícia reprimia, derrubava a instalação e ameaçava prender a sua autora que, de fato e de direito, se dissipava em várias pessoas anônimas pelas ruas da cidade.
A exposição Arte-Veículo salta da feitura artesanal e passa basicamente por todas as tecnologias de comunicação dos últimos 50 anos. Vai desde os impressos até os telejornais e meios digitais. As diferentes formas de fazer e ler jornal são expostas, a começar pelas capas do popular jornal carioca O Dia, até as manchetes da Folha de S. Paulo sobre as rebeliões em grandes presídios, sobretudo a Casa de Detenção do Carandiru, que tanto assombraram os leitores na década de 2000.
Outras instalações relembram programas da TV aberta da década de 80, nos quais o espectador é convidado a assistir, com monitores e fones particulares, por exemplo o ingênuo e irreverente repórter Ernesto Varella, interpretado pelo jovem Marcelo Tas.
No trabalho de Nuno Ramos um recorte de palavras e frases em andamento alterado nas vozes de William Bonner, Renata Vasconcelos e alguns repórteres durante o Jornal Nacional formam a letra da canção “Lígia”, de Tom Jobim. E ao lado, uma placa do artista Vitor Cesar lembra a frase que abre, há décadas, o programa de rádio do governo federal, A Hora do Brasil, de 1938: “Em Brasília, 19 Horas”.
Além das performances e instalações, os encontros e indagações se dão através de oficinas e exercícios de fruição. A arte-educadora Valéria Gobato propõe atividades, diante de uma plateia formada predominantemente por jovens: “Nossa conversa é sobre processos de troca em arte, educação e cultura tendo como ponto de partida a exposição Arte-Veículo. A ideia é falar sobre as possibilidades de mediação cultural a partir de uma exposição de arte contemporânea e experimentar estratégias e dispositivos para que os diálogos aconteçam”.
Ela acredita que a mediação é um encontro entre público, obra de arte e educador. “Nosso trabalho aqui é fazer com que todas essas peças juntas conversem a fim de questionar o que está posto, tanto como arte, quanto como o mundo lá fora. É uma exposição que fala muito sobre a nossa vida e também sobre o momento histórico atual. Fala sobre mídia, meios de comunicação, fake news, opiniões e verdades”, destaca a arte-educadora.
A exposição prossegue para fora da unidade, em alguns pontos da cidade, onde foram fixados os “art-doors, os arte-veículos das ruas”, termo utilizado pela equipe Bruscky & Santiago. Em um deles, na avenida Francisco Glicério, em Santos, num fundo branco com letras pretas, se abre a frase: “É Mentira”. A obra, de Daniel Santiago, exposta sobre os pontos de ônibus, intriga e provoca questionamentos nos passantes.
Em outro outdoor, posicionado na avenida que dá acesso ao Guarujá pela balsa, é colocado um fragmento de um verso do poeta tropicalista Torquato Neto, com construção gráfica do grupo Manga Rosa:
Primeiro passo
conquistar espaços
Tem espaço à beça
ocupe
se vire
Torquato
https://www.youtube.com/embed/145V265ZELY
O pequeno poema, elaborado a partir de palavras de ordem, assim como o anterior, também faz com que transeuntes, assim que perguntados, se abram em questionamentos e reflexões.
Ao final de tudo, naquele mesmo movimento circular do princípio, distante da linearidade, sem saber exatamente onde é o começo e onde tudo termina, o espectador se encontra com muito mais perguntas do que respostas.
Mas, ao mesmo tempo, muito mais preparado para respondê-las.
>> Veja os detalhes da exposição Arte-Veículo, que fica em cartaz no Sesc Santos até 28/07/2019.
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