Leia a edição de fevereiro/23 da Revista E na íntegra
O zeitgeist, termo alemão que se refere ao “espírito do tempo”, vem sendo traduzido por jovens artistas que se expressam em diferentes linguagens, multiplicando-se em várias partes do mundo. Com essa crescente pulsão criativa das juventudes, questões como gênero, etnia, desigualdade social e meio ambiente reverberam na arte contemporânea, instigando a sociedade a rever os desafios do presente a partir de outras perspectivas. E se “o universo da arte depende de novidades, é preciso encararmos um fato: sem a constante substituição de artistas e de obras, o mundo da arte paralisa”, reflete o pesquisador Guilherme Marcondes, autor do livro Procuram-se Artistas: Aspectos da legitimação de (jovens) artistas da arte contemporânea (Telha, 2021). No entanto, são muitos os obstáculos enfrentados por essas juventudes na cena artística. Por exemplo, “ainda mantemos visões estereotipadas que nos aproximam mais da ideia do jovem estudante acadêmico – como os filhos da burguesia do século 19 e jovens paulistanos modernistas de 1922 – do que da realidade histórica e contemporânea da maior parte dos jovens brasileiros”, observa a educadora e pesquisadora Luciara Ribeiro, cocuradora da 30ª MAJ – Mostra de Arte da Juventude, realizada pelo Sesc Ribeirão Preto, em 2022, e cuja itinerância segue em cartaz no Sesc Consolação, até março. A fim de tentar compreender esse cenário e propor questionamentos sobre o assunto, textos de Guilherme e Luciara traçam rotas de reflexão, vislumbrando possibilidades para o fomento das juventudes no meio artístico.
Por Guilherme Marcondes
O universo da arte depende de novidades. Ao longo dos séculos, artistas e correntes estéticas vêm sendo sobrepostos em nome da inovação. Há, obviamente, o estabelecimento de cânones, quando um ou outro nome são alçados ao panteão dos(as/es) artistas por excelência. Todavia, é preciso encarar um fato: sem a constante substituição de artistas e de obras, o mundo da arte paralisa. Todos os anos, em diferentes partes do mundo, exposições, residências e prêmios anunciam, divulgam, premiam, vendem e/ou revelam jovens artistas que corporificariam um espectro de novidade e, portanto, deveriam ser acompanhados(as/es) de perto pelos atores sociais da arte por trazer ares de renovação, que poderiam mudar os rumos do que até então se compreende como arte. Ou seja, jovens artistas não apenas possuem o desejo, consciente ou inconsciente, de obter carreiras artísticas reconhecidas, como também são solicitados(as/es) pela esfera da arte. A renovação do campo da arte por meio de artistas e de seus trabalhos (que podem ser proposições ou ações, e não necessariamente objetos) é, de fato, um dos mecanismos que faz a roda da fortuna da arte girar.
Sem novidades sendo constantemente reveladas, o universo da arte perderia uma de suas prerrogativas. Geralmente compreendido pelo senso comum como um campo progressista, o universo da arte necessita de novidades que lhe auxiliem na manutenção desse mito. Em tempos de arte moderna, por exemplo, era comum o lançamento de uma série de manifestos artísticos divulgando correntes estéticas nascentes e artistas inovadores(as/us), que vinham ao mundo buscando a desconstrução de paradigmas que lhes eram precedentes. Com o advento da arte contemporânea, em meados do século 20, esse processo de constante renovação parece ter sido acelerado; os manifestos desapareceram, mas as constantes inovações tecnológicas e transformações sociais pulsantes contribuem para que a renovação no campo artístico tome outra proporção. Podemos pensar em uma era de editais e prêmios com foco em jovens artistas.
Com a arte contemporânea, há uma expansão de limites: pinturas e esculturas são bem-vindas, mas é possível que ações, performances, vídeos, filmes e toda a sorte de possibilidades que as tecnologias possam oferecer como inspiração passem a ser entendidas como arte. A arte contemporânea exige que artistas ultrapassem os limites do senso comum, não da figuração clássica, como no caso da arte moderna, mas da própria noção de arte. Além disso, visto que o mito fundador do mundo da arte apregoa seu progressismo, o mundo pós-colonial vem sendo terreno fértil a alimentar artistas e suas proposições estéticas, visto suas contestações político-sociais advindas de diferentes grupos cujos marcadores sociais de diferença são socialmente desempoderados (raça, gênero, classe, entre outros). Tem-se, assim, uma pluralidade de meios e linguagens estéticas, bem como múltiplas questões relativas às políticas da identidade demandadas pelos movimentos sociais, que têm enriquecido o campo da arte, contribuindo para a sua constante renovação.
É fundamental o entendimento de que o mundo da arte se constitui pelas ações de indivíduos formados sob o mesmo guarda-chuva colonial que fundamenta a sociedade envolvente. A arte é feita, vendida e difundida em um sistema composto por indivíduos e instituições em que o pensamento moderno-ocidental não foi questionado, mas implementado. Ser artista profissional até não muito tempo atrás era profissão masculina e branca, fato argumentado, por exemplo, pelas feministas que questionaram esse lugar atribuído aos homens, como Linda Nochlin, em seu texto Why Have There Been No Great Women Artists? Igualmente, pessoas negras e indígenas, ou seja, racializadas, não somente no Brasil, têm questionado esses atributos do ser artista, posto que, com a constituição da modernidade, pessoas negras e indígenas foram, em geral, retratadas por mãos brancas que entraram para a história, contribuindo para a constituição de estereótipos negativos. Efetivamente, quando abrimos os livros de artes e de história, artistas ali tomados como grandes mestres não são, em grande medida, pessoas racializadas fora do espectro da brancura.
Apesar dos últimos quatro anos de um governo que cortou verbas da educação, da cultura, da saúde, e em que avanços sociais demandados por grupos minoritários foram ameaçados, o Brasil tem assistido ao efeito de políticas públicas como a Lei 12.711/2012 (a chamada Lei de Cotas). Como nunca antes na história deste país, pessoas negras e indígenas conseguiram acessar o ensino superior e público de qualidade, o que tem como efeito uma transformação dentro e fora dos muros das instituições de ensino. No caso das universidades, temos visto contestações contundentes a cânones que contribuíram para o desempoderamento de mulheres, pessoas racializadas, transgêneras, entre outros grupos. Já do lado de fora, temos profissionais formados(as/es) nas melhores instituições, cujos marcadores sociais são desempoderados e que, em muitos casos, vêm contestando práticas opressoras, ocupando melhores empregos e demandando espaço em cargos de poder.
Na arte brasileira, têm surgido inúmeros projetos voltados à difusão de epistemologias outrora compreendidas como subalternas. A representatividade está em pauta na arte brasileira, otimizando a formação, o reconhecimento e a divulgação dos trabalhos de artistas que produzem contranarrativas à opressão que seus grupos sociais vivenciam. Por vezes, há práticas de tokenismo, que se dá quando indivíduos são incluídos em projetos em número minoritário para demarcar um pretenso progressismo, mas agregando poucos. Contudo apesar de casos de oportunismo, há práticas que, de fato, buscam transformar a demografia do campo da arte em termos de gênero, classe, raça, sexualidade, entre outros marcadores. Fato é que há uma transformação em curso.
Sendo o campo artístico ávido por novidades e pela manutenção de seu mito de origem como uma esfera de liberdade e progressismo, as demandas dos movimentos sociais nas últimas décadas têm sido importantes para a renovação das linguagens e técnicas da arte. Ademais, artistas negros(as/es), mulheres e pessoas trans têm sido cada vez mais solicitados(as/es) pelo mundo da arte, circulando em exposições, premiações, residências e publicações que buscam visibilizar epistemologias até então invisibilizadas, justamente por advirem de grupos socialmente desempoderados.
Observamos, então, uma pluralidade pulsante na arte contemporânea. Não só materiais e técnicas têm tido seus limites expandidos. O mundo da arte em si está sendo demandado no sentido de uma transformação de seus cânones e profissionais que o compõem. E neste processo é que temos visto como jovens artistas têm sido mais e mais demandados(as/es) pelo universo da arte. Afinal, representam a transformação de práticas, questões, linguagens e técnicas que são fundamentais para manter o mundo da arte em pleno funcionamento.
Guilherme Marcondes é doutor em sociologia e antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com pesquisas que entrecruzam a sociologia da arte à sociologia das relações étnico-raciais. É autor do livro Procuram-se Artistas: Aspectos da legitimação de (jovens) artistas da arte contemporânea (Telha, 2021).
Por Luciara Ribeiro
Assumir a cocuradoria da 30ª Mostra de Arte da Juventude (MAJ) suscitou caminhos reflexivos sobre o significado das juventudes. Há certa normalização acerca desse termo nas artes, por exemplo, o lugar do “novo”, do mais “recente”, eram termos bem recorrentes. Talvez por herança das artes ocidentais e suas narrativas de superação, esse novo seja tão almejado, e ser parte da curadoria que o definiria na mostra era lido como enorme privilégio. Entretanto, esse “novo” me perturba, já que por vezes ele também foi lido nas artes como o desconhecido e o estranho, o que está fora do circuito dos poderes e dos que definem as narrativas: o outro. Preocupava-me o modelo de tal visão que dualiza experiências como o novo e o antigo, o advento e o ultrapassado, o jovem e o velho. Não me interessava enquanto selecionadora e curadora partir de uma referência assim, mas encontrar vias mais complexas de leitura das juventudes e do que é ser uma pessoa jovem e artista no Brasil.
Em vista disso, durante a 30ª MAJ, o nosso pensamento central não foi a busca especulativa pela “novidade”, mas por compreender a contribuição crítica e artística de cada trabalho. Entendemos também ser fundamental observar a formação e a qualidade das propostas. No entanto, essas não poderiam ser pontos de partida e nem de chegada. Pelo contrário, as colocamos em discussão com outros critérios, entendendo não só o que as juventudes atuais produzem, mas quem são as juventudes atuais, o que propõem e o porquê propõem. Com esse olhar que vê as pessoas por trás de cada obra, realizamos tal edição.
Apesar da intensa aposta nas juventudes, o mesmo sistema das artes que o promove também dificulta suas entradas. Além de critérios restritos de quem participa do meio, são poucas as aberturas e fomentos financeiros – estratégias que garantem a manutenção de uma elite e seus descendentes. Em um país marcado por um histórico de escravidão e genocídios, ser jovem ainda é um enorme desafio. Mesmo com direitos políticos recentemente conquistados, suas efetivações continuam mínimas, e nas artes não é diferente. Não por acaso, quando pensamos em juventudes artísticas, ainda mantemos visões estereotipadas que nos aproximam mais da ideia do jovem estudante acadêmico – como os filhos da burguesia do século 19 e jovens paulistanos modernistas de 1922 – do que da realidade histórica e contemporânea da maior parte dos jovens brasileiros. Em vista disso, tensionar tais problemáticas por via da MAJ foi uma das minhas propostas neste trabalho.
Mais do que uma mostra expositiva, a MAJ coloca as instituições artísticas como parte da promoção de espaços para as juventudes. Criado em 1989, no Sesc Ribeirão Preto, com coordenação de Janete Junqueira Polo de Melo, antiga funcionária da unidade, o projeto estabelece como fundamental o uso do campo institucional para ampliação das políticas de redistribuição de renda nas artes. O Sesc, assim como as demais instituições artísticas e culturais, deve alargar não apenas as participações das juventudes, mas também o investimento e acesso financeiro delas, mecanismos cruciais para a garantia das emancipações. Em 32 anos de Mostra de Artes da Juventude, vemos muitos relatos de jovens artistas que tiveram as paredes da MAJ como a primeira possibilidade de compartilhar um fazer, de entender seus processos, de circular suas obras.
Infelizmente, caminhamos a passos lentos, e ainda há muito o que ser feito. Apesar dos poucos avanços, não podemos negar os impactos recentes na busca por ampliação de acessos e diversificação de agentes nas artes, o que implica no perfil de artistas e curadores. Ser parte da curadoria da 30ª MAJ é reflexo disso, visto que não foram identificadas em suas edições anteriores participações de curadores não brancos. Não se limitar a um tipo único de juventude possibilitou que a edição de 2022 dessa mostra se tornasse uma exposição que dialogasse com diferentes visitantes e que abrangesse territorialidades, temáticas, materialidades, linguagens e perfis étnico-sociais dos artistas. Talvez, daqui pra frente, caberia chamá-la de Mostra de Artes das Juventudes, no plural.
Luciara Ribeiro é educadora, pesquisadora e curadora independente. Mestre em história da arte pela Universidade de Salamanca (USAL, Espanha) e pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), é integrante da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA), colaboradora da revista Contemporary And América Latina e da plataforma virtual Projeto Afro, e cocuradora da 30ª Mostra de Arte da Juventude (MAJ / Sesc São Paulo).
A Mostra de Arte da Juventude, criada pelo Sesc Ribeirão Preto, em 1989, é uma das principais ações da instituição no campo das artes visuais. Com mais de três décadas de existência, ela acolhe o trabalho de artistas entre 15 e 30 anos, trazendo ao público um recorte vivo da arte contemporânea jovem no Brasil. Em sua 30ª edição, realizada entre maio e setembro de 2022, celebrou sua longevidade e renovação constantes. Com o intuito de incluir a maior diversidade possível de identidades, territórios e propostas artísticas, a curadoria – composta por André Pitol e Luciara Ribeiro – selecionou 40 artistas e coletivos, em um recorte que acentuou as transformações do presente e que reafirmou a arte jovem como antídoto do absurdo e elemento de esperança para a criação de novos tempos. Segundo o diretor regional do Sesc São Paulo, Danilo Santos de Miranda, “ao realizar a edição comemorativa da 30ª edição da Mostra de Artes da Juventude, o Sesc valoriza a pluralidade e a diversidade contidas nas manifestações culturais – derivadas de sonhos e ideais de jovens – que, ao mergulharem no território fértil da arte, irrompem, iluminando expressões de seu tempo e acenando para perspectivas futuras”.
CONSOLAÇÃO
Até o dia 3 de março, a itinerância da 30ª MAJ segue em cartaz no Sesc Consolação, de terça a domingo, com visitação gratuita. Saiba mais.
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