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Navegadores, políticos, colonizadores, soldados, artistas e cientistas. Até mesmo animais e figuras míticas habitam, em formato de estátuas e bustos, as avenidas, praças e parques da cidade de São Paulo. Feitos de concreto, bronze e outros materiais, monumentos perpetuam na memória capítulos da História.
Tamanha é a força simbólica da presença dessas peças no cenário urbano que elas são capazes de provocar reações contraditórias. A exemplo do incêndio à estátua de Borba Gato, em julho de 2021, no bairro de Santo Amaro, zona Sul da capital paulista. Inaugurado em 1963, o monumento vem sendo criticado por celebrar a memória de Manuel de Borba Gato (1649-1718), bandeirante acusado de estar ligado à exploração e dizimação de negros e indígenas da região.
Além de alvo de protestos, muitas estátuas são relegadas ao esquecimento e apagamento histórico. Quando a artista Giselle Beiguelman, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), visitou o Depósito de Canindé — galpão da prefeitura que guarda, na região central de São Paulo, monumentos retirados de seus espaços originais para dar lugar a obras públicas — ela se surpreendeu com um número significativo de esculturas de heróis, musas, entre outras peças invisibilizadas. Em Memória da amnésia: políticas do esquecimento (Edições Sesc São Paulo, 2019), a pesquisadora não só reflete sobre quem decide o que deve ser esquecido, como também sobre o direito à memória em contraposição às ações e políticas de apagamento do passado.
Para o jornalista e pesquisador cultural Jefferson Del Rios, cabe ao poder municipal impedir a deterioração e o esquecimento de monumentos públicos em locais inadequados. No entanto, “a lista de abandonos é enorme”, ressalta. “Numa megalópole de cracolândias e pessoas em situação de rua, o assunto pode parecer descabido. Trata-se, contudo, de educação e história. Descuido com o patrimônio cultural é atraso”, argumenta Del Rios. Neste Em Pauta, excertos do capítulo “Monumentos nômades”, do livro Memória da amnésia: políticas do esquecimento, de Giselle Beiguelman, e artigo de Jefferson Del Rios suscitam um novo olhar sobre a relação entre os monumentos e a memória da cidade de São Paulo.
Por Giselle Beiguelman
A cidade de São Paulo possui uma tradição no que diz respeito à mudança de monumentos e esculturas de lugar. Ela remonta ao seu processo de metropolização e às transformações urbanas que se deram nas primeiras décadas do século 20. Para as celebrações do primeiro Centenário da Independência (1922), uma série de novos monumentos foi encomendada, a fim de dar um novo status à capital do estado, enriquecida pela economia cafeeira e pelo primeiro surto de industrialização. Essas implantações, que um cronista da época, lembrado por Nicolau Sevcenko, chamou de “febre estatutária”, corresponderam à primeira onda de movimentação de esculturas na cidade.
Em 1922, os seguintes monumentos são implantados em São Paulo: Alfredo Maia (no largo General Osório, hoje praça João Mendes), Monumento a Olavo Bilac (na atual praça Marechal Cordeiro de Farias, desmembrado em 1936), Monumento a Carlos Gomes (na esplanada do Theatro Municipal), Giuseppe Verdi (na praça, localizado nas escadarias da Líbero Badaró) e o Monumento à Independência (que foi inaugurado, ainda inacabado, no Parque da Independência). Além dessas implantações, há que se destacar a Glória imortal aos fundadores de São Paulo (autorizado em 1922 e inaugurado em 1925, no Pátio do Colégio), as reformas do Obelisco e do Largo da Memória, e o projeto do Monumento às Bandeiras, de [Victor] Brecheret [1894-1955], concebido, inicialmente, para celebrar o Centenário da Independência.
As “pioneiras” foram três estátuas de mármore – A menina e o bezerro, Amor materno e Leão –, que ficavam na esplanada do Theatro Municipal, no Parque do Anhangabaú, no Centro de São Paulo. Elas faziam parte de um conjunto encomendado a empresas francesas pelo prefeito Raymundo Duprat (1911-1914), com o objetivo de embelezar os parques da cidade. As estátuas foram deslocadas para a implantação do Monumento a Carlos Gomes, obra do arquiteto genovês Luiz Brizzolara [1868-1937], doada pela comunidade italiana em homenagem ao Centenário da Independência.
As obras Amor materno e A menina e o bezerro rumaram para o Largo do Arouche, a 1 km do ponto original, sendo que só a primeira foi diretamente para lá. Amor materno passou antes pelo Jardim da Luz (1,6 km de distância), e não se sabe quando exatamente aterrissou em seu ponto final, o Largo do Arouche. Já a escultura Leão teve como segunda localização, em 1922, o parque Dom Pedro II, no Brás, na região Leste, a 1,7 km da sua origem, e depois, nos anos 1960, foi transportado ao Ibirapuera, na região Centro-Sul, 6 km adiante, onde se encontra até hoje.
Dos anos 1920 para cá, a movimentação nunca cessou, incluindo, além dessas esculturas decorativas, uma série de monumentos. Atualmente registram-se, de acordo com dados do Departamento do Patrimônio Histórico, 64 obras implantadas em logradouros públicos que já foram relocadas pelo menos uma vez. É bastante comum que tenham sido remanejadas pelo menos duas vezes; algumas, como João Mendes e Beijo eterno, mudaram até cinco vezes de lugar.
Via de regra, três são as motivações que explicam a mudança de monumentos de lugar em São Paulo: obras urbanas, questões orçamentárias e argumentos de cunho ideológico ou moral. A primeira delas é a mais comum. A implantação de um viaduto, o alargamento de uma avenida e a abertura de uma estação de metrô “justificam” a mudança de um monumento de lugar. A segunda também vem se tornando recorrente. A administração municipal prefere delegar aos órgãos de patrimônio o serviço de transporte de um monumento para um depósito da Secretaria Municipal de Cultura, em vez de investir parte de seu orçamento em restauração. A terceira motivação ocorre quando a população protesta pela presença de um monumento ou quando grupos políticos forçam a remoção de determinada obra. Alguns casos que marcaram a história paulistana foram o do Fauno, de Brecheret, o do Monumento a Federico García Lorca, de Flávio de Carvalho [1899-1973], e o do Beijo eterno, um dos fragmentos do Monumento a Olavo Bilac.
Pivô de uma disputa entre o prefeito [Francisco] Prestes Maia (1938-1945) e o arcebispo dom José Gaspar [1901-1943], o Fauno foi centro também de uma querela religiosa. Para sua implantação, nos jardins que eram, então, instalados atrás da Biblioteca Municipal, parte da residência episcopal foi desapropriada, além de derrubado o caramanchão onde dom José costumava rezar. A figura lasciva do Fauno naquele local foi considerada ultrajante pelas entidades religiosas, e há relatos de que sua presença passou a atrair cultos e rituais populares.
Com a designação de José Macedo Soares [1883- -1968] como interventor de São Paulo (1945-1947), sua esposa, dona Matilde, tomou as providências para a remoção da estátua, que foi transferida para o Parque Tenente Siqueira Campos, mais conhecido como Trianon, em 1946, em local escolhido pelo próprio Brecheret. No seu lugar [anterior] foi implantada uma cruz de granito, com uma inscrição que recorda que ali dom Duarte Leopoldo e Silva [1867-1938] e dom José Gaspar (que hoje dá nome à praça) rezavam o breviário.
Não menos cheia de revezes é a história do monumento a [Federico] García Lorca [1898-1936]. De autoria de Flávio de Carvalho, a obra foi implantada, em 1968, na Praça das Guianas e pouco depois banida do espaço público, durante a ditatura, por considerar-se afrontosa a homenagem a um poeta comunista (e que era também homossexual). Alvo de atentados terroristas do CCC (Comando de Caça aos Comunistas), em 1969, a obra foi colocada em um depósito da prefeitura, por ordem dos militares. Em 1971, Flávio de Carvalho restaurou-a para levá-la à Bienal de Arte de São Paulo.
Com muito custo e sem o apoio das autoridades responsáveis, o artista conseguiu colocá-la do lado de fora do prédio da Bienal, no Parque Ibirapuera, onde ficou por apenas dois dias. Na ocasião, o embaixador da Espanha reclamou da presença da “escultura do comunista”, e ela voltou ao depósito, até ser sequestrada por estudantes da ECA-USP (Escola de Comunicações e Artes) e da FAU-USP (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo), em 1979. Os estudantes restauraram a peça e a depositaram no vão livre do Masp (Museu de Arte de São Paulo) no dia em que o prefeito Olavo Setúbal [1923-2008] visitava o museu. Pietro Maria Bardi [1900-1999], então diretor do Masp, e o prefeito não aprovaram o ato, mas se viram forçados a tomar uma atitude. Dias depois, finalmente, a obra foi reimplantada na Praça das Guianas, seu local de origem.
Ao mudar de lugar, os monumentos perdem escala e, em diversos casos, sua carga simbólica, seja naquilo que representam oficialmente, ou mais cognitivamente, do ponto de vista afetivo e como referência do sujeito no espaço urbano. Alguns deles, no entanto, têm seu nomadismo interrompido abruptamente ao serem relegados a depósitos onde foram alocados, anos a fio, tornando-se verdadeiros monumentos sem-teto ou, melhor dizendo, sem-chão. (…)
Giselle Beiguelman é artista e pesquisa a preservação de arte digital, arte e ativismo na cidade em rede e as estéticas da memória no século 21. Desenvolve projetos de intervenções artísticas no espaço público e com mídias digitais, e é professora livre-docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP).
Por Jefferson Del Rios
O poder municipal pode impedir a deterioração e abandono de monumentos públicos em locais inadequados. É algo que vem de longe. Estátuas e monumentos não cumprem o papel pedagógico-histórico que poderiam ter.
Outras são homenagens oportunistas, como nomes descabidos de vias públicas e rodovias. Uma solução/sugestão é existirem alamedas de estátuas em parques – como o Ibirapuera, o Villa-Lobos e outros. A prefeitura teria certamente a assessoria do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp), do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB/SP), da Academia Paulista de Letras e de fundações com metas culturais.
Seriam visitados por estudantes – sobretudo do Ensino Fundamental – com monitores para detalhar os fatos e méritos (ou não) dos homenageados em bronze e pedra. Também poderiam estar em locais de valor histórico-simbólico, como o Museu Afro Brasil, o Largo do Paissandu, em torno da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Placas dariam um resumo dos feitos de cada pessoa representada.
A inércia burocrática e o avanço imobiliário feroz causam danos e confusão à História. Um exemplo doloroso: a atriz Ruth de Souza (1921-2019) morou na Bela Vista. Por eloquente coincidência, na rua da Abolição, que termina numa praça que deveria levar seu nome. Ocorre que essa praça se chama Craveiro Lopes, presidente-general daquele Portugal ainda colonialista dominando Angola, Moçambique, Cabo Verde e Guiné-Bissau, e que visitou o Brasil em 1957. Esqueceram a Ruth do filme Sinhá Moça (1953), um clássico biografado, recentemente, por Ygor Kassab em Ruth de Souza: a menina dos vaga-lumes – 100 anos de história (Giostri, 2022).
Sigamos. Na confluência da avenida Henrique Schaumann x rua Cardeal Arcoverde, os bustos esfumaçados da pianista Antonieta Rudge (1885–1974) e do pintor e escultor John Graz (1891-1980) olham-se em muda diagonal. Antonieta foi uma das maiores intérpretes brasileiras de Beethoven e Chopin. O polonês Arthur Rubinstein (1887-1982), gênio do piano, registrou em suas memórias sua paixão em ouvi-la interpretando esses dois compositores. Antonieta Rudge apresentou-se na Inglaterra, França e Alemanha e, ao se casar com o escritor Menotti Del Picchia (1892-1988), passou às atividades pedagógicas. Foi uma das fundadoras do Conservatório Musical de Santos (1927), onde lecionou por mais de 40 anos. Orientou José Antonio de Almeida Prado (1943-2010) e Gilberto Mendes (1922-2016), ambos da primeira linha da música brasileira de vanguarda. Seu busto deve/deveria estar no saguão do Theatro Municipal de São Paulo.
Nascido na Suíça, John Graz veio ao Brasil, onde já conhecia os irmãos pintores Antonio e Regina Gomide, com a qual se casou. Relação estreitada quando os três estudavam na Escola de Belas Artes de Genebra. Em São Paulo, foi apresentado ao escritor Oswald de Andrade (1890-1954). Expôs sete obras na Semana de Arte Moderna de 1922. Criou móveis, vitrais e decoração para casas projetadas por Gregori Warchavchik (1896-1972), ucraniano de Odessa, naturalizado brasileiro, e expoente da primeira geração de arquitetos modernistas do Brasil. O jovem Oscar Niemeyer foi desenhista em seu escritório.
Saltando no tempo. Em 1983, homenageou-se o ensaísta literário Alceu Amoroso Lima (1893-1983) com uma praça na Marginal Pinheiros. Instalou-se ali uma escultura – tubos de aço verticais com cores diferentes – de León Ferrari (1920-2013), argentino exilado no Brasil. Veio o alargamento do trecho e a obra desapareceu nos depósitos da prefeitura. Pessoalmente, durante várias administrações levantei o caso. Nada. Só em 2005, enfim, ela ressurgiu e está na Biblioteca Alceu Amoroso Lima, na avenida Henrique Schaumann.
A lista de abandonos é enorme. O mapeamento dessas obras, e a transferência para um local frequentável, resolverão uma anomalia urbana. Numa megalópole de cracolândias e pessoas em situação de rua, o assunto pode parecer descabido. Trata-se, contudo, de educação e história. Descuido com o patrimônio cultural é atraso. No principal cemitério de Lisboa, há um setor dos artistas onde estão sepultados os notáveis das artes. Em São Paulo, destruíram o Teatro Leopoldo Fróes, na praça da rua General Jardim, hoje denominada Rotary. Poderia ser Antunes Filho (1953-2019) – que criou sua obra extraordinária ao lado, no Sesc Consolação, com o Teatro Anchieta. Nela estariam esculturas dos grandes do palco. A começar por Leopoldo Fróes (1882-1932), que brilhou nos anos 1920 no Brasil e em Portugal.
Para finalizar, um depoimento do maestro Júlio Medaglia no seu programa Fim de Tarde, na Rádio Cultura FM. No início do século passado, o compositor italiano Pietro Mascagni (1863-1945), autor da célebre ópera Cavalleria Rusticana, amigo e admirador de Carlos Gomes (1836-1896), apresentou-se em São Paulo. Quis ver o busto do autor de O Guarani, no Anhangabaú. Ficou indignadíssimo. Aquele não era Carlos Gomes (1836-1896). Espanto geral. O fabricante do monumento trocara o músico pelo busto do gaúcho Pinheiro Machado (1851- 1915), um dos donos do poder nas oligarquias da chamada República Velha. Foi preciso um italiano para descobrir o paulista Carlos Gomes, nascido em Campinas (SP).
Jefferson Del Rios Vieira Neves é jornalista, crítico de teatro e pesquisador cultural independente. Autor de Bananas ao vento – Meia década de cultura e política em São Paulo (Senac, 2017); O teatro de Victor Garcia – A vida sempre em jogo (2012); e Teatro, Literatura, Pessoas (2020), ambos lançados pelas Edições Sesc São Paulo.
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