Na nova geração da música brasileira, as mulheres ocupam lugar de destaque como compositoras.
Fernando Lima é animador cultural no Sesc São Paulo e faz a curadoria musical da unidade Avenida Paulista. Formado em Letras pela FFLCH-USP, trabalha com produção musical desde 2007, passando pela Orquestra Sinfônica da USP e pela EMESP Tom Jobim (Escola de Música do Estado de São Paulo). Entre seus trabalhos mais recentes no Sesc, foi co-curador do projeto “Lira Paulistana: 30 anos. E depois?” e do projeto “Contaminações”. Mantém o blog de música UltraSom
Uma voz feminina irrompe as caixas de som — ou fones de ouvido, ou falantes de celular, ou de rádio de pilha. Ela é doce ou cortante, límpida ou dramática, potente ou contida, mas definidamente arrebatadora. A primeira pergunta esperada seria “quem é a cantora?”, logo em seguida, “e o compositor, quem é?”. E um nome masculino confirmaria o gênero contido na pergunta. Essa cena foi válida para quase toda a história musical brasileira.
Mas os tempos são outros. As palavras que as cantoras interpretam nas canções já são escritas por elas mesmas. Pipocam mulheres compositoras, trazendo o seu ponto de vista acerca do mundo. Na nova geração da música brasileira, elas ocupam lugar de destaque como compositoras e marcam seu espaço com personalidade e coragem. E isso é uma novidade muito bem vinda, ainda que tardia.
“Elas entram na audição se sentindo reprovadas.”
Sabemos que a música nunca está descolada da realidade social. Todo o machismo contido em nosso modo de viver é facilmente notado se analisado na história da música, seja erudita ou popular. Quando olhamos para o corpo de qualquer orquestra, big band, grupo instrumental, banda de rock ou MPB, é fácil perceber na proporção entre gêneros que estamos longe de uma situação igualitária. O número de integrantes por gênero, em três das principais orquestras do estado de São Paulo falam por si só. Na menos desigual, a OSESP (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo), são 33 mulheres para 78 homens. Na OSUSP (Orquestra Sinfônica da USP) são 10 mulheres para 29 homens e na Orquestra Sinfônica Municipal a diferença é de 25 para 79. É interessante verificar que em alguns naipes, como o de instrumentos de metal (trompete, trombone, trompa e tuba), é muito comum não encontrarmos uma única mulher.
Helena Piccazio, violinista da Orquestra Sinfônica Municipal vê na música de concerto, em comparação à música popular, um tratamento mais equilibrado, pelo menos quando falamos das orquestras profissionais. Ela acredita que essa discrepância se deve ao fato das meninas serem menos encorajadas a seguir a carreira musical. “Elas entram na audição se sentindo reprovadas”, conta a musicista que já participou de inúmeras bancas para ingresso em escolas de música e orquestras jovens.
Na música popular, nos acostumamos a ver uma bela cantora — a diva — acompanhada de grandes músicos. Ela não é tida como musicista, só empresta sua beleza — e uma voz que não comprometa — à capacidade técnica de compositores, arranjadores e instrumentistas homens, responsáveis pela busca da sonoridade perfeita. Chiquinha Gonzaga, no final do século XIX, foi a pioneira na luta por igualdade na música brasileira. Com um comportamento revolucionário que lhe rendeu muita encrenca, criou peças que entraram para o imaginário da nossa cultura. No decorrer do século XX, mulheres como Dolores Duran, Rita Lee, Marina Lima, Simone, Angela Ro Ro, Maysa e Ivone Lara, são exceções e desbravadoras nesse território.
Ivone Lara precisava usar nomes masculinos ao assinar suas composições no começo de carreira para ter suas músicas aceitas, segundo a cantora, compositora e pesquisadora do samba Anná. Ela explica que a origem do samba está intimamente ligada a figura feminina. Tia Ciata, ao trazer o ritmo da Bahia ao Rio, era a organizadora e guardiã, com outras mulheres, de seus redutos. Ao ser apropriado pela indústria fonográfica e sua lógica capitalista, os padrões sociais passam a atuar nesse ambiente e o protagonismo nele passa a ser masculino. À mulher resta o coro, respondendo ao canto do malandro.
Pois é, minha irmã, meu irmão. Sobre todo esse cenário, a movimentação mais interessante na música nos últimos anos está justamente na conquista de território que as mulheres estão impondo. E elas vem como uma avalanche, em um avanço sem arrego.
O espaço da composição — particularmente na música popular — é cada dia mais o espaço da compositora. Grandes cantoras-instrumentistas-compositoras irrompem a cena musical e fazem-se notar. Nomes já consagrados, que abriram essa picada mais recentemente, como Zélia Duncan, Adriana Calcanhoto, Céu, Mariana Aydar, Alzira E, Fernanda Takai, Anelis Assumpção, Mercenárias, são fundamentais nessa trilha.
As musicistas incríveis que agitam o atual cenário emergente da música pop brasileira atendem pelos nomes de Luedji Luna, Aíla, Anná, Bruna Mendez, Larissa Luz, Luiza Lian, Lívia Mattos, Letícia Novaes (Letrux), Ava Rocha, Tulipa Ruiz, Marcelle Equivocada, Malli, Tiê, Lurdez da Luz, Alessandra Leão, Josyara, Rhaissa Bittar, Maíra Freitas, Flora Matos, Marina Pittier, além da moçambicana Lenna Bahule, que consolida sua carreira no Brasil conquistando ouvidos com uma voz incrível e sonoridade única. E tantas outras que passaria o dia digitando — e atrapalharia sua jornada de descoberta dos nomes não citados ou sua crítica ao autor que não colocou aquela artista que você adora.
Em todos os estilos musicais e com as mais diferentes abordagens, elas dão as cartas. Além disso, controlam com maior frequência todo o processo de produção de seus trabalhos, tanto no espectro conceitual do som, como nas decisões mercadológicas.
O ponto de vista trazido por elas em letras, texturas e sonoridades — até pouco tempo reprimido — nos apresenta possibilidades infinitas. Por mais que homens — como o quase incontestável Chico Buarque — tenham escrito com eu lírico feminino, é evidente a falta que as vozes elaboradas por mulheres fizeram até hoje.
Isso fica muito claro quando ouvimos sons como Carta à boa forma, de Anná, que fala sobre a aceitação do próprio corpo, ou Corselet, de Maira Freitas, e sua forma hilária de contar a relação de uma mulher com uma peça de roupa comprada e o fetiche do namorado em usar essa peça. Ou ainda o lirismo na canção de reconhecimento e pertencimento de Luedji Luna em Um Corpo no Mundo. Sem contar as formas de combate direto que estão muito presentes no trabalho das minas do rap, como Cris SNJ, Flora Matos, Preta Rara e Rimas e Melodias ou no punk de Charlotte Matou um Cara.
Enfim, é todo um universo novo e deliciosamente interessante que passa a fazer parte do cancioneiro popular. Olha a quantidade de temas e histórias maravilhosas que estávamos deixando de ouvir.
E ainda temos grupos muito interessantes como Pitaias (samba), Jazzmins (big band), Dedo de Moça (choro), Rakta (rock), Obinrin Trio (pop), fortalecendo e dando representatividade a essa movimentação.
2018 foi um ano especialmente prolífico para as mulheres na música pop. Luiza Lian levou o Prêmio APCA de melhor álbum do ano, com o autoral Azul Moderno. Elza Soares lançou o arrebatador Deus é mulher, onde ela aprofunda a experimentação iniciada em A mulher do fim do mundo. A Quartabê, banda instrumental majoritariamente feminina, lançou seu terceiro álbum, Lição #2: Dorival, com releituras extremamente autorais e perturbadoras de mestre Caymmi. Taurina, de Anelis Assumpção, também não decepciona. E Ana Frango Elétrico se apresenta com o absurdo e hipnótico Mormaço Queima. E ainda teve Mansa Fúria, da Josyara, Maria Beraldo com Cavala, Pra Curar, de Tuyo, e muita coisa que devo estar esquecendo agora.
Que esse fenômeno cresça ainda mais e extrapole o espectro musical. Afinal, a canção popular e a música sempre teve papel fundamental nas revoluções comportamentais. Assim seja!
É disso que estou falando:
Utilizamos cookies essenciais para personalizar e aprimorar sua experiência neste site. Ao continuar navegando você concorda com estas condições, detalhadas na nossa Política de Cookies de acordo com a nossa Política de Privacidade.