As Mulheres em 50 anos de Festival

07/04/2024

Compartilhe:

por Karina Almeida

Em 1974, o Sesc realizou a primeira edição do Festival Melhores Filmes, uma iniciativa pioneira com o objetivo de oferecer ao público uma segunda chance de assistir aos principais lançamentos brasileiros e internacionais produzidos no ano anterior. Em pleno regime militar e em um contexto de cerceamento das liberdades e expressões culturais, a instituição reconheceu a importância de resgatar e valorizar filmes que, por diversos motivos, tiveram uma passagem efêmera pelas salas de exibição.

Cinquenta anos depois, com os conteúdos acessíveis à palma da mão, é um desafio compreender o impacto da iniciativa e o quanto ela reflete uma profunda compreensão, por parte do Sesc, sobre a dinâmica do consumo cultural e a volatilidade dos circuitos comerciais de cinema.

A missão inicial do festival não apenas se preservou, como se tornou ainda mais relevante dentro de um cenário saturado, em que a curadoria do conteúdo se impõe. Dessa forma, o Festival Sesc Melhores Filmes emerge como um espaço vital para a reavaliação e o reconhecimento de títulos que merecem ser vistos e, principalmente, discutidos, oferecendo uma plataforma para que obras encontrem seu público e seu lugar na história do cinema brasileiro.

Ao longo de meio século, o festival se tornou uma vitrine que apresenta as tendências, desafios e evoluções no cenário cinematográfico internacional e nacional. Um catálogo em que podemos observar, como afirma o teórico francês Jacques Aumont, o cinema como dispositivo com capacidade única de revelar aspectos da condição humana e da estrutura social, ao mesmo tempo em que participa ativamente na modelagem dessas realidades por meio do poder das imagens e das histórias que escolhe contar.

No contexto brasileiro, é possível observar as alterações das posições de diversos grupos sociais, tanto no que diz respeito a suas representações, como nas posições que ocupam no fazer cinematográfico. É o caso das cineastas brasileiras, interesse específico deste artigo que analisou as vencedoras na categoria melhor filme e melhor direção nas categorias público e crítica. 

Crédito: Acervo Sesc Memórias

Anos 80 e as pioneiras Tizuka Yamazaki e Suzana Amaral

Em 1980, o Sesc Melhores Filmes passou por uma mudança importante ao estender a votação para o público. Antes, só os críticos tinham o privilégio de eleger os principais lançamentos de cada ano. Essa alteração democratizou a escolha dos premiados e ampliou o espectro de filmes considerados, permitindo uma maior diversidade de gêneros cinematográficos e estilos.

Cinco anos depois, em 1985, a cineasta Tizuka Yamazaki se tornou a primeira mulher premiada do evento, ao ser contemplada nas categorias melhor filme nacional e melhor direção, pela escolha do público, com o longa “Patriamada” (1984). A vitória de Tizuka abriu caminho para que outras mulheres cineastas ganhassem visibilidade e reconhecimento em um campo até então dominado por homens. 

Crédito: Livro “Tizuka Yamasaki – A Vida Invade o Cinema”, de Inimá Simões

Já no ano seguinte, Suzana Amaral repetiu o feito de Tizuka e foi escolhida pelo público como a melhor diretora pelo seu longa de estreia, “A Hora da Estrela” (1985). No entanto, Suzana foi a primeira a conquistar também a crítica do festival do Sesc, levando o prêmio de direção e de melhor filme nacional. 

Adaptação da obra de Clarice Lispector, o filme de Suzana Amaral teve prolífica carreira pelos festivais internacionais e nacionais, com destaque para os três prêmios no Festival de Berlim, incluindo o Urso de Prata de melhor atriz para Marcélia Cartaxo, e seis troféus no Festival de Brasília, incluindo os de melhor filme e direção para Amaral. 

Marcélia Cartaxo como Macabéa em “A Hora da Estrela”, de Suzana Amaral / Crédito: Divulgação

Logo após a performance no prestigiado festival alemão, surgiram referências a Suzana como “a dona de casa que virou cineasta”. Sobre isso, 30 anos depois, em 2016, ela comentou para a revista estudantil Arruaça, publicação da Universidade Cásper Líbero: “Do jeito que falavam, parecia que eu estava posta em sossego na minha cozinha quando, de repente, tive uma ideia e fiz um filme. Não era assim. Quando eu fiz ‘A Hora da Estrela’, eu já tinha feito a ECA e voltei a estudar nos Estados Unidos. Eu fui pra lá em 1975 e voltei em 1979. Só fiz o filme em 1985. Então foi bem distante. Mas essas coisas não me incomodam, não. Me incomoda é não ter dinheiro pra fazer um filme atrás do outro”.

Apesar dos triunfos sequenciais em 1985 e 1986, os anos seguintes se mostrariam difíceis para a visibilidade do cinema nacional de modo geral, e para as diretoras mulheres em particular.

Os difíceis anos 90

A década de 1990 começou com desafios para o cinema brasileiro. A crise deflagrada durante o governo de Fernando Collor de Mello, que extinguiu a Embrafilme e o Conselho Nacional de Cinema, instrumentos fundamentais para o financiamento, fomento e regulação do cinema no país, provocou uma drástica redução na produção nacional. A jornalista Ana Paula Sousa (2022, p.42) pontua no livro “O Cinema que Não Se Vê”: “A demolição da estrutura governamental e a extinção dos instrumentos de regulação fizeram com que os dois primeiros anos da década de 1990 fossem catastróficos. Em 1992 e 1993, foram lançados, respectivamente, dois e quatro longas-metragens”. 

Como reflexo, o Festival Sesc Melhores Filmes não recebeu filmes nacionais para votação em 1992 e 1993.

Durante o governo de Itamar Franco (1992-1995), que assumiu após a renúncia de Collor, algumas iniciativas para a retomada do setor foram elaboradas, como a criação da Secretaria para o Desenvolvimento do Audiovisual. As produções foram, aos poucos, reiniciadas, num período que ficou conhecido como a retomada do cinema brasileiro. 

Fernanda Torres e Fernando Alves Pinto se abraçam em cena de “Terra Estrangeira”, de Daniela Thomas e Walter Salles / Crédito: Divulgação

E em 1995, quase uma década depois das primeiras premiadas, o festival voltou a premiar mulheres. Foi com o longa “Terra Estrangeira” (1995), codirigido por Daniela Thomas e Walter Salles, que dividiram o prêmio de melhor filme nacional tanto para o público quanto para a crítica.

Para completar, o público elegeu no mesmo ano Carla Camurati como a melhor diretora, por “Carlota Joaquina, a Princesa do Brasil” (1995) — o filme estrelado por Marieta Severo levou 1,2 milhão de pessoas às salas de cinema e se estabeleceu como principal símbolo da retomada.

Anos 2000 e 2010

O novo milênio começou com ares promissores para a produção nacional, em grande parte, devido à implementação de políticas de incentivo, com a criação da Ancine e do Fundo Setorial do Audiovisual, que proporcionaram mecanismos de financiamento essenciais para a produção cinematográfica e para a sua internacionalização. 

Sousa (2002, p. 73) aponta que “o início dos anos 2000 marca o início da convergência digital, que, graças à capacidade cada vez maior da internet, alteraria as formas de produção, distribuição e fruição audiovisual”.

Neste período, “Cidade de Deus” (2002), de Fernando Meirelles, com codireção de Kátia Lund, não só conquistou o público nacional como foi aclamado pela crítica estrangeira. Este período foi importante para a consolidação de agentes do ecossistema do audiovisual brasileiro, ampliando, ainda que tímidamente, as possibilidades para as mulheres na direção.

“Cidade de Deus”, de Fernando Meirelles e Katia Lund / Crédito: Divulgação

No mesmo 2002, “Cidade de Deus” fez barba e cabelo, com os prêmios de melhor filme e melhor direção (com Meirelles e Lund) para crítica e público. Vale lembrar que, em 2004, o longa brasileiro chegou a ser indicado para o Oscar de melhor direção, mas sem a nomeação da codiretora.

Ainda em 2004, Eliane Caffé, por “Narradores de Javé” (2003), dividiu o prêmio de melhor direção, segundo a crítica, com Roberto Moreira, por “Contra Todos” (2004).

Mais cinco anos até surgir outro nome de mulher na premiação, novamente com Daniela Thomas repetindo a dupla de diretores com Walter Salles. Eles foram lembrados pela crítica como melhor filme e diretores por “Linha de Passe”.

No ano seguinte, “É Proibido Fumar” foi o melhor filme para críticos e público. Os espectadores também elegeram sua diretora, Anna Muylaert, como destaque da categoria.

Essa década também marcou o início do primeiro governo Lula (2003-2010), a chegada de Gilberto Gil ao Ministério da Cultura e uma mudança de paradigma nas políticas culturais, que propunha uma nova definição para o que era cultura, enfatizando seu caráter de produção popular.

As ações ali iniciadas reverberaram no mercado audiovisual brasileiro e no aumento do número de produções. “Ao longo da década que antecedeu a criação da Ancine, foram produzidos no Brasil pouco mais de 100 longas-metragens. Apenas em 2016, ano que se completaram 15 anos da criação da agência, foram 144 produções”. (Sousa, p.196). 

Cineasta Cecília Amado, neta de Jorge Amado, recebe em 2012 o prêmio de Melhor Filme Nacional pelo público / Crédito: Alf Ribeiro

O Festival Sesc Melhores Filmes premiou na segunda década do século 21, entre 2011 e 2020, “Capitães de Areia” (2012), de Cecília Amado, como melhor filme do público. Anna Muylaert voltou a ser aclamada pelo festival com os prêmios de melhor direção e melhor filme pelo público e pela crítica com “Que Horas Ela Volta?” (2015), título protagonizado por Regina Casé que também foi lembrado em importantes festivais internacionais, como Berlim e Sundance.

Regina Casé e Camila Márdila em cena de “Que Horas Ela Volta?”, de Anna Muylaert / Crédito: Divulgação

Em 2018, as mulheres apareceram em dose dupla: o singelo “Como Nossos Pais” (2017), de Laís Bodanzky, com Maria Ribeiro, foi escolhido pelo público como o melhor filme pela crítica. Já para a direção, o júri especializado escolheu Eliane Caffé, que recebeu seu prêmio por “Era o Hotel Cambridge”.

Documentários

O ano de 2011 trouxe outra novidade no festival. Foi quando o evento passou a contemplar também os melhores documentários nacionais, o que ampliou significativamente o número de mulheres premiadas.

Assim, entre 2011 e 2023 o público escolheu: “Elena” (2011), de Petra Costa, “Arpilleras” (2018), de Adriana Caen, “O Processo” (2019), de Maria Ramos (este fez o bis com a crítica), e “Clarice Lispector – A Descoberta do Mundo” (2023), de Taciana Oliveira. Já a crítica premiou: “A Música Segundo Tom Jobim” (2013), de Dora Jobim (e Nelson Pereira dos Santos), “Martírio” (2018), de Tatiana Almeida (dirigido com Ernesto de Carvalho e Vincent Carelli), e “Babenco” (2019), de Bárbara Paz.

Cineasta Taciana Oliveira recebe o prêmio de Melhor Documentário segundo o voto do público / Crédito: Alf Ribeiro

Como estamos

Comparado ao início de pouca participação, o aumento do número de filmes dirigidos por mulheres na última década do Melhores Filmes reflete o progresso da presença feminina no fazer cinematográfico brasileiro, ainda que gradual. 

O levantamento “Cinema Brasileiro: Raça e Gênero nos Filmes de Grande Público (1995-2022)”, realizado pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (Gemaa), destacou a ausência de mulheres na direção de filmes de grande público em 2022, perpetuando uma disparidade histórica. 

O estudo analisou as tendências de raça e de gênero entre 1995 e 2022, com base em dados do Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual (OCA) e da Agência Nacional do Cinema (Ancine), focando especialmente nos filmes de ficção mais populares. 

A ausência total de mulheres, especialmente mulheres negras, na direção de filmes de grande público em 2022 não é um incidente isolado, mas parte de uma tendência persistente que remonta a décadas passadas —o que torna o feito de Carla Camurati com sua “Carlota Joaquina” tão raro quanto água no deserto. Este padrão reflete barreiras estruturais que impedem mulheres de ascender a posições de poder dentro da indústria cinematográfica. 

Espaços como o Sesc Melhores Filmes, que dão visibilidade em sua programação para produções diversas, que nem sempre encontram lugar no cinema comercial, são essenciais para reverberar, como aponta Ferreira e Sousa (2017, p. 180), “A produção de um cinema negro no feminino (…) um território fecundo, onde mulheres negras transformam seus filmes em narrativas de identidades e memória (…)”.   

Iniciativas como a do Sesc desempenham um papel crucial na promoção dessa visibilidade, oferecendo uma plataforma para que os trabalhos dirigidos por mulheres sejam apreciados, debatidos e reconhecidos. 

A trajetória do Festival Sesc Melhores Filmes espelha as mudanças sociais, políticas e culturais pelas quais o Brasil passou nas últimas décadas. Ao mesmo tempo, destaca o papel indispensável do cinema na exploração de questões sociais relevantes e na promoção da diversidade e da inclusão. 

Através da lente da história do festival, podemos vislumbrar um panorama mais amplo da evolução do cinema brasileiro e da crescente importância da representação feminina, tanto diante quanto por trás das câmeras. A jornada das mulheres no cinema é uma história de talento e luta que merece ser celebrada e continuada.

Desde Tizuka Yamazaki e Suzana Amaral, as conquistas das mulheres nos 50 anos do festival, ainda que espaçadas, foram essenciais para incentivar a participação das gerações futuras. Esperamos que o próximo meio século seja mais fértil para mulheres e outros grupos sub-representados encontrarem espaço e reconhecimento em uma indústria historicamente dominada por vozes masculinas. 

Bibliografia:

AUMONT, Jacques; A imagem. Campinas, Papirus, 2002. 

CANDIDO, Marcia R; CAMPOS, Luiz Augusto. Cinema Brasileiro: Raça e gênero nos filmes de grande público, 2023. Disponível em < https://gemaa.iesp.uerj.br/infografico/cinema-brasileiro-raca-e-genero-nos-filmes-de-grande-publico/> . Acessado em março de 2024. 

HOLANDA, Karla; TEDESCO, Marina C. Feminino e plural: mulheres no cinema brasileiro. Campinas: Papirus, 2017.

SOUSA, ANA PAULA. O cinema que não se vê: a guerra política por trás da produção de filmes brasileiros no século XXI. Belo Horizonte: Fino Traço, 2022.

Utilizamos cookies essenciais para personalizar e aprimorar sua experiência neste site. Ao continuar navegando você concorda com estas condições, detalhadas na nossa Política de Cookies de acordo com a nossa Política de Privacidade.