Silvia Federici reflete sobre a caça às bruxas contemporânea e o papel da nova geração como agente de transformações
Por Maria Júlia Lledó
Fotos Adriana Vichi
Leia a edição de MARÇO/24 da Revista E na íntegra
Em 2024, completam-se duas décadas do lançamento de Calibã e a bruxa, considerada obra-prima da filósofa italiana Silvia Federici, professora emérita da Universidade de Hofstra, em Nova York, Estados Unidos. Sua atualidade e popularidade atravessa gerações, uma vez que o livro coloca em debate duas questões históricas: por que milhares de mulheres foram condenadas à fogueira por “bruxaria” no começo da Era Moderna, e por que o nascimento do capitalismo coincide com o que a autora chama de “guerra contra as mulheres”?
“O livro traça uma perspectiva expandida de interpretação e de análise da história da mulher no capitalismo. Temos uma história de exploração do trabalho e dos trabalhadores, que eram maltratados, todavia, não há uma história da mulher e do processo de exploração do trabalho de reprodução. Então, eu acho que este livro é um dos primeiros a mostrar um quadro amplo desta história”, disse a autora em entrevista à Revista E, após debate no Sesc Avenida Paulista, em dezembro do ano passado. Na ocasião, Federici lançou seu mais recente livro, Além da pele: repensar, refazer e reivindicar o corpo no capitalismo contemporâneo (Elefante, 2023), uma compilação de artigos da autora.
Além da análise histórica em Calibã e a bruxa, Federici alerta para uma caça às bruxas na contemporaneidade, principalmente de lideranças femininas no campo e nas cidades. Cofundadora do Coletivo Feminista Internacional, nos anos 1960, e participante ativa da Wages for Housework Campaign (Campanha pelo salário para o trabalho doméstico) na década seguinte, nos Estados Unidos, a filósofa acredita, aos 81 anos, que as novas gerações não podem baixar a guarda e devem encabeçar lutas por uma sociedade equânime e justa.
“Nossas formas de organização devem estimular nosso desejo, nos nutrir, estimular nossa afetividade e solidariedade a fim de começarmos a mudar a vida do dia a dia – romper o individualismo, nos juntar, compartilhar conhecimento e projetos comuns. Não enfrentar a crise sozinha, mas com outros. Eu acho que tudo isso pode começar hoje mesmo, e muitos já o estão fazendo”, observa. Nesta Entrevista, Silvia Federici fala sobre as bruxas do século 16 aos dias de hoje, comenta o papel da arte como agente de mudanças sociais e reflete sobre o que é uma militância alegre.
Vinte anos após a publicação da primeira edição de Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva, esta obra segue presente em debates nos campos da sociologia, filosofia e economia, entre outros. Na sua opinião, quais motivos levaram à popularidade deste livro entre diferentes gerações de leitoras e leitores?
Eu creio que há várias razões. Uma razão fundamental é que o livro traça uma perspectiva expandida de interpretação e de análise da história da mulher no capitalismo. Temos uma história de exploração do trabalho e dos trabalhadores, que eram maltratados, todavia, não há uma história da mulher e do processo de exploração do trabalho de reprodução. Então, eu acho que este livro é um dos primeiros a mostrar um quadro amplo desta história. Ao fazer isso, ele conecta a exploração das mulheres com toda a exploração, por exemplo, dos camponeses, com o colonialismo, com a escravização. Isso nos permite colocar a questão de gênero, e a questão de uma discriminação específica que as mulheres sofreram na história do capitalismo, num contexto mais amplo. E, como eu sempre destaco, não se trata de agregar um capítulo ao que já foi escrito por Karl Marx [filósofo alemão cujos trabalhos influenciaram diversas áreas do saber, como a sociologia e a economia (1818-1883)]. Mas, mudar a ótica. Por exemplo, de fato, na história do capital que Marx escreveu [O capital (1867)] não há menção à caça de bruxas, não há uma análise da transformação do processo de reprodução. Então, é uma história de desenvolvimento do trabalhador salarial, é uma história que olha para a criação da fábrica. Por isso, eu creio que essa seja uma das razões para [esse livro] ser importante. Compreendo que hoje somos testemunhas do processo de expansão da relação capitalista que se reproduz em contextos diferentes e que ainda evoca os processos de acumulação original. Essa é outra razão pela qual o livro é muito atual. E lembro que ele foi escrito no ano em que imperava uma filosofia pós-moderna, que celebrava a micro história, algo que eu rechacei e creio que, para mim, isso foi crucial.
No livro, você também mostra como o conhecimento que essas mulheres detinham, tanto sobre o próprio corpo quanto sobre ervas medicinais e outros saberes, motivou perseguição e extermínio delas nos séculos 16, 17 e ainda hoje. Por quê?
Esse livro permite compreender quais são as raízes históricas da forma específica de exploração, e da forma específica de luta das mulheres na história do capitalismo. Nos dá uma análise de porque e como se diferencia a exploração das mulheres da exploração, por exemplo, do trabalhador industrial, assalariado, e isso segue sendo fundamental para compreender também o que necessitamos mudar. Por exemplo, toda a análise da caça às bruxas, a análise da forma como o capitalismo penalizou de maneira atroz, com fogueiras, toda a luta das mulheres para controlarem o corpo, para não serem obrigadas a parir, essa apropriação capitalista do corpo, tudo isso abriu um terreno diferente de luta, e mudou nossa visão sobre o capitalismo, sobre como ele se impõe e se desenvolve, como ele acumula sua riqueza. E, por fim – se é que podemos falar em um fim –, neste ano [2023] fomos testemunhas de uma nova caça às bruxas, o que me parece ser muito importante. Uma caça que se expande em muitas partes do mundo, África, Índia, parte da Ásia, na Oceania, como em Papua-Nova Guiné, e está conectada ao processo de expansão e da relação capitalista, como a privatização e comercialização da terra. Hoje se expande, também, pela América Latina. No Brasil, por exemplo, a liderança Guarani Sebastiana Gauto, assassinada queimada com seu companheiro Rufino Velasque [ambos rezadores Guarani e Kaiowá, mortos em setembro de 2023, na aldeia Guassuty, em Mato Grosso do Sul]. O extrativismo acompanhado, lado a lado, da chegada de seitas religiosas que são cúmplices da expropriação [de povos indígenas] e cúmplices da acusação de “bruxaria”, sobretudo contra mulheres na comunidade, acusadas de todos os males e mortes. Quando as pessoas adoecem, logo dizem: “São essas bruxas”.
Atualmente, essa caça às bruxas se volta também para quais outros segmentos da população?
Há todo um mundo de mulheres dissidentes que hoje são acusadas de ser “bruxas”. Quando uma mulher luta e rompe com uma norma imposta sempre a acusam de bruxaria. É por isso que muitas vezes dizemos: “Quando lutamos, nos dizem que somos bruxas”. A caça às bruxas e a imagem da bruxa, de uma mulher má, demonizada. É uma imagem que não tem fim e que nunca desapareceu. Por isso, junto a mulheres da Espanha e de outros países, realizamos um projeto de recuperação da memória das bruxas dos séculos 16 e 17, chegando aos arquivos e conectando esse material a todas as formas de feminicídio que acontecem hoje. Não somente pelo uso da violência física contra a mulher, mas da violência financeira e da violência da expropriação. E não se pode falar de violência física sem falar que ela é parte integrante e de apoio da violência econômica e da violência política.
Neste último livro, Além da pele (Elefante, 2023), você também fala sobre como o capitalismo se apropria da luta feminista sob alegação de que hoje, enfim, as mulheres recuperaram o controle de seus corpos. Como você avalia essa afirmação?
Essa é uma ilusão. A primeira coisa é que há um mundo governado por uma lógica de exploração, de criação de escassez, de guerra, de militarização. Neste mundo, nunca podemos dormir e pensar: “Agora, somos exitosas”. Veja o que aconteceu com o aborto nos Estados Unidos. O direito ao aborto parecia intocável há alguns anos, mas depois de todo um investimento no movimento pró-vida, em muitos estados do país, o aborto foi criminalizado. Então, sempre devemos seguir lutando, porque o capital nunca deixa de se apropriar seletivamente da ideologia feminista. Mesmo com a aparência de compreender, como vemos nos Democratas [partido político dos EUA], que não são trumpistas, que não parecem misóginos e que, mesmo assim, fizeram nada para fortalecer os direitos conquistados pelas lutas das mulheres. Por isso, acredito que hoje o movimento feminista não pode pensar em depositar esperanças nas instituições. Claro que devemos negociar e também lutar, mas o objetivo final deve ser a criação de uma sociedade completamente diferente, a partir do presente. Nunca pensar que está garantido aquilo que já foi conquistado.
Uma frase recorrente nos seus seminários aborda a importância de conhecermos uma História no plural, para saber de onde viemos e para onde queremos ir.
Não podemos compreender o que vivemos hoje, as experiências de hoje e aquilo que somos se não conhecermos a História. Claro que a História é um terreno de combate. Não há uma [única] História. Há uma história capitalista, colonial, racista e há histórias que tentamos recuperar, descobrir e resgatar. Por isso que o trabalho histórico é tão importante. Porque, se não conhecemos a história, podemos pensar que a exploração [do ser humano] é uma coisa natural. Assim como houve a naturalização do racismo. Não saber de onde vêm tais ideias faz com que elas pareçam naturais. Então, conhecer a História é fundamental. Por isso esse projeto que estou fazendo, de recuperar a história das bruxas desde lá atrás, criando grupos que vão visitar os arquivos e compreender quem eram aquelas mulheres, por que foram torturadas e queimadas e, assim, conectar a história delas à nossa história. Qual foi o impacto da caça às bruxas naquele tempo e hoje? Qual a diferença entre a caça às bruxas dos séculos 16 e 17 e a caça às bruxas que acontece hoje? Já levamos três anos fazendo essa pesquisa que se mostrou muito impactante, nos revelando outra perspectiva. E já começamos toda uma produção de material para as escolas, para jovens que muitas vezes escutam essa ideia da bruxaria como se fosse uma lenda.
Aliás, essa “lenda”, ainda é reforçada por produções audiovisuais e animações internacionais, além de ter se tornado uma data festiva, caso do Dia das Bruxas, celebrado em diversos países como os Estados Unidos. Por que essa concepção permanece?
A caça às bruxas é a perseguição histórica mais esquecida e deturpada. Tanto que transformaram a bruxa numa caricatura, num personagem grotesco e ridículo. É um absurdo. Não se pode pensar em outro tipo de perseguição onde as vítimas tenham sido tão ridicularizadas quanto na perseguição às bruxas. Transformaram em lugares turísticos cidades onde mulheres foram queimadas durante a caça às bruxas, onde vendem-se bonecas de bruxas, que reproduzem essa imagem misógina e perversa. É um escândalo que essas pobres mulheres, depois de muitas torturas, foram queimadas vivas. Milhares passaram por isso. Então, você vai a esses lugares e pensa: “Que ódio é esse contra as mulheres?”. Nos livros, dizem que as mulheres são mais suscetíveis a ser seduzidas pelo demônio porque não são seres totalmente humanos, são criaturas instintivas, passionais. Assim, criou-se uma lenda, e ao final de outubro, nos EUA há a festa das bruxas, as crianças se vestem de bruxas e não se dão conta – ninguém lhes contou essa história.
Quando as pessoas me aplaudem eu digo que há mil coisas que eu disse que aprendi com outras mulheres, não são coisas somente da minha cabeça
Foto: Adriana Vichi
Hoje na literatura, nas artes visuais, no cinema, no teatro, na música e em outras expressões artísticas, você observa uma reflexão maior sobre personagens e histórias que sofreram tentativas de apagamento em séculos passados?
Sim. É como a história: hoje, a arte é um terreno de luta. Aliás, a arte e a cultura. Como resposta a esse crescente interesse pelos movimentos feministas, pela caça às bruxas do passado e do presente, há hoje um conhecimento, e acho que o livro Calibã e a Bruxa contribuiu. A caça às bruxas não foi como se contava há 50 anos com toda uma reprodução de filmes horrendos que mostravam a bruxa como uma figura má e satânica, que uma vez mais reproduzia o ódio às mulheres, àquelas que estão sempre tramando destruir a vida dos outros. Me dá muito otimismo o fato de haver toda uma geração de artistas jovens que estão lutando por uma concepção muito diferente da arte, que estão recuperando uma visão popular da arte, como algo que não é para um museu nem para um pequeno mundo de privilegiados, mas algo que deve ser parte de qualquer momento da nossa vida. Temos necessidade de arte assim como temos necessidade do verde, das árvores, do azul do céu, do sol. A arte é a beleza. E as mulheres sabem disso. Em qualquer casa, por mais humilde que seja, a mulher tenta colocar a arte com seu bordado, com suas plantas etc. Espero que cada vez mais, hoje, se entenda uma arte fora da galeria. Arte não é só uma expressão individual, mas coletiva. Vejo isso em São Paulo – acho que é a cidade mais artística do mundo. Nova York tem muitos murais, mas os murais de São Paulo são os mais criativos e expressivos ao contar a história do povo.
Desde os anos 1960, você faz parte do movimento feminista e pode observar novas gerações a participar também das causas feministas. No entanto, hoje vemos adolescentes e jovens falar que perderam o otimismo, que não acreditam ser capazes de fazer alguma mudança. O que você diria para essas jovens?
Podemos dizer que o pessimismo é um luxo. Quando você vê nas ruas todas as crianças que nascem no mundo, o que vamos dizer? Que o mundo não vale a pena? Que o mundo é injusto? Não. Devemos lutar. A primeira derrota é a luta que não se trava. Tanto que falo de uma “militância alegre”. Não podemos pensar numa mudança que se coloca exclusivamente no futuro e nos condenar a pensar que nossa vida vai ser miséria, miséria, miséria. Não. Vai ser de luta e também de alegria. Como podemos viver num mundo onde há tanta miséria nos separando? Como nos tornamos cegos ao que acontece à nossa volta, e pensamos que isso não nos diz respeito? Então, mudar o mundo é o trabalho mais criativo e produtivo que podemos realizar. Mas, a luta necessita também formas de reprodução. Não podemos reproduzir lutas se não temos energia, comida, desejo, afetividade. Então, nossas formas de organização devem estimular nosso desejo, nos nutrir, estimular nossa afetividade e solidariedade a fim de começarmos a mudar a vida do dia a dia – romper o individualismo, nos juntar, compartilhar conhecimento e projetos comuns. Não enfrentar a crise sozinha, mas com outros. Eu acho que tudo isso pode começar hoje mesmo, e muitos já o estão fazendo. Isso é reproduzir a luta. A luta não deve ser somente um sofrimento ou outra carga de trabalho. Deve ser algo que inclui afetividade, alegria, cantar, comer, dançar e, também, escrever histórias, compartilhar estudos e formação política. Eu acredito que tudo isso pode gerar uma vida criativa.
É assim que você também se mantém disposta a pesquisar, escrever e viajar pelo mundo realizando seus seminários?
Sim. É isso que me mantém viva. Se não, eu estaria deprimida e tomando remédios como milhares de mulheres já fazem. Mas elas não estão sozinhas, há muitas mulheres que estão lutando e que me inspiram. É com elas que estou aprendendo. Quando as pessoas me aplaudem, digo que há mil coisas que eu disse que aprendi com outras mulheres. Não são coisas somente da minha cabeça. E creio que valem algo porque expressam algo muito maior que eu.
Assista ao vídeo com trechos da entrevista com a filósofa e escritora Silvia Federici, realizada no Sesc Avenida Paulista, em dezembro de 2023.
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