Em prosa e poesia, conheça a crescente produção de escritoras como Eliane Potiguara, Trudruá Dorrico e Auritha Tabajara
POR MATHEUS LOPES QUIRINO
Leia a edição de AGOSTO/24 da Revista E na íntegra
A literatura indígena vai além do cotidiano dos povos. Ela abrange uma diversidade de conhecimentos ancestrais, visões de mundo e narrativas que refletem sobre questões estéticas, políticas e sociais, ultrapassando qualquer tipo de senso comum a respeito dos povos originários. Diversas autoras indígenas, inspiradas pela múltipla rede de práticas e saberes, vêm assumindo espaço e compartilhando, em prosa e poesia, a riqueza cultural de cada etnia.
“Nas comunidades indígenas, as mulheres desempenham um papel fundamental como transmissoras de conhecimento e responsáveis pela educação. Elas são as guardiãs das tradições e da cultura, e repassam ensinamentos para as novas gerações”, conta a escritora Eliane Potiguara, uma das integrantes da geração que lutou para ocupar espaços culturais e literários tradicionalmente dominados por não indígenas.
Ainda é muito recente a presença dos povos originários no mercado editorial. Foi na década de 1980 que saiu pela primeira vez, no Brasil, um livro (nos moldes do mercado editorial) de autoria indígena: Antes o mundo não existia, dos escritores Umúsin Panlõn e Tolamãn Kenhíri, pertencentes ao povo Desana, do Alto Rio Negro (AM). No final da década de 1990, foi publicado Histórias de índio (Companhia das Letras, 1996), de Daniel Munduruku, que se tornaria um best-seller. De lá para cá, a literatura indígena vem se destacando com mais vozes, e alcançando novos públicos.
“Essa mudança é, em parte, atribuída ao fortalecimento da Constituição Federal e à Lei 11.645 [de 2008], que estabeleceu a obrigatoriedade do estudo da história e cultura indígena, africana e afro-brasileira nas licenciaturas das ciências humanas, marcando uma virada significativa na forma como o estado brasileiro se relaciona juridicamente com os povos indígenas.” A explicação é da pesquisadora e escritora Trudruá Dorrico que, ao lado de autoras como Eliane Potiguara, Auritha Tabajara, Chirley Pankará e Aline Pachamama, vem fazendo a escrita indígena ocupar territórios no horizonte literário contemporâneo.
“Hoje há uma procura maior das editoras por autoras indígenas. Chega um momento em que entendemos que a presença do corpo indígena em espaços editoriais comprometidos com os ideais e as lutas do movimento indígena é necessário”, destaca Dorrico.
ENSINAMENTOS ANCESTRAIS
Para entrar em contato com parentes na Paraíba por meio de cartas, a escritora e ativista indígena Eliane Potiguara, nascida no Rio de Janeiro (RJ), em 1950, aprendeu a ler e a escrever aos sete anos. A família havia saído do estado nordestino em meados do século passado devido a uma antiga perseguição que envolvia a exploração de mão de obra indígena. Inspirada pelas matriarcas do povo Potiguara, Eliane teve seu amor pelas narrativas despertado pela avó, Maria de Lourdes. Sem nunca ter recebido educação formal, dona Lourdes esbanjava sabedoria e tino para transmitir memórias e histórias – uma figura de grande influência para a neta e para a comunidade.
Uma voz da nova geração de autoras indígenas é Auritha Tabajara, que enfatiza a importância de manter a oralidade viva por meio do cordel, carregando a força ancestral de sua avó, Dona Francisca, hoje com 95 anos. “É minha conselheira”, resume a autora, que publicou diversos livros, abrangendo diferentes gêneros, desde literatura de cordel até infantojuvenis e acadêmicos. Seu primeiro título, Magistérios indígenas em verso e poesia, publicado em 2004 pela Secretaria de Educação do Estado do Ceará, tornou-se material didático utilizado pelas escolas indígenas na região.
Primeira cordelista indígena do Brasil, Auritha explica o título que ostenta com orgulho: “Eu ganhei por conta de Coração na aldeia, pés no mundo (Uk’a Editorial, 2018). O livro traz uma força de representatividade das duas cores do meu povo, o jenipapo e o urucum, o preto e o vermelho, a força de equilíbrio do universo em duas modalidades do cordel, que é a sextilha, septilha e décima. No Brasil, ainda não existia um livro nesta modalidade do cordel trazendo a representatividade indígena. Fui a primeira a publicar uma obra do gênero”, destaca a autora, que lança, nos próximos meses, o livro Tuiupé e o Maracá mágico (Companhia das Letrinhas), escrito em parceria com Paola Torres e com ilustrações de Tai.
TRAVESSIAS LITERÁRIAS
Auritha Tabajara conta que enfrentou desafios no início da carreira, como a competição e a descrença por parte de alguns cordelistas. “Sobre o cordel ser conhecido pelos autores homens e mais velhos, eu percebi que havia, no começo da minha carreira, certo medo de alguns homens cordelistas. Hoje, eu acredito que sou uma palha do trançado da grande cestaria”, reflete a escritora. Em 2021, ela alcançou um marco importante: teve sua obra Coração na aldeia, pés no mundo incluída no acervo da biblioteca do Congresso de Washington D.C., nos Estados Unidos, após ser lida por uma bibliotecária da instituição. “Este livro foi um experimento que foi encontrando pessoas. Comecei a escrevê-lo quando eu tinha nove anos. Na época, eu era a única aluna indígena na minha turma na escola regular. Sofria bullying quando o termo nem existia.”
Auritha fez parte da primeira turma de magistério indígena no Ceará, e hoje é professora na região metropolitana de São Paulo. Seu primeiro contato com a literatura indígena foi por meio de um livro de Eliane Potiguara, Metade cara, metade máscara (Global, 2004). “Uma referência na literatura”, enfatiza a autora, que conheceu Potiguara no Rio de Janeiro, no lançamento da obra, durante um encontro de autores indígenas.
Naquele ano, Metade cara, metade máscara teve uma recepção calorosa não só dentro do movimento indígena, como na imprensa. Ao evocar memórias pessoais, os escritos de resistência política e poesia colocaram o nome de Eliane ao lado dos cânones da literatura escrita por povos originários. “Sempre fui uma pessoa panfletária. Fiz parte da poesia marginal, mas não tive visibilidade”, relembra a autora, formada em letras e educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e especialista em educação ambiental pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Em 2021, Eliane Potiguara recebeu o título de doutora honoris causa pela UFRJ, o primeiro concedido a uma indígena.
DE MÃOS DADAS
Ao frequentar o círculo da geração mimeógrafo [grupo de artistas brasileiros inseridos no contexto da poesia marginal], onde conheceu os poetas Antonio Carlos de Brito (1944-1987), o Cacaso, e Chacal, Eliane Potiguara divulgava suas próprias poesias utilizando cartazes e lambes espalhados pela cidade. Com essa experiência, a escritora aprendeu, desde a juventude, a importância de caminhar, no percurso da literatura, junto a autores e apoiadores de suas lutas. Ao redor de si, formou uma rede de afeto que batalha pela educação.
O Grupo Mulher-Educação Indígena (Grumin) é o projeto de vida da escritora Eliane Potiguara. As atividades começaram em 1982, com o objetivo de defender a integridade física e psicológica de mulheres indígenas. A organização também se dedica à criação de materiais educativos e de conscientização. Ao longo de quatro décadas, Potiguara publicou um jornal pelo Grumin e, hoje, mantém uma editora vinculada à rede, pela qual publica seus livros.
Nas comunidades indígenas, as mulheres desempenham um papel fundamental como transmissoras de conhecimento e responsáveis pela educação.
Elas são as guardiãs das tradições
e da cultura, repassam ensinamentos
para as novas gerações.
Eliane Potiguara, escritora
(foto: Eduardo Fujise e Gideoni Junior/ Itaú Cultural)
Se no começo da carreira, ela espalhava sua literatura pelas ruas da cidade, conforme a sociedade se digitalizou, a autora incorporou as novas tecnologias e promoveu grupos para a divulgação de literatura indígena em comunidades nas redes sociais. “Comecei no Orkut, depois, seguimos no Facebook, agrupando leitores de todos os cantos do Brasil”. A troca entre gerações pela internet é bem-vinda e se tornou um método cotidiano na vida da autora, hoje com 75 anos. É pelas redes sociais que acompanha o trabalho de jovens escritoras, como Trudruá Dorrico, a pesquisadora de literatura indígena organizou a antologia Originárias, no ano passado, que apresenta ao público a obra de 12 autoras.
Trudruá também ressalta a diversidade de temas na literatura indígena, que abrange desde narrativas espirituais até políticas, com uma intersecção constante desses temas. Ela observa que, historicamente, o estado brasileiro tratava os povos indígenas como sujeitos a serem integrados, o que implicava no abandono dos direitos das comunidades e na adoção de uma cidadania brasileira pautada pelos costumes ocidentais não indígenas – o que contribuiu para a tentativa de apagamento de saberes e fazeres dos povos originários.
Principalmente depois da implementação da Lei nº 11.645, de 2008, que tornou obrigatório o estudo da história e da cultura indígena, diferentes povos originários conquistaram espaços na educação para afirmarem suas identidades e seus direitos. No campo da literatura, reverberaram resultados dessa legislação, o que vem contribuindo para uma representação mais autêntica e diversa dos povos indígenas.
TERRITÓRIO LIVRO
Mesmo assim, ainda há um abismo que engole boa parte de livros de autores indígenas que não conseguem ser lançados por falta de apoio, patrocínio e fomento. Para a escritora e pintora Aline Pachamama, a solução foi criar a própria casa editorial. Fundada há nove anos, a editora Pachamama nasceu pelas mãos de mulheres indígenas. “A ideia era publicar livros bilíngues, para que as pessoas pudessem entender a dinâmica das línguas indígenas”, conta Aline. O primeiro título, Guerreiras: mulheres indígenas na cidade, mulheres indígenas da aldeia, foi concebido por meio de um edital.
Em quase uma década, Aline publicou mais de 40 títulos e recebeu prêmios, como o Rio de Leitores, por sua obra A poesia é a alma de quem escreve (2023). “O livro, para mim, é vivo. Cada livro que publico é um projeto, um território, uma floresta”, conta a editora.
Em um acervo que reúne livros de pano, e-books gratuitos e edições convencionais de brochura, a editora Pachamama reúne títulos que questionam as noções de território e exploram as possibilidades do texto por meio de obras pautadas nas pesquisas e poéticas de autoras de diferentes povos. “A história oral é o lugar da vivência, que fala da terra, do rio, do processo de formação das montanhas”, define Aline, graduada em história. “Falar de linguagem é falar do território, da ancestralidade. Eu sempre quis falar da história de meu povo, o povo Puri.”
Assim como Aline Pachamama, a ativista e escritora pernambucana Chirley Maria Pankará também conhece a realidade que enfrentam os autores independentes. Pankará, autora da obra infantojuvenil Nãna e os potes de barro (2019), afirma que “há uma ciência e toda uma atenção na arte de [fazer os moldes em] barro, que requer muita conversa”. O livro versa sobre a arte da cerâmica, ofício que sustentou sua família em Floresta (PE).
A autora precisou adaptar a história de Nãna para a prosa mirando a antologia Originárias, organizada por Trudruá Dorrico. “Realizar este livro foi um processo de cuidados, trocas e aprendizados”, ressalta a editora do livro, Gabi Tonelli, do selo Companhia das Letrinhas. Pankará, que foi a primeira deputada indígena a integrar um mandato na Assembleia Legislativa de São Paulo, pela Bancada Ativista (PSOL), viu sua obra chegar a públicos diversos.
Escritora e pesquisadora de literatura indígena, Trudruá Dorrico (foto: acervo pessoal)
“Minha história de luta, na vida, é que o homem e a mulher caminhem juntos. Meu objetivo é furar as bolhas para afirmar a influência das mulheres. Esse lançar para o mundo [por meio da literatura] é mostrar que nós, mulheres indígenas, somos capazes. Porque tem vários momentos em que somos escritoras: desde a marcação em árvores até a publicação de livros. A gente nasce escritora para marcar os momentos”, reflete Pankará.
para ver no Sesc
CIRCULAR SABERES E PRÁTICAS
Agosto Indígena reúne mais de 250 ações, como cursos, vivências e apresentações, que aproximam o público dos múltiplos modos de educação de diferentes etnias
Dar visibilidade à crescente presença indígena em diversos espaços da sociedade, como escolas, universidades, centros culturais e redes sociais. Esse é um dos objetivos do projeto Agosto Indígena, realizado pelo Sesc São Paulo, com cerca de 250 ações, como apresentações, exibições, bate-papos, cursos, oficinas e vivências.
A partir do tema “Educação”, a programação acontece em 40 unidades do Sesc em todo o estado de São Paulo, convidando diversos representantes dos povos originários, como Priscila Poty, Karai Tiago, Uýra Sodoma, Brisa Flow, Moara Tupinambá, João Paulo Tukano, Auritha Tabajara e Souto MC, entre outros. A intenção é aproximar o público dos múltiplos modos indígenas de educação, e refletir sobre a relevância do protagonismo indígena e seu impacto positivo em âmbitos educativos, políticos e sociais.
Tatiana Amaral, técnica da Gerência de Estudos e Programas Sociais do Sesc São Paulo, destaca que a compreensão de educação que inspira o projeto está vinculada às perspectivas indígenas, abrangendo variadas formas de circulação de saberes e práticas, tanto nas aldeias quanto em espaços de educação formal e não formal, incluindo as unidades do Sesc São Paulo. “Cultura e educação operam como noções indissociáveis”, afirma Tatiana, ressaltando a ideia de configurações plurais e particulares desses conceitos.
Ela reforça ainda que, ao focar na educação, esta edição do Agosto Indígena busca provocar reflexões sobre a natureza coletiva dos processos de aprendizagem. “Só é possível viver bem quando se sabe conviver com a alteridade”, conclui Tatiana.
Conheça destaques da programação:
CONSOLAÇÃO
Encontro: Abre caminho
A abertura do Agosto Indígena reúne Sandra Nanayna, Edson Kayapó, Gustavo Caboco, Samantha Terena, Juliana Xucuru e Gean Ramos Pankararu, que compartilham diferentes modos de cuidar e compartilhar conhecimentos entre os povos originários. Concepção: Naine Terena. Direção artística: Otávio Oscar.
Dia 1º/8. Quinta, das 20h às 21h30. GRÁTIS
CATANDUVA
Exposição: Somos aquelas por quem estávamos esperando
Obras de arte de oito mulheres indígenas apresentam a força que emerge de suas ancestralidades. São elas: Arissana Pataxó, Povo Kaingang, Évelin Hekeré Terena, Yucunã Tuxá, Kaya Agari, Mulheres Kadiwéu, Clara Idioriê e Miguela Guarani. Curadoria de Naine Terena.
De 8/8 a 9/2/25. Terça a sexta, das 13h30 às 21h30. Sábados, domingos e feriados, das 10h às 18h. GRÁTIS
CASA VERDE E AV. PAULISTA
Curso: Etno-oficina de cordel: o fazer literário indígena de Auritha Tabajara
Imersão na cosmologia da primeira cordelista indígena do país. Filha do povo Tabajara, do Ceará, Auritha compartilha sua história e fala sobre a importância do cordel em sua trajetória, propondo um exercício de criação poética.
Avenida Paulista. De 13 a 21/8. Terças e quartas, das 19h30 às 21h30.
Casa Verde. De 15 a 22/8. Quintas, das 14h30 às 17h30. GRÁTIS
Programação completa: sescsp.org.br/agostoindigena
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