Aziz Ab’Saber: visionário da biodiversidade

30/09/2024

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Geógrafo decifrou as paisagens naturais brasileiras e lutou pela conservação dos nossos biomas

POR MANUELA FERREIRA

Leia a edição de OUTUBRO/24 da Revista E na íntegra

Florestas, montanhas, rios, vales e sertões eram mais do que paisagens naturais aos olhos do geógrafo Aziz Ab’Saber
(1924-2012). Eram, também, testemunhas da história da Terra e habitat da milenar passagem humana pelo planeta. A partir dessa visão, o cientista mapeou o Brasil em profundidade, deixando um inestimável legado em diferentes campos do saber, como ecologia, geomorfologia, biologia evolutiva, fitogeografia, geologia e arqueologia.

Além de compreender as dinâmicas dos ecossistemas brasileiros pelas perspectivas acadêmica e científica, Ab’Saber foi um pensador humanista, um intelectual que também dedicou sua vida a desvendar o país em sua grandiosidade territorial, desigualdades regionais e desafios socioeconômicos. No ano em que seu centenário é celebrado, a obra de Ab’Saber segue como uma bússola na busca por soluções que possam equilibrar desenvolvimento humano e conservação dos recursos naturais.

“O trabalho do professor Aziz Ab’Saber fornece uma sólida base científica, essencial para a compreensão dos biomas brasileiros, e continua a ser uma referência importante para as discussões a respeito de conservação e planejamento. Sua abordagem multidisciplinar ajudou a formar uma visão mais integradora e informada a respeito da relação entre espaços biodiversos, paisagens e as formas de humanidade existentes”, explica o geógrafo e pesquisador Reinaldo Corrêa Costa, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).

Para Costa, o legado de Ab’Saber, de quem foi aluno e amigo, influencia e baliza questões sobre preservação de espaços naturais no Brasil. “Ele foi um defensor da conservação ambiental e do uso responsável e ético dos recursos naturais com utilização do planejamento, e quem alertou sobre os riscos da exploração predatória e do desmatamento, especialmente na Amazônia. Destacava a importância de políticas que considerem as características naturais e culturais dos lugares, assim como as limitações dos biomas”, afirma.

VOZ DA TERRA
Outra contribuição imprescindível de Ab’Saber foram as pesquisas para a formulação de um Código da Biodiversidade, em lugar do mais recente Código Florestal (Lei 12.651/2012) — lei federal que determina a forma como a vegetação deve ser tratada no Brasil, especialmente dentro de áreas rurais privadas. Em vigor desde 2012, a lei recebeu, à época de sua aprovação, duras críticas públicas de Ab’Saber. “O Brasil é muito mais que florestas, há várias formas de biodiversidade, para além das florestas em importância socioeconômica e cultural, por isso a necessidade de um Código da Biodiversidade. O trabalho de Ab’Saber influenciou a formulação de políticas ambientais e de conservação no Brasil e suas pesquisas forneceram fundamentos e argumentos científicos para a criação de unidades de conservação, reservas ecológicas e práticas de manejo, a partir do uso do Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE) com estratégias de escalas e método, entre eles o uso das células espaciais”, explica Costa.

Ab’Saber também teve papel primordial na educação e na conscientização sobre a importância da conservação com uso do planejamento, conforme analisa o pesquisador do Inpa. “Seus estudos ajudaram a sensibilizar setores da sociedade e alguns gestores públicos para a necessidade de proteger os biomas e entender a complexidade ambiental do Brasil, utilizando a educação ambiental com o uso da escala, desde a escala doméstica, local e regional até a escala planetária”, acrescenta.

Costa considera que o mestre Ab’Saber via o Brasil como uma sociedade, sobretudo, desigual, tanto que cunhou a expressão “geografia humana sofrida”, utilizada para descrever situações de desigualdade e sistemas de exploração no Nordeste brasileiro, referindo-se à circunstância em que alguns grupos enfrentam dificuldades significativas devido a fatores políticos e econômicos que os exploram. “O professor usava esse termo para descrever como alguns contextos socioeconômicos podem atuar negativamente na vida e no desenvolvimento das pessoas e, consequentemente, do país”, diz Costa.

EDUCADOR EM ESSÊNCIA
Nascido em São Luiz do Paraitinga (SP), filho do comerciante libanês Nacib e da agricultora brasileira Juventina, Aziz Ab’Saber ingressou na Universidade de São Paulo (USP) aos 16 anos. Mais do que observar os domínios naturais geográficos, era um jovem que gostava de desenhar, por isso a escolha pela geografia. Na instituição de ensino, ele trabalhou, em um primeiro momento, como jardineiro, função que exerceu mesmo depois de se pós-graduar. Também foi contratado como prático de laboratório até defender a livre-docência em 1965. Anos mais tarde, passou a ministrar as aulas de geomorfologia na graduação e pós-graduação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, inspirando gerações de estudantes e pesquisadores pelo vasto conhecimento e paixão pelo ofício. Ab’Saber se manteve em atividade mesmo após a aposentadoria, concentrando suas pesquisas no Instituto de Estudos Avançados (IEA-USP) e na atuação no Instituto da Cultura Árabe (ICÁrabe), entidade da qual foi presidente de honra.

Da esquerda para direita, Aziz Ab’Saber é o segundo e está ao lado de Pierre Monbeig, geógrafo francês que viveu no Brasil entre 1935 e 1946, e foi um dos principais construtores de uma geografia acadêmica moderna no país (foto: IEB/USP)

Defensor da democratização da ciência e da universidade pública, era incansável, ainda, na luta pela difusão e acesso ao conhecimento científico às pessoas socialmente vulneráveis, conforme atesta o professor Vicente Lemos Alves, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Ele foi um entusiasta da abertura da universidade para os mais pobres, não somente para que os filhos de trabalhadores pudessem estudar em uma instituição pública de qualidade, mas também defendeu que a universidade se aproximasse dos movimentos sociais rurais e urbanos de distintos segmentos da sociedade organizada. Ele era um militante fervoroso do estabelecimento de diálogo com os movimentos sociais ou de iniciativas de promoção social e/ou cultural”, relata o docente.

CIÊNCIA INTEGRADORA
Nos anos 1980 e 1990, Ab’Saber assumiu um papel pioneiro na promoção de discussões sobre a preservação ambiental no debate nacional. O geógrafo se tornou uma das primeiras figuras públicas a ser reconhecida como ambientalista no Brasil. “Quando foi presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), de 1993 a 1995, ele promoveu ações para que pesquisadores brasileiros realizassem estudos interdisciplinares com foco na questão da preservação ambiental e para que o Estado nacional brasileiro desenvolvesse políticas de proteção às nossas riquezas naturais, em um momento em que essa questão ainda não despertava grande interesse da sociedade”, relembra Alves. Em paralelo às salas de aula, Ab’Saber também esteve à frente da presidência do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat). Em sua gestão, pautas associadas ao tombamento de áreas naturais ganharam amplo incentivo, com atenção especial à formação de uma equipe técnica de apoio aos estudos de tombamento. “Foi sob a influência das ideias do mestre Aziz que ocorreram avanços importantes nas discussões e efetivação de políticas de proteção ambiental no estado de São Paulo, como os tombamentos do Parque Estadual da Serra do Mar (PESM), do Parque Estadual da Serra da Cantareira e da Serra do Japi. Em todas essas iniciativas, a participação de Ab’Saber foi marcante e deixou como herança a preservação de remanescentes de Mata Atlântica”, ressalta o professor da Unicamp.

CLIMAS E FORMAS
Já o conceito de “domínios morfoclimáticos brasileiros”, registrado por Ab’Saber em 1970, revolucionou o modo de compreender a paisagem brasileira e sua evolução temporal e espacial, nas palavras do professor e cientista Miguel Trefaut Rodrigues, do Instituto de Biociências da USP. “Este foi o maior avanço teórico depois dos conceitos paisagísticos de Carl Friedrich Philipp von Martius [naturalista alemão (1794-1868)], que se baseavam apenas na vegetação. Foi a partir desse conceito que se começou a pensar seriamente nas alterações dos domínios morfoclimáticos no tempo e no espaço”, detalha Rodrigues.

As conceituações de tais domínios (classificados em amazônico, caatinga, mares de morros, cerrado, araucárias
e pradaria) foram fundamentais para que o zoólogo Paulo Vanzolini (1924-2013) delineasse, na mesma época, a hipótese dos refúgios paleoclimáticos, conhecida como Teoria dos Refúgios. “Ficou claro que enclaves fora dos domínios principais, como os brejos na caatinga ou as ilhas de cerrado na Amazônia, deviam-se a alterações climáticas. E isso teve um monumental impacto na conservação dessas paisagens de exceção. Ab’Saber era também um defensor fervoroso por manter intactas as planícies de inundações dos grandes rios. Se o tivéssemos escutado, as enchentes avassaladoras que vimos e testemunhamos não teriam afetado tanto a vida nas grandes cidades”, destaca o professor e cientista Miguel Trefaut Rodrigues.

Com profundo compromisso comunitário, Aziz Ab’Saber já apontava para uma solução: o trabalho em conjunto das ciências e a aproximação da sociedade da pesquisa científica para uma valorização do trabalho essencial dos cientistas. “Para que as ciências sejam úteis às sociedades, é preciso que estejam combinadas entre si. Não existe uma ciência aplicada. Existem ciências que, se combinadas, aplicam-se a descobertas novas. As ciências, no entanto, têm de dirigir-se à sociedade, à comunidade humana, e isso torna o tema mais complexo. Por isso, as ciências do homem são fundamentais em todo o corpo geral das ciências, a fim de que o progresso científico não fique por demais distanciado da realidade das comunidades humanas às quais será aplicado”, disse Ab’Saber em 2012, em uma de suas últimas entrevistas, ao médico Drauzio Varella.

para ver no Sesc
PENSAMENTO EM AÇÃO
No ano do centenário de Aziz Ab’Saber, legado do cientista é celebrado em simpósio no Sesc 24 de Maio

(foto: Renato Cirone)

Para homenagear os 100 anos do cientista Aziz Ab’Saber, que seriam comemorados no dia 24 deste mês, o Sesc 24 de Maio prepara um simpósio sobre a trajetória do geógrafo que, ao longo de quase sete décadas de pesquisas e docência, ressignificou as dinâmicas da natureza e sua relação com a sociedade em distintas áreas do conhecimento.

Programado para o dia 26 de novembro, o evento conta com colaboração e curadoria da Cátedra Edward Said de Estudos da Contemporaneidade, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), e do Instituto de Cultura Árabe (ICArabe), entidade que já foi presidida por Ab’Saber.

O simpósio é composto por três mesas de debate, com nomes que refletem sobre as contribuições acadêmicas e científicas, a visão ambiental, o papel de Ab’Saber como educador e sua profunda integração com a comunidade árabe-brasileira.

Denise Baena, gerente na Gerência de Educação para a Sustentabilidade e Cidadania do Sesc-SP, lembra que o professor Aziz Ab’Saber participou inúmeras vezes de atividades nas unidades. “Gentil, atencioso e profundo conhecedor das paisagens e suas ocupações, certa vez, no gramado do Sesc Bertioga, ele nos disse: ‘a melhor maneira de fazer educação ambiental é estar na natureza, observá-la com atenção. Está tudo lá’”, recorda.

A programação completa será divulgada no portal do Sesc São Paulo no início de novembro.

24 DE MAIO
Simpósio: Expedição Aziz Ab’Saber 100 anos
26/11. Terça, das 13h às 20h30. Teatro
Inscrições: sescsp.org.br/24demaio

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