45 anos em alucinação

28/10/2021

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Gravado em duas tardes, após uma semana de ensaios no estúdio, o disco Alucinação foi lançado em junho de 1976. Atingiu a marca de 30 mil cópias apenas no primeiro mês, ultrapassou as 500 mil cópias vendidas ao longo dos anos e tornou Belchior conhecido em todo o Brasil.

Das 10 faixas do álbum, 7 estão entre as 15 músicas mais tocadas do compositor em rádios e plataformas de streaming até hoje, sendo que 6 aparecem no top 10.

Entre as cinco primeiras, 3 são do AlucinaçãoComo Nossos PaisApenas um Rapaz Latino Americano e Sujeito de Sorte. No Spotify, as duas últimas aparecem como as mais tocadas, com mais de 18 milhões de execuções cada uma, sendo que Sujeito de Sorte lidera o ranking na plataforma.

O jornalista Renato Vieira, responsável pelo relançamento do disco para a série Tons da Universal Music em 2016, ano em que Alucinação completou 40 anos, considera que uma conjunção de fatores faz com que esse trabalho continue sendo tão celebrado: um repertório potente, grandes músicos e o trabalho de produção de Marco Mazzola.

“O Mazzola é um grande produtor, então ele soube construir o álbum conforme a expectativa do que poderia ser um grande disco do Belchior. O Alucinação é um disco pop, é um disco de massa. Ele tem um formato de comunicação muito poderoso, mas não trai a origem do Belchior”.


“A canção de Belchior abriu uma avenida para que as pessoas que são como ele prestem atenção nas músicas.”


As composições Como Nossos Pais e Velha Roupa Colorida já estavam no imaginário da população brasileira pelo impulso que ganharam na voz de Elis Regina. Começaram a levantar a plateia no Teatro Bandeirantes em São Paulo ainda em 1975, no segundo ato do espetáculo Falso Brilhante e chegaram às rádios também pela voz de Elis, no disco de mesmo nome, lançado em 1976, meses antes de AlucinaçãoComo Nossos Pais é a música mais executada de todo o repertório do compositor.

“É natural que Alucinação seja o disco mais conhecido porque a Elis foi gigante do ponto de vista de divulgação, de repercussão pública, e aí depois a gravação do Belchior consolidou isso, então são músicas muito conhecidas. É um disco de hits que ficaram famosos no rádio”, analisa o jornalista Jotabê Medeiros, autor da biografia Belchior: apenas um rapaz Latino-Americano.

Foi na voz de Elis que eu ouvi pela primeira vez as canções de Belchior mas, puxando pela memória, o primeiro verso do compositor cearense que entrou no meu radar, sem que eu me desse conta, chegou pela voz do rapper Mano Brown, que se apresenta como “apenas um rapaz, latino-americano, apoiado por mais de 50 mil manos”, na música Capítulo 4, versículo 3 do disco Sobrevivendo no Inferno (1997).

Quando Alucinação foi lançado, Apenas Um Rapaz Latino Americano foi a música que apresentou Belchior definitivamente ao público e criou sua identidade como artista popular. Ainda hoje, é a segunda canção mais executada em rádios e plataformas de streaming de todo seu repertório.

Em 1976, o Brasil tinha acabado de passar pelo período mais duro da repressão militar e vivia a ressaca do “milagre econômico’’. Naquele contexto, a canção de Belchior abriu “uma avenida para que as pessoas que são como ele prestem atenção nas músicas”, analisa Renato Vieira.

“Quando aparece um cara bigodudo, nordestino, com uma voz anasalada, vai para a televisão e fala sou apenas um rapaz latino-americano sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo do interior, ele tá abrindo um canal de comunicação com a massa do Brasil que se identifica naquilo que ele tá dizendo”.

Januário Garcia registrou Belchior em diversos retratos em preto e branco durante a gravação do disco em 1976 | Foto: Januário Garcia/Divulgação Philips

Para o músico Jorge Mello, parceiro musical e amigo pessoal de Belchior, a composição de Apenas Um Rapaz Latino Americano é um exemplo de como o cearense trabalhava letra e melodia. “Ele fez as letras primeiro, ele tinha muita dificuldade para fazer melodia. Às vezes quando eu falo isso a pessoa pensa que eu tô menosprezando a obra, não é. Muitas vezes a melodia serve apenas como um pretexto ao texto”.

“Ele faz um belo de um poema e tem uma base para as palavras andarem, mas é impossível de solfejar ( assovia…). Que diabo de melodia é essa? Ela se acaba, ela morre, ela desaparece no instrumental, mas bote o texto. O texto se segura”.

O verso que criou a identidade artística de Belchior naquele momento, e que se manteve ao longo da sua vida, foi emprestado do filósofo Augusto Pontes, durante uma masterclass na Universidade de Brasília, em algum momento entre 1974 e 1975, conforme indica Jotabê Medeiros em seu livro.

Naquela ocasião, Pontes teria se apresentado da seguinte maneira: “Eu sou apenas um rapaz latino-americano sem parentes militares”. A família do filósofo, falecido em 2009, encontrou o manuscrito original do verso: “Sou apenas um sulamericano sem parentes no poder, apenas a pessoa eu, no estado de mim mesmo”.

Belchior já havia feito uma citação de Pontes em outra canção, Mucuripe, parceria com Raimundo Fagner. Os versos vida vento vela leva-me daqui, colocados por Belchior na letra, foram citados com uma ligeira modificação do original: vida vela vento leva-me daqui.

As letras de Belchior são um mosaico de referências e o disco Alucinação é repleto delas. Sujeito de Sorte, a canção que se tornou seu hit da posteridade, carrega uma adaptação do poeta negro Zé Limeira: ano passado eu morri mas esse ano eu não morro.

Figura lendária, o repentista foi retratado no livro O Poeta do Absurdo de Orlando Tejo, escrito no final de 1968.

“O livro amplificou o vulto do poeta negro para um auditório maior, letrado e do sul do país, mas sua fama e legenda já percorria o Nordeste, bem como vários versos e estrofes, sendo este famoso um dos mais conhecidos”, aponta o pesquisador Astier Bastilho que trabalha em um livro sobre Zé Limeira.

Cada qual ao seu modo, a icônica frase eternizada nos muros Brasil afora | Foto: Reprodução/Twitter @olheosmuros

Há registro do falecimento de Zé Limeira no sítio Tauá em Teixeira (PB) em 1955 e estima-se que tenha nascido na mesma cidade, no ano de 1886. Bastilho acredita que Belchior pode ter tido contato com os versos do repentista no período de sua infância.

“O avô dele organizava cantorias na mercadoria do qual era proprietário em Sobral e por lá passavam vários cantadores. Belchior também ouvia muito a difusora local que em sua programação apresentava repentistas. Os versos de Zé Limeira circulavam oralmente entre os repentistas. Embora não seja possivel precisar, talvez seja daí que ele tenha ouvido”.

O pesquisador dedica um capítulo de seu livro, que pretende concluir no primeiro semestre de 2022, à relação da obra de Belchior com a cantoria nordestina.

“No início, esse traço de apresentar-se como alguém ligado ao universo oral da cantoria era muito visível, já se incorporando à linguagem pop”, aponta Bastilho. “Belchior jogava com os signos de exotismo que a cantoria evocava no imaginário da inteligência e dos amantes da cultura em São Paulo e Rio de Janeiro. Ele sabia disso. E usava a seu favor”.

A referência aos cantadores era ainda bastante visível no primeiro álbum do compositor Belchior (1974), que abre com a faixa Mote e Glosa.

“O que em primeiro lugar desperta a atenção nesse músico de 28 anos, ex-estudante de medicina e ex-produtor de televisão em Fortaleza, é a sua voz cortante e lamurienta, que logo suscita em quem a ouve a lembrança de um aboio”, escreveu o crítico Adones de Oliveira no jornal O Estado de S.Paulo logo após o lançamento do disco no texto Som nordestino recriado, publicado em 7 de abril de 1974.

Ocorrência auspiciosamente nova, esse canto é, assim, o de um vaqueiro transplantado para o asfalto, balançando entre antigas memórias e o choque cultural que lhe provoca o novo habitat. Porque a música de Belchior é a mistura de um som nitidamente country e urbano, suportando letras com visíveis influências do Romanceiro Nordestino (desafios, cantigas de cego, cordel, etc.) e outras que lhe ficaram da leitura de poetas cultos, como Garcia Lorca, por exemplo.

“Belchior surge de duas grandes tradições — a letra na música popular brasileira e a poesia oral nordestina — para construir uma obra bela e original, no seu primeiro LP”, diz uma crítica não assinada publicada na Folha de S. Paulo em abril de 1974 com o título: Mote e Glosa de um Vaqueiro.

Apesar de novamente a técnica de reprodução fonográfica não ter conseguido uma fidelidade absoluta no registro de sua voz estranha e cheia de arestas, Belchior conseguiu enfim mostrar toda a originalidade de uma obra, que está apenas começando, mas que já evolui na linha dos melhores momentos “semânticos” da musica ligeira brasileira.

Colagem com a chamada de 23 de abril de 1974 da Folha de São Paulo, à época do lançamento do seu primeiro LP | Imagem: Renan Abreu

“O meu disco tem um título que eu gosto, Alucinação. Sabe, viver é mais importante que pensar sobre a vida. É uma forma de delírio absoluto, entende? A alegria, a ironia, a provocação, são tão importantes quanto sorrir, brincar, amar. Acho importante provocar. Um trabalho novo só aparece através da agressividade”


Marcus Vinícius Tavares, músico pernambucano que produziu e fez os arranjos do primeiro LP do artista, Belchior (1974), lembra que as letras das músicas já estavam todas prontas.

“Ele já tinha um baú musical que era bastante alentado, sempre fornido. Todas aquelas músicas já estavam lá no repertório do Belchior, o que a gente precisava discutir era a maneira de dar um acabamento para aquilo”, recorda.

O músico recorreu então ao seu arcabouço de formação e experiência vanguardista para os arranjos orquestrados inspirados no trabalho de George Martin com os Beatles.

A crítica da Folha de S. Paulo destacou o trabalho de Marcus Vinícius na direção musical daquele disco.

Parte dessa unidade e coesão e também da beleza das melodias de Belchior deve-se, contudo, ao extraordinário trabalho quase recriativo do arranjador Marcus Vinicius. Note-se, contudo, que o sucesso do trabalho de orquestração, realmente esplêndido, é um fruto direto da comunhão entre compositor e orquestrador e da experiência desse último que tem uma obra muito ligada ao Nordeste, à América Latina e à Vanguarda.

No disco de Belchior, a orquestração de Marcus Vinicius não é uma “roupa”, mas uma “pele”: o lindo solo de saxofone em “A Palo Seco” não é um efeito mas uma continuação; a longa introdução de “Bebelo” (incluindo os trompetes no estilo “mariachi”) não apenas abre, mas inicia: e os ruídos concretos que encerram o disco (em “Maquina” são ponto final, mas, da mesma forma, ponto de partida).

Naquele mesmo ano, após o lançamento do disco, Marcus observou uma mudança intencional de Belchior rumo a uma linguagem pop, que pudesse projetá-lo nacionalmente como artista. Em 1976, durante a mixagem de Alucinação, Belchior falou ao amigo sobre seu desejo de se tornar um popstar.

“Na época a gente tinha uma certa vergonha de falar estas coisas, mas ele falou com a maior tranquilidade”, lembra Vinícius sobre aquele dia. “É uma coisa profundamente rica, porque eu acho que ele conseguiu isso. A gente continuou tendo toda a relação pessoal, mas profissionalmente o trabalho dele já estava mais definido para um lado. Acho que ele fez muito bem isso aí, a repercussão foi boa pra ele. Hoje eu entendo”.

O jornalista Eduardo Athayde entrevistou Belchior para a revista Hit Pop em 1976, após o lançamento e a recepção calorosa de Alucinação, e perguntou ao compositor como encarava o sucesso naquele momento.

“O sucesso me interessa porque me dá possibilidade de dizer e cantar até chegar às pessoas. O disco é a chance que o artista tem, em se oferecer integralmente, com suas ideias, mensagens, reflexões”, respondeu Belchior que, naquele momento, estava em busca de um tecladista para integrar a banda que percorreria os palcos do país. Já estavam no time Liminha, Áureo de Souza e Rick.

“O meu disco tem um título que eu gosto, Alucinação. Sabe, viver é mais importante que pensar sobre a vida. É uma forma de delírio absoluto, entende? A alegria, a ironia, a provocação, são tão importantes quanto sorrir, brincar, amar. Acho importante provocar. Um trabalho novo só aparece através da agressividade”, disse Belchior.

Uma marca da transição entre o primeiro e o segundo discos do compositor, pode ser percebida pela audição das diferentes versões da música A Palo Seco.

Estamos ficando cada vez mais silenciosos, mudos, ensurdecidos com o silêncio ensurdecedor. Então, eu quero testemunhar isso na minha obra. Do mesmo modo em que eu modifiquei, sem a menor reverência, um trabalho já estabelecido, de 1973 pra 1976, porque eu achava — e ainda acho — que a situação em 1973 tava igual à de 1975, desse ponto de vista que a música coloca, agora eu diria tranquilamente “o desespero de 77”, disse Belchior em entrevista ao jornalista Juarez Fonseca, do jornal gaúcho Zero Hora, em 1977, sobre as duas versões da música.

Nessa mesma entrevista ele aponta o verso “o tango argentino vai bem melhor que um blues” como uma citação do poema Pneumotórax de Manuel Bandeira: “Agora só resta tocar um tango argentino”.

Eu estava fazendo uma música sobre o desespero íntimo e geral que, de repente, tomou conta de todos e que a gente procura mudar. Eu me servi então de um verso de Bandeira. Claro que eu não tenho predileções por blues ou tango, prefiro os dois. Mas, como artista, eu me permito fazer essa colocação, pra citar o poeta e identificar um sentimento. Estou falando de uma coisa bem mais profunda que os simples gêneros da música e bem mais ligada à vida do que à arte.

A letra surgiu em dezembro de 1971 em Copacabana, Rio de Janeiro (RJ). Estavam sentados na praia Belchior, e os recém casados Jorge Mello e Teca. Na praia, era realizada uma homenagem a Iemanjá, com oferendas e rosas. Os três bebericavam cachaça, bebida favorita de Jorge, com a qual Belchior não tinha tanta intimidade.

Os tragos já haviam lhe subido um pouco à cabeça, quando o vento jogou na sua cara um jornal velho, que trazia em uma página a frase de John Lennon, um verso música God, lançada no ano anterior, estampada em letras garrafais. “O sonho acabou”.

Belchior se virou pra Jorge e Teca: “Como ele fala uma coisa dessas? A gente ainda nem sonhou!”.

Levantou e começou a chutar a areia, enquanto gritava com John Lennon. Com um pedaço de galho, rabiscou algumas frases. Teca se levantou com papel e caneta. Sem alarde, anotou aquelas palavras e colocou o papel na bolsa de couro de Jorge. Quando encontrou o papel com as anotações, dias depois, Jorge imediatamente entregou a Belchior, que estava na sala de seu apartamento, tocando violão com Cirino.

“Dias depois o vejo com o Cirino montando a harmonia de sua canção nova. E lá estão as frases gritadas e riscadas na areia da praia. Era A Palo Seco”, anotou em seu diário, com data de 30 de dezembro de 1971.

Belchior (logo atrás das mãos do padre) foi uma das testemunhas do casamento entre Jorge Mello e Teca | Foto: Cortesia do Acervo Documental de Jorge Mello

Jorge me contou pessoalmente essa história em uma visita a sua casa, em Embu Guaçu (SP). Na véspera, ele e Teca haviam completado 50 anos de casados. Pela primeira vez desde o início da pandemia, receberam a visita de um grupo de amigos com quem conviveram ao longo das décadas. Para celebrar, Jorge abriu uma cachaça de 1971, ano do casamento.

A frase de John Lennon marcou seu primeiro disco após o rompimento com os Beatles, Plastic Ono Band (1970). Em dezembro daquele ano, na véspera do lançamento do disco, a música God já tocava nas rádios quando Lennon concedeu uma longa entrevista, ao lado da companheira Yoko Ono, ao jornalista Jann Wenner, da Rolling Stone. John estava com 30 anos e Wenner com 24.

Publicada em 1971, aquela conversa esmiuçou as proposições de Lennon em seu novo disco, sua visão sobre o rompimento dos Beatles e o “fim do sonho”. Relendo essa entrevista, publicada na íntegra no livro Lembranças de Lennon, é difícil não pensar que houve um diálogo maior entre aquele momento da “volta para a realidade” do compositor britânico e o futuro trabalho de Belchior.

Logo no começo da entrevista, Wenner diz a John que em seu novo disco “praticamente não há imagens fantasiosas”, ao que o ex-beatle responde: “Porque não tinha nenhuma na minha cabeça, nenhuma alucinação”. Em outro trecho daquela conversa, ao explicar sua predileção pelo rock’n’roll ele diz que, em sua opinião, ninguém “sejam os Beatles, Dylan ou os Stones — fez nada que superasse Whole Lotta Shaking (Going On). Talvez eu seja como os nossos pais. É a minha época. Estou preso ali e não vou sair nunca”, disse.

Em outro trecho, Lennon afirma: “Se você me perguntar que tipo de música eu ouço, não estou realmente interessado em conceitos e filosofias, não na ornamentação, que é a maioria das músicas”.

Mais do que palavras ou frases pinçadas da entrevista que podem, eventualmente, ter inspirado Belchior em suas composições, a ideia central da fala de Lennon naquele momento, e sua visão sobre a própria geração, dialogam com as imagens que Belchior traz ao contexto brasileiro de 1976 em Alucinação.

“As pessoas que controlam, que estão no poder, o sistema de classes e toda essa besteira de panorama burguês são exatamente os mesmos, a não ser pelo fato de agora ter um monte de meninos delicados de classe média com cabelo comprido andando por Londres usando roupa da moda”, diz Lennon ao ser questionado sobre o efeito dos Beatles na história da Grã-Bretanha.

“Os mesmos filhos da puta controlam as coisas, os mesmos sujeitos dirigem tudo. É a mesmíssima coisa! Eles armaram para a garotada. Nós crescemos um pouco, todos nós, e teve alguma mudança. A gente está mais livre e tal, mas ainda é o mesmo jogo. Nada mudou de fato. É igual! O tempo passou, e eles fazem exatamente as mesmas coisas, vendem armas para a África do Sul, matam os negros na rua. Pessoas vivem numa pobreza fodida, com ratos se amontoando sobre elas. É de fazer qualquer um passar mal, eu também despertei para isso. O sonho acabou, é igualzinho, só que agora eu estou com 30 anos e muita gente tem cabelo comprido, é tudo”.

No disco Alucinação, a volta à realidade de Belchior — que completou 30 anos em 1976 — é colocada em contraponto principalmente à Tropicália, que floresceu com forte influência da fase mais psicodélica dos Beatles, em especial do disco Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (1967).

“Eu falo — e devo falar — dos enganos que nós, os jovens, sofremos por ver nossas esperanças caírem por terra. Assim, não abro mão da agressão”, disse Belchior para a revista Hit Pop, após o lançamento em 1976, após o lançamento do disco.

Assim como Lennon se coloca, em Plastic Ono Band, em contraponto àquele período de psicodelia e sonho: “I don’t believe Beatles”, Belchior dispara versos direcionados aos tropicalistas na canção Apenas Um Rapaz Latino Americano, em que se refere a Caetano como o “antigo compositor baiano”. Mas sei que nada é divino / Nada / Nada é maravilhoso, nada / Nada é secreto, nada / Nada é misterioso.

“Costumo tomar o trabalho de compositores mais velhos como marco para começar tudo de novo”, disse Belchior para a revista Hit Pop.

“Temos que encontrar uma forma de mostrar que estamos vivos. E isso só se consegue fugindo do convencional, optando definitivamente pela juventude. A cultura precisa se rejuvenescer sempre voltada para a nossa realidade. O que é velho tem, realmente, que morrer”.

O recado também aparece em Fotografia 3×4, que aborda, como tema central, a migração nordestina. Desses casos de família e de dinheiro eu nunca entendi bem /Veloso, o sol não é tão bonito pra quem vem do norte e vai viver na rua.

“De 1971 até hoje, o negócio não foi fácil. Dormi em muita calçada. Segurei de perto a barra da Lapa (RJ). Senti fome e frio. Fiquei de pires na mão, nas salas de espera das gravadoras”, disse Belchior para a Hit Pop em 1976.

Belchior e Jorge Mello (esq) sendo entrevistados por Gonzaga Vasconcelos na TV CEARÁ em setembro de 1971 | Foto: Cortesia do Acervo Documental Jorge Mello

Ida para o Sudeste

Belchior e Jorge Mello se conheceram na universidade, se tornaram parceiros de composições e trabalharam juntos no programa Porque Hoje é Sábado, de Gonzaga Vasconcelos na TV Ceará. Jorge como diretor musical e Belchior como produtor.

“Belchior se apoiou muito no Jorge, que tocava violão e ele também desenvolveu ali o violão, eles dois ficaram muito amigos e eles trabalharam juntos nessa produção”, lembra Fausto Nilo, amigo de Belchior dos tempos do Liceu do Ceará, desde o final da década de 1950, e também parceiro em algumas letras.

Contratado pela TV Tupi naquele mesmo ano de 1971, Mello se mudou para o Rio de Janeiro, onde alugou uma quitinete em Copacabana, no 8º andar, entre as ruas Santa Clara e Barata Ribeiro. Belchior aceitou o convite de Jorge e deixou a faculdade para tentar a sorte no Rio de Janeiro (RJ).

Com a composição Na Hora do Almoço, venceu o IV Festival Universitário de Música Brasileira e deu seu primeiro passo na indústria fonográfica com a gravação de um compacto, pelo selo Copacabana, contendo no lado A a música vencedora do festival e no lado B, Quem Me Dera.

O segundo compacto veio em 1973, com as músicas Sorry Baby e A Palo Seco pela gravadora Chantecler.

“É um trabalho de muito conteúdo. Embora a gravação seja monocórdica, a letra é muito rica. É como uma carta de princípios do futuro trabalho do Belchior, já com o tema de incorporação da música estrangeira. Eu considero muito a riqueza desse material”, diz José Gomes Neto, amigo pessoal de Belchior e responsável pela organização do Cancioneiro Belchior, lançado em 2019.

Desde que venceu o festival, Belchior se empenhou na gravação de um LP, mas as coisas não aconteceram como ele esperava.

“Ele lutou muito nesse período, o Belchior acho até que sofreu com isso depois do festival universitário, porque a coisa não veio, entendeu? Não veio e foi o período mais duro que ele viveu foi esse de São Paulo, lá da casa”, recorda Nilo.

A casa a que ele se refere é um imóvel no número 1.500 da rua Oscar Freire, na região central de São Paulo (SP), para onde Belchior se mudou ainda naquele ano de 1971. A casa em reformas, emprestada pelo cineasta Mario Kuperman, abrigou muitos artistas cearenses naquele período.

Nilo se recorda de Belchior “como um monge ali sentado no chão fazendo música o dia todo, cantando”.

“Nessa época era impressionante a atividade dele e nada acontecia, as vezes que eu ia lá não tinha muita novidade, vivendo com muita dificuldade mesmo”, recorda sobre aqueles dias.

Segundo Jotabê Medeiros, havia nessa casa um “certo conceito de socialismo musical”, uma produção coletiva que abastecia o programa As Muitas Histórias da Música Popular Brasileira na TV Cultura, produzido por Julio Lerner, e rendia cachês que sustentavam aqueles compositores. “Toda semana tinha música nova que eles tinham que apresentar. Essas canções, algumas parcerias do Belchior, elas se perderam”, aponta Jotabê.

A partir de 1973, Belchior começou a frequentar outro programa de TV em São Paulo, Mixturação de Walter Silva, onde também despontavam artistas como Walter Franco, Ney Matogrosso, Marcus Vinícius e Carlinhos Vergueiro.

Durante esses primeiros anos no Rio de Janeiro e São Paulo, enquanto o reconhecimento comercial de seu trabalho não chegava, Belchior continuou aprimorando as letras. Muitas delas, carregava desde os tempos de Fortaleza.

“Acho até que, de uma maneira poeticamente cínica — que ele não era bobo, e ao mesmo tempo eu acho genial isso — ele deu uma pincelada em todas as letras, pra que elas ficassem falando pelos jovens. Não falo isso como uma coisa negativa. Ele fez, digamos assim, um aprimoramento no âmbito das letras, para chegar melhor no ambiente da época”, conta Fausto Nilo.

José Gomes Neto, professor aposentado pela UFSC também enxerga a juventude como principal interlocutor da obra do artista.

“Ele procurava na juventude o grande interlocutor dele, com a influência dos Beatles, de John Lennon. O Belchior sempre se dirigiu à juventude, porque entendia que cabia a ela o papel de renovação, de trazer o novo. No período em que as letras dele são mais engajadas nessa temática, a juventude estava impondo mudanças, e ele compartilhava dessa preocupação com o futuro que se desenhava”.

Nilo conheceu Belchior ainda no colégio e viu o amigo se converter em frade e entrar para a ordem dos capuchinhos no convento de Guaramiranga (CE). Se reencontraram em 1968, na universidade, quando Belchior se apresentou a ele como compositor.

“Ele fez uma espécie de revisão do repertório dele. Quando ele aconteceu mesmo, gravou vários discos, é como se fosse uma publicação de algo que estava guardado. Aquilo é uma obra que tava feita”, aponta Fausto Nilo.

“Claro que tem outras que ele fez depois, mas o trabalho inicial dele foi colocar pra fora tudo que estava guardado. Eu conheço o material todo desde o início, ele modificou muitas letras, ele fez mudanças, trocou palavras. Tinham músicas do dia que ele me procurou na faculdade pra dizer que era compositor”.


“Ele tinha uma fonte constante de criação. A grande maioria das letras são feitas a partir, ou em torno de uma ideia referida ou apenas lembrada, uma recordação importante que ele citava dando pistas.”


As composições desse primeiro período, serviram como a espinha dorsal dos discos que viria a gravar, principalmente ao longo da década de 1970. Foi a década mais produtiva de Belchior como compositor, com 50 obras inéditas gravadas por ele ou outros artistas. Belchior gravou ele mesmo, ao longo da década, 56 fonogramas, segundo a pesquisa e catalogação realizada entre dezembro de 2011 e outubro de 2021 por Mikael Henman Belchior, filho do casamento de Belchior e Angela.

Quando lançou Coração Selvagem (1977), sucessor de Alucinação, o compositor disse ao jornalista Paulo Simões Filho que aquele repertório representava “um levantamento letrístico-musical” de sua carreira, “coletando canções de um período que vai de 1967 até hoje, isto é, os dez anos mais movimentados da minha vida”.

O professor José Gomes Neto aponta que a obra de Belchior foi trabalhada, principalmente, em torno da reelaboração de alguns temas que ele carregava desde o período das primeiras composições.

“Ele fazia uma base de temas que, durante a vida inteira, era usada. Em determinados momentos ele aproveitava elementos dessa base para construir seus textos”, aponta.

José Gomes Neto organizou o Cancioneiro Belchior, que reúne todas as letras do artista, e foi publicado em 2019, trabalho que durou quase 20 anos. A partir de 1980, o compositor estabeleceu com ele uma parceria de revisão de toda a sua obra.

Ele define Belchior como um compositor urbano que dava voz, em sua poesia, a um Nordeste atemporal. “Todas as letras dele servem como força de expressão do nordestino, como a voz de centenas de nordestinos. Ele trabalhava as imagens das letras de forma atemporal, sobretudo a imagem do nordestino e o conflito com a cidade grande”.

Uma letra de Belchior poderia conter citações como a de Zé Limeira, Augusto dos Anjos, Garcia Lorca, Bob Dylan ou John Lennon, ou ser trabalhada a partir do desenvolvimento de uma ideia. “Ele tinha uma fonte constante de criação. A grande maioria das letras são feitas a partir, ou em torno de uma ideia referida ou apenas lembrada, uma recordação importante que ele citava dando pistas”, explica Gomes.

“Ele tinha essa maneira de compor, começava a trabalhar com ideias apenas afloradas e depois desenvolvia, às vezes retomando apenas uma palavra ou expressão. Depois de uma leitura, ele tirava apenas uma frase ou duas e começava a trabalhar em cima delas”.

Mais do que a companhia de instrumentos musicais, Belchior compunha cercado de livros, carregava sempre uma pilha deles para onde fosse. Camila Henman Belchior, primogênita do compositor, usa a imagem das rendeiras do Ceará para falar sobre o processo de composição de seu pai.

“Eu vejo como um artesanato mesmo, de pegar várias fontes diferentes e criar essa trama, essa renda com várias referências, muitas delas são mais evidentes, e outras não tanto. Isso traz essa dimensão de profundidade na obra dele, que você consegue imergir. Uma vez que ouviu, entende num nível, depois outro e outro”.

Embora o processo de composição fosse mais baseado nas palavras, na força poética, havia uma sonoridade que se apresentava desde o momento da leitura. Escondido atrás do livro, jornal, ou o que fosse que estivesse lendo naquele momento, Belchior começava a murmurar algumas frases.

“Estava deitado na rede, ou no sofá de casa, e de repente você ouvia ele murmurar alguma coisa. Era esse momento de digerir o que ele estava lendo, talvez pensando na construção de uma letra, ouvindo a sonoridade das palavras. É um som que remete muito a ele, esse murmurar certas coisas, assim como um jeito bem característico de assoviar pela casa, que era a presença dele”, conta Camila.

Em suas memórias de infância, Camila lembra da presença da gaita, que também acompanhava o compositor durante o processo criativo.

“Eu lembro, muito pequenininha, dele compor assim. Isso depois de uns anos eu não vi tanto, mas ele usava muito a gaita. Não é que ele tocava extensivamente, mas acho que, pra pegar tons diferentes, ele usava”.

A ida para a Warner

No momento em que Alucinação chegou às lojas e rádios de todo o país, Belchior tinha um contrato de mais três discos com a Warner Music, que acabava de ser fundada no Brasil. O ano de 1976 marcou também uma nova fase na vida pessoal do artista: o casamento com Angela Henman e o nascimento da filha do casal, Camila.

“Eu sempre tive a impressão — isso é uma observação pessoal- , que o Alucinação ele deve ter imaginado que era a última chance dele. Porque ele estava pra fazer 30 anos, e é justamente quando ele chega aos 29 que ele se torna uma figura popular no Brasil”, comenta Veira.

Quando contratou Belchior pela Phonogram/Philips, Mazzola já estava com um pé na Warner. O movimento começou de cima. O presidente da Philips, André Midani, se preparava para abrir a nova gravadora no Brasil e convidou o produtor para ser o vice-presidente.

Já com a saída da Phonogram engatilhada, Mazzola fez com Belchior um contrato de apenas um ano, o suficiente pra lançar Alucinação.

“Colocamos na rádio o Rapaz Latino Americano, na época de ditadura, com aquela voz, com aquele sotaque, a música arrebentou, estourou de vez, ai a companhia toda [Phonogram] começou a me procurar, e nesse momento eu já tinha assinado acordo com a Warner”, conta Mazzola.

Quando o disco saiu, Midani, Mazzola e Belchior estavam oficialmente na WEA (fusão dos selos Warner, Atlantic e Elektra).

“Abrimos a WEA no Brasil em junho de 1976, com os discos Urubu, do Tom Jobim, e Slave Mass, do Hermeto Pascoal, ambos gravados em Los Angeles, além de A Cor do Som, Marina Lima, As Frenéticas, Carlos da Fé, Belchior, Azymuth e poemas escritos e narrados por dom Hélder Câmara, para não perder o costume de cutucar a ditadura”, contou Midani em seu livro de memórias Do Vinil ao Download.

O disco promocional que anunciava a chegada da Warner no Brasil trazia uma versão acústica de Galos Noites e Quintais, anunciada por Mazzola e precedida de um trecho do Salmo 50 recitado por Belchior. A música faria parte de seu próximo disco, também produzido por ele.

“Foi o primeiro artista que eu contratei na Warner, imediatamente eu levei ele pro estúdio, fizemos o disco Coração Selvagem”, conta o produtor. O disco foi lançado em 1977.

Daquele contrato de gaveta saíram também Todos os Sentidos (1978) e Era Uma Vez Um Homem e Seu Tempo (1979).

Junto aos discos anteriores, Belchior (1974) e Alucinação (1976), a discografia da década de 1970 representa a parte da obra de Belchior mais conhecida do público brasileiro. As 15 canções mais executadas do compositor são todas desse período.

“De 1974 a 1978 ele faz a parte mais importante da obra dele. A mais revolucionária por assim dizer. O nível de independência artística que ele exerce nos discos da Warner eu acho muito raro”, avalia Medeiros.

Composições de Belchior mais tocadas até hoje*

1. Como Nossos País (Alucinação)
2. Apenas um Rapaz Latino Americano (Alucinação)
3. Coração Selvagem (Coração Selvagem).
4. Comentário a Respeito de John (Era Apenas Um Homem e Seu Tempo)
5. Sujeito de Sorte (Alucinação)
6. Alucinação (Alucinação)
7. A Palo Seco(Alucinação)
8. Tudo Outra Vez (Era Uma Vez Um Homem e Seu Tempo)
9. Divina Comédia Humana (Todos os Sentidos)
10. Velha Roupa Colorida (Alucinação)
11. Fotografia 3 x 4 (Alucinação)
12. Paralelas (Coração Selvagem)
13. Medo de Avião (Era Uma Vez Um Homem e Seu Tempo)
14. Conheço o Meu Lugar (Era Uma Vez Um Homem e Seu Tempo)
15. Galos Noites e Quintais (Coração Selvagem)

*Fonte: Editora Musical Fortaleza Ltda.

O caminho do pop

O ano de 1976, quando o disco Alucinação foi lançado, encerrou um período de grande liberdade artística na ainda incipiente indústria fonográfica brasileira.

“Alucinação é o último da safra de discos que as gravadoras meteram menos a mão, não tiveram interferência, faz parte da última leva de discos onde os artistas brasileiros tinham liberdade quase absoluta para gravar os discos”, ressalta o jornalista André Barcinski, que aborda as transformações na indústria fonográfica brasileira no livro Pavões Misteriosos.

Na virada dos anos 1970 para os 1980 a indústria da música foi marcada por um grande crescimento das rádios FM, mais voltadas para a música pop, em trabalhos como o de Guilherme Arantes e A Cor do Som, enquanto as rádios AM, com uma qualidade sonora menor, ficaram mais voltadas para a MPB clássica.

“Em 1977 e 1978, as gravadoras procuravam fazer discos com outra sonoridade, som estéreo mais limpo. Não eram decisões artísticas, mas tecnológicas e comerciais. Seria melhor gravar um disco com essa característica sonora, pra que pudesse tocar nas rádios FM”, aponta Barcinski.


“Era um tempo em que a indústria fonográfica mandava e desmandava. Ao mesmo tempo em que ela bancava para você gravar um disco em Los Angeles, você tinha que às vezes fazer o jogo ali.”


Os discos Coração Selvagem (1977) e Todos os Sentidos (1978), representaram esse movimento da gravadora em tornar o Belchior um artista popular em termos comerciais.

Coração Selvagem, também produzido por Mazzola, trouxe músicas que haviam sido censuradas e ficaram de fora do disco Alucinação: Populus (que chegou a ser pensada como faixa título para o disco anterior) e Pequeno Mapa do Tempo. O disco também traz canções que já estavam no repertório do artista, como ParalelasGalos Noites e Quintais, além da regravação de Todo Sujo de Batom, que aparece no primeiro LP de 1974.

A famosa capa de Coração Selvagem trazia um Belchior descamisado | Foto: Reprodução

“Basicamente, o meu universo de pensamento não mudou, só que eu estou me aproximando cada vez mais de uma significação mais — vamos dizer — compreensível da continuidade do trabalho. Aquilo que estava contido formalmente nas letras e tal, hoje eu prefiro dizer direta e abertamente, sem recursos vulgarmente conhecidos por estéticos. Eu procuro violentar o arcabouço da melodia ou da letra, pra colocar mais significado dentro. E quando eu digo significado, é significado mesmo, que as pessoas possam compreender com maior facilidade”, disse Belchior sobre esse trabalho em entrevista para o jornalista Juarez Fonseca, publicada no jornal gaúcho Zero Hora em 1977.

A faixa título do disco é a terceira música mais tocada de Belchior. Palalelas e Galos Noites e Quintais também figuram nessa lista. Para o jornalista Renato Vieira, Coração Selvagem pode ser considerado um desdobramento do trabalho anterior. “Um grande disco que não fica nada a dever ao Alucinação”.

“É um período que é muito produtivo para o Belchior, ele começa realmente a aparecer, ele começa a dar as caras em programas populares. Ele vai no Silvio Santos, ele vai no Globo de Ouro, ele vira uma figura popular”, ressalta.

Ao mesmo tempo é também um período em que o artista tem muitos embates com a censura. O disco Coração Selvagem teria dez músicas, mas Como Se Fosse Pecado foi vetada, e acabou cortada do álbum.

Em 1978, Belchior faz um movimento mais explícito em direção ao pop com o disco Todos Os Sentidos, que representa “um exercício mais de ‘futilidade’ — assim entre aspas — sem culpa do Belchior”, avalia Jotabê Medeiros.

“Mas é ele também sendo um pouco provocado. A gravadora queria torná-lo mais pop, mais popular, que era algo que ele tinha roçado com o Alucinação, mas não cristalizou, não fixou”.

“Era um tempo em que a indústria fonográfica mandava e desmandava. Ao mesmo tempo em que ela bancava para você gravar um disco em Los Angeles, você tinha que às vezes fazer o jogo ali”, aponta Vieira.

O quarto álbum de estúdio de Belchior, cujas composições mais conhecidas são “Divina Comédia Humana” e “Brincando Com a Vida” | Foto: Reprodução

A capa de Todos os Sentidos traz uma foto em preto e branco de Belchior, também feita por Januário Garcia, em que o compositor aparece com uma camisa branca aberta, segurando um charuto em uma das mãos. A camisa, cortesia da Warner, foi comprada por Angela Henman

Foi com a família dela, que o compositor adquiriu o hábito de fumar charutos .“Os bonés se tornaram mais britânicos também”.

Nascidos em Buenos Aires, Argentina, os pais de Angela são de famílias britânicas. De Oxfordshire, Inglaterra, por parte do pai, e da região de Donegal na Irlanda, por parte da mãe. Se casaram em Buenos Aires e vieram para o Brasil, onde tiveram três filhos.

“Quando ele conheceu a Angela, andava muito ligado à família dela. Mudou as roupas, a maneira dele se comportar ficou mais fina, ele começou a fumar cachimbo. Ficou inglês”, resume o parceiro Jorge Mello.

No início de 1978, Belchior e Angela fizeram uma viagem para os Estados Unidos, onde o disco Todos os Sentidos foi mixado. O voo tinha uma escala no Peru, onde o casal se hospedou na casa de um tio de Angela em Lima, antes de encontrar com Mazzola e Ney Matogrosso em Los Angeles.

Naquele final de década, o trabalho de Mazzola estava voltado para um diálogo mais forte com o pop internacional e os discos passaram a contar com o intercâmbio de músicos estadunidenses.

Participaram das sessões de Todos os Sentidos no estúdio Westlake Audio em Los Angeles o tecladista David Foster, o guitarrista Jay Graydon e o percussionista brasileiro Paulinho da Costa, radicado nos EUA.

Os arranjos foram feitos por Lincoln Olivetti em parceria com o guitarrista Robson Jorge. A dupla realizou trabalhos importantes para a soul music brasileira naquele período.

Naquele período, Mazzola estava explorando novas possibilidades como produtor. No ano anterior, enveredou pela soul music com o disco Maria Fumaça da banda Black Rio e pela dance music com o disco Frenéticas de As Frenéticas, que virou trilha da novela Dancing Days, novela da Globo lançada em junho de 1978.

Para aquele novo trabalho do compositor cearense, o grupo vocal feminino emprestou as vozes para os versos em latim da música Corpos Terrestres.

Quando Belchior e Angela chegaram em Los Angeles, Mazzola estava trabalhando no disco Feitiço de Ney Matogrosso, artista recém contratado da WEA. Ney incorporou ao seu repertório a música Sensual, parceria de Belchior com o tecladista Tuca.

Quando Todos os Sentidos foi lançado, em agosto daquele ano, essas duas faixas já estavam “estouradas” nas rádios.

Belchior começou a tour de divulgação no Teatro Bandeirantes em São Paulo, onde se apresentou durante todo o mês de agosto, de quarta a sexta-feira, acompanhado dos músicos Sidney Cruz do Vale (Palhinha), na guitarra, Odilon da Cunha Melo Jr. no baixo e Flávio Pimenta Jr. na bateria. Na apresentação, declamava poemas de Antero de Quental e Augusto dos Anjos.


“Ele foi desenvolvendo seu estilo. No início dos anos 1970 ele fazia uso do que tinha, com o sucesso eu que saia com a fita métrica em busca de roupas pra ele.”


No dia 26 de agosto, matéria do jornal O Estado de S. Paulo anunciava o fim da temporada paulista e destacava como novidade daquele espetáculo, além das novas músicas, o fato de o compositor “apresentar-se de maneira mais descontraída, obedecendo a uma mise-en-cène criticamente não muito bem recebida”.

“Espera-se que nos shows, Brasil afora, Belchior ‘limpe’ o seu show, despojando-o de algumas gratuidades. Sua voz e suas canções já contém o apelo público suficiente”.

A crítica se referia à quantidade de figurinos utilizados pelo artista durante o espetáculo.

O músico Carlinhos Vergueiro, com quem Belchior morou no período anterior ao lançamento de Alucinação e com quem também dividiu palco naquele início de década, se lembra do cuidado que o cearense tinha com o figurino.

Quando acompanhou Vergueiro em uma apresentação no Teatro Municipal, Belchior levou uma muda de roupas, aproveitando o serviço de costura oferecido pela estrutura do teatro.

“Ele levou umas roupas para consertar, eu achei isso super engraçado, porque eu tinha lá uma calça, uma camisa, não me preocupava muito com roupa. Ele sempre pregava botão, arrumava um negócio. Ele levou lá umas coisas, consertaram pra ele”.

Com o sucesso do primeiro disco, o figurino aumentou. Entraram os suspensórios, casacos de couro, botas de montaria e cap/boné de Tweed. “Ele foi desenvolvendo seu estilo. No início dos anos 1970 ele fazia uso do que tinha, com o sucesso eu que saia com a fita métrica em busca de roupas pra ele”, lembra Angela.

Ainda no primeiro semestre de 1978, antes do lançamento do disco, Belchior foi para a Inglaterra com Angela. Se aventurou por lojas de cachimbo, roupas de segunda mão e livrarias. “Nossa bagagem de mão veio carregadinha com livros de artes plásticas”.

O músico encerrou a temporada paulista de shows no domingo e já na quarta-feira abriu a temporada carioca, no Teatro Tereza Raquel. Até dezembro daquele ano foram 65 shows em 9 cidades.

O disco Todos os Sentidos encerrou a parceria com o produtor Mazzola, que deixou a Warner no ano seguinte e abriu seu próprio selo, Ariola.

Um ano depois, em novembro de 1979, Belchior estava novamente nas páginas do Estadão. Com disco, novo tinha iniciado a turnê de divulgação. “Nada mais que 52 shows foram feitos por Belchior nestes 2 meses de trabalho que se sucedem ao lançamento do disco”.

Ele com os músicos Paulo César Willcox, nos teclados arranjos e regência, Palhinha na guitarra, Arnaldo no baixo e Peninha Café na bateria. Belchior estava se apresentando no Teatro Pixinguinha.

A matéria do Estadão destaca duas músicas daquele repertório: Medo de Avião, que estava nos “primeiros lugares das paradas de sucesso” e Comentário a Respeito de John, “que aparece no LP com os seus versos de intenção concretista”.

Deixando de lado a imagem do sex-symbol cearense — “na verdade, nunca houve uma preocupação de minha parte com isto” — Belchior parte para um show despojado. Garante ele que não trocará de roupa uma vez sequer, como fez no espetáculo anterior, o que levou algumas pessoas a acreditar que o outrora “rapaz latino-americano” estivesse promovendo seu próprio corpo, mais até que sua música. “Puro engano. Eu trocava de roupa por que sentia calor, ou frio. Não era uma coisa estudada”.

Colagem com a chamada de 7 de abril de 1974 do jornal O Estado de São Paulo à época do lançamento do primeiro LP | Imagem: Renan Abreu

“Ainda com a imagem de Belchior ligada ao seu trabalho de Alucinação, muitos reagiram diante de Todos os Sentidos como sendo um elepê incompleto”, diz texto não assinado da Revista da Música de 1979, que traz uma entrevista com Belchior.

O artista preparava o lançamento de seu disco seguinte e disse que propunha, com Todos os Sentidos, o “recrudescimento das qualidades individuais”.

“Eu não faço música partidária. Eu sou a favor de um recrudescimento das qualidades individuais, diante de qualquer instituição e também da instituição política. Tem governo, eu sou contra. Tem partido, eu sou contra. Eu não quero pertencer a partido, igreja, escola, a nenhum grupo institucional”.

Naquela entrevista, Belchior usou os versos de Lennon da música Imagine (1971), como síntese de seu novo trabalho. “And no religion too. O utópico verso da música de John Lennon, Imagine é citada como um lema explicativo de seu trabalho”, diz o texto não assinado.


“Eu gostaria nessa nova etapa de que pudesse radicalizar um pouco as linguagens, no sentido de que minhas letras continuassem nesse aspecto de profundidade que elas sempre pretenderam ter”.


Imagine there’s no heaven… And no religion too. Os versos são reafirmados. Agora num tom mais alto. Frisados pausadamente. Durante quase duas horas de conversa, são esses versos que melhor sintetizam a proposta de Belchior ao falar de seu atual momento”.

Belchior aponta que aquele trabalho representava também o começo de um novo ciclo em sua trajetória artística.

“Eu gostaria nessa nova etapa de que pudesse radicalizar um pouco as linguagens, no sentido de que minhas letras continuassem nesse aspecto de profundidade que elas sempre pretenderam ter”.

Era Uma Vez Um Homem e Seu Tempo foi o primeiro trabalho de Belchior produzido por Guti Carvalho, que ele classificou como uma “experiência muito alegre, muito tranquila”. “Ele teve uma direção assim, muito delicada, muito aguçada no meu trabalho e eu gostei muito de trabalhar com ele”

Os arranjos de base do disco foram feitos inicialmente pelo guitarrista Palhinha e finalizados no estúdio por Robson George. Também participaram da gravação Maurício Heinhorn, Robertinho Silva, Chiquinho do Acordeon e o guitarrista Ricky.

Belchior havia amadurecido com os trabalhos anteriores, a experiência nos palcos, no estúdio e , o acompanhamento da divulgação do seu trabalho. Tudo era incorporado ao processo criativo.

“Como artista assim atual, eu me interesso por todas as fases da produção de música, eu quero saber de todos esses processos e quero fazer do conhecimento desse processo, um dado criativo incorporado ao meu trabalho”.

Belchior foi ao estúdio da Rádio Nacional, no edifício A Noite, região central do Rio de Janeiro (RJ) para apresentar as músicas de seu novo disco.

“Tudo o que está dito, cantado nesse disco, diz respeito a um personagem maior, que acidentalmente pode ser eu, mas que se refere mesmo a uma larga faixa da população, uma larga faixa da juventude, de pessoas que curtiram pensamentos, sentimentos, reflexões sobre uma vida que em certo aspecto foi maravilhosa, mágica, brilhante, dourada”.

Era Uma Vez Um Homem e Seu Tempo apresenta a pedrada lírica “Medo de Avião” pro mundo | Foto: Reprodução

Era Uma Vez Um Homem e Seu Tempo, álbum que coloca o artista “de novo no topo da MPB”, segundo Jotabê Medeiros.

“É magistral. É o disco mais político dele, mais politizado. Ele fez também um trajeto de acompanhamento da realidade brasileira que se reflete no Era Uma Vez Um Homem e Seu Tempo. É difícil na música brasileira tal nível de liberdade, ainda mais, um cara que não era uma estrela . Era muito temerário assim, acho muito corajoso o Belchior nessa fase. Ele mostra uma capacidade não só de dialogar, mas também de influenciar sua época, seus pares”.

Naquele ano em que foi aprovada a Lei da Anistia, que permitiu o retorno ao país dos exilados da ditadura, Elis Regina celebrou “a volta do irmão do Henfil” em O Bêbado e a Equilibrista, composição de João Bosco, e Belchior retratou aquele processo nos versos de Tudo Outra Vez, oitava canção mais executada de sua obra.

— É uma música feita pras pessoas que estão voltando, as pessoas que, de qualquer forma, estão voltando. Quem meteu o pé na estrada e sentiu saudade de casa, pessoas que estiveram em países distantes e estão voltando para o seu próprio país, pessoas que estão voltando para os sentimentos que tiveram nos melhores tempos de sua vida. Então para as pessoas que estão, assim, insertando aquela grande viagem interior, para as suas coisas melhores, para os seus melhores sonhos, para as suas melhores esperanças e principalmente para as pessoas que estão voltando para o coração do Brasil.

Era uma Vez um Homem e Seu Tempo é o segundo disco de Belchior com maior número de músicas na lista das mais executadas do compositor.

“É um álbum do Belchior em estado pleno, apresentando sua completude e diversidade artística, repleto de frases poéticas memoráveis. Ele havia, até então, gravado apenas uma música feita em parceria (Sensual com Tuca) para seus álbuns, mas neste ele embala quatro de uma vez”, observa Mikael Henman Belchior, filho do compositor.

Para esse trabalho, Belchior assina parcerias com Toquinho em Pequeno Perfil de Um Cidadão Comum e Meu Cordial Brasileiro, com Gilberto Gil em Medo de Avião II e José Luiz Penna em Comentário a Respeito de John.

 Comentário a Respeito de John, é a quarta canção tocada de sua discografia.

“É uma música que eu já vinha cantando desde 1971, 72, e que me tocou muito sempre”, contou Belchior. Penna compôs a música com uma letra inicial que foi reformada por Belchior e teve algumas estrofes adicionadas.

— Como o próprio título indica, é um comentário a respeito de John Lennon. É um comentário a respeito de uma frase assim, que sempre marcou muito a minha relação com a música dos Beatles, que é “happiness is a warm gun”, a felicidade é uma arma quente. Já tínhamos até aqui uma poesia, uma declaração de Oswald de Andrade, onde ele dizia que a alegria é a prova dos nove, a alegria é que prova, é que confirma o significado e a certeza das hipóteses, dos propósitos estéticos, afinal de contas a arte se confirma quando ela se exprime em alegria, em possibilidade de felicidade. Então Comentário a Respeito de John é um comentário a respeito da felicidade, da alegria. A felicidade continua sendo a prova dos nove e uma arma quente.

A arte vazada e com quatro diferentes fotos no encarte dava a possibilidade de o ouvinte escolher qual seria o Bel da vez na capa | Foto: Reprodução/Noize

O disco seguinte, Objeto Direto (1980), foi o mais me marcou durante a pesquisa para esse texto. O disco abriu a década em que Belchior lançou 44 músicas inéditas, durante um período de crise na indústria musical.

Foi nesse disco que ele registrou pela primeira vez a canção Mucuripe, parceria com Fagner, do período em que frequentavam o Bar do Anísio.

O álbum traz a voz de Fagner em dueto com Belchior na canção Aguapé. A música havia sido lançada no ano anterior no disco coletivo Soro (1979) produzido por Fagner, — que na época era o diretor do selo Epic da CBS -, mas ganhou muito na versão gravada com o piano de Paulo César Willcox, responsável pelos arranjos de Objeto Direto.

Belchior fala de “amor e anarquia” em Seixo Rolado e traz a parceria Nada Como Viver, com o amigo Fausto Nilo. Foi durante a turnê de divulgação, subindo o país pelas estradas em direção à região Norte que, em dezembro daquele ano, Belchior recebeu a notícia da morte de John Lennon.

Embora seja apresentado com a capa branca em sua versão digital, o LP de Objeto Direto trazia em sua capa, um vazado circular no meio, com quatro opções de fotos para a escolha do ouvinte.

Belchior pediu a Angela uma das fotos que havia feito dele no Ceará para a seleção da capa, que traz outro retrato também no Ceará feito por Maurício Albano e duas fotografias feitas pelo artista plástico Hudinilson Jr. (1957–2013) no apartamento onde Belchior vivia com a família, na Rua Alfredo Ellis na Bela Vista, região central de São Paulo (SP).

“Ele chegava da gravação no Rio de Janeiro, os olhos brilhando com uma fita k7 dizendo que pedira pro técnico do estúdio. Colocava e observava as reações. E eu refletia que este seria nosso pano de fundo naquele ano, a cada ano, cada LP”, recorda Angela.

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