Primeira atleta brasileira a vencer uma prova individual como estreante olímpica, judoca Bia Souza celebra as conquistas de pioneiras e encoraja nova geração de mulheres no esporte
Por Maria Júlia Lledó
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Foi na infância que Bia Souza, medalhista de ouro nos Jogos Olímpicos de Paris 2024, descobriu uma forma de extravasar a peraltice que chamava a atenção dos pais. Ainda menina, matriculou-se em aulas de dança e natação, mas foi no tatame que encontrou seu lugar. Seu pai, o judoca aposentado Poscedônio José de Souza, foi quem levou Bia para assistir às lutas e entender as regras e a disciplina exigidas pelo esporte. Natural de Itariri, no interior de São Paulo, e criada em Peruíbe, litoral sul do estado, Bia iniciou sua trajetória no judô aos sete anos, em um projeto social da sua cidade.
Em 2012, ela decidiu se mudar para a capital paulista e passou a integrar a equipe do Palmeiras. No final do ano seguinte, depois de ser convidada para se juntar ao Esporte Clube Pinheiros – onde permanece até hoje –, começou a colher os frutos de uma carreira profissional que alcançou seu auge em 2024, em Paris. Reconhecida por seu sorriso e tranquilidade nas competições, Bia conquistou, aos 26 anos, a primeira medalha de ouro do Brasil nas Olimpíadas, e ainda trouxe para casa o bronze junto ao time brasileiro, na disputa por equipes.
A judoca reveza horas de descanso e treino, mas desvia de qualquer pressão sobre os próximos resultados. Com maturidade conquistada após anos de tatame, apoio de técnicos, nutricionista, fisioterapeuta, psicólogo, pais, amigos e do marido, o ex-atleta de basquete Daniel Souza, a ela se prepara para os Jogos Olímpicos de Los Angeles 2028. “Pode parecer demorado, mas para a gente passa voando. São quatro anos de uma nova preparação e vou batalhar em cima disso, porém não vou criar expectativa de resultados. Eu já tenho minhas próprias cobranças, e é com isso que eu vou lidar”, assegura a atleta.
Neste Encontros, Bia Souza celebra sua trajetória, encoraja novas mulheres a aderir à prática esportiva e fala sobre os desafios que enfrentou na carreira, como o processo de aceitação do próprio corpo, a forma de lidar com pressões e a conquista de confiar no seu talento.
A Bia Souza fora dos tatames é uma eterna menina sonhadora, que na infância aprontava demais. Sou a típica criança que, se a mãe piscasse, botava fogo na casa e aprontava horrores. Já cheguei a fazer natação e dança, mas não tinha nada que realmente pudesse me acalmar um pouco. Meu pai é um judoca aposentado e um dia ele me levou para assistir a um treino de judô. Foi amor à primeira vista: o pessoal lutando, caindo, levantando-se.
Virei para o meu pai e disse que queria fazer judô. Depois de uma semana, já estava de quimono e, desde então, não saí mais de cima do tatame. Eu sempre me destaquei, desde nova, nas competições, sempre viajei bastante, e conheci muitos técnicos. Um deles me chamou para o Palmeiras, no final de 2012, quando vim para a capital.
Uma coisa é praticar um esporte morando em casa de pai e mãe, com comida feita, cama arrumada, tudo certo e organizado. Outra coisa é aprender a se virar por si: acordar cedo, ir para a escola, lavar uniforme, roupa de treino, arrumar quimono. Tudo isso sem contar a maturidade que eu precisei ter muito cedo em relação aos problemas: lidar com dor, estar longe da família, sentir saudade. No final de 2013, quase para completar um ano no Palmeiras, eu fiz uma seletiva para o Esporte Clube Pinheiros, onde estou até hoje. Assim que entrei no clube, com 15 anos, comecei a me destacar nas categorias de base e a conquistar meus títulos mundiais. Desde nova, sempre tive muitas inspirações, não só na minha família, que é minha maior base e apoio, mas também no tatame, espaço que eu dividi com campeões como Leandro Guilheiro, Tiago Camilo e Rafael Silva. Isso foi extremamente inspirador, porque eles contavam suas histórias e isso me animava a escrever a minha também.
Foi aí [no Esporte Clube Pinheiros] que eu comecei a busca pelo sonho olímpico. Nos Jogos do Rio 2016, fui como sparring (a pessoa que ajuda o atleta titular). Eu ia lá para simular treinos e golpes de lutadores adversários. Ali, eu tive meu primeiro contato com uma Olimpíada, nos bastidores. Vi que era o sonho de todo atleta de alto rendimento. No ciclo dos Jogos de Tóquio 2020, briguei pela vaga, mas infelizmente não consegui. Coisas da vida. Depois, eu queria garantir a vaga o mais rápido possível para Paris, e foi quando conversei com Leandro Guilheiro, que me ajudou muito. Durante o ciclo, eu conquistei minhas três medalhas de campeonato mundial e, com isso, garanti a vaga para Paris. A preparação foi extremamente forte, sobrevivi e conquistei minha grande medalha de ouro e o bronze por equipe.
Faço um trabalho psicológico que considero extremamente importante não só para quem é atleta de alto rendimento, mas para todos. Por muito tempo, foi considerada uma questão de fraqueza buscar esse tipo de ajuda, mas é fundamental, ainda mais no caso do alto rendimento. É muita cobrança externa e interna. Ainda mais porque temos que lidar com questões de dor, lesões, perdas. Esse acompanhamento me preparou mentalmente e me fez evoluir não só como atleta, mas como ser humano: aprender a lidar com outras pessoas, a ter mais empatia, a me tratar melhor e a reconhecer meus limites. Principalmente nesse último ciclo [de Paris 2024], que teve altos e baixos. Um mês e meio antes das Olimpíadas, por exemplo, eu lutava no campeonato mundial e perdi na segunda luta. Houve muitas críticas na internet, mas na Olimpíada fui campeã. A gente fez um trabalho antes, durante e depois de cada competição, com um acompanhamento muito rígido em relação a isso. Falo com o meu coach, Jean Patrick, não só sobre judô, porque a mesma pessoa que é atleta, também é filha, esposa, amiga.
Sempre falei que para ser campeã olímpica, a gente tem que ganhar de qualquer pessoa, independentemente de quem seja. Nessas Olimpíadas de Paris, eu peguei o lado mais forte da chave, só que eu estava muito bem-preparada. Além disso, tive uma grande aliada ao meu lado, que foi a Maria Suelen [importante nome da história recente do judô], com quem disputei a vaga de Tóquio 2020. Isso fez total diferença, porque pude treinar exatamente com a realidade. Eu estava extremamente forte, no meu melhor momento, na minha melhor composição corporal, questão nutricional alinhada e psicológico também. Então, estava bem assegurada de todo o trabalho que eu tinha feito. Era minha primeira Olimpíada. Deixei para sofrer dentro dos treinos, no meu dia a dia, e fui lá para ser feliz. Sempre levo as competições como um dia divertido, para aproveitar. Eu não entrei no tatame com a cabeça em ser campeã, só estava ali querendo fazer o que fiz durante todos os treinos. Acho que estar muito bem-preparada foi o que trouxe toda a tranquilidade que vocês viram em cima do tatame.
Essa chave [da aceitação do corpo] mudou no ciclo para os Jogos do Rio 2016. Sempre fui destaque na minha turma: todo mundo pequenininho, e eu era alta e muito grande. Isso me constrangia muito. Não gostava do meu corpo, sempre falava: “por que não sou igual às outras meninas?”. E no Rio, conversando com a [judoca] Maria Suelen, ela disse: “Cada um tem seu jeito. Você tem um corpo lindo, você é forte, seu corpo é o seu material de trabalho. Você quer conquistar grandes coisas, mas como vai fazer isso se não cuidar do seu corpo?”. Foi algo que carreguei comigo: sou assim e está tudo bem. Minha família e meus amigos me amam, e eu sou dessa maneira. Sou uma mulher muito forte, preciso ser desse tamanho para conquistar tudo que eu quero. Antes, eu tinha vergonha de falar que eu era gorda. Hoje não: eu sou uma mulher preta, sou gorda, faço um esporte de luta e sou campeã olímpica. Amar o meu corpo me fez chegar aonde eu queria. Quero passar para todos os jovens que eles precisam se amar antes de querer o amor dos outros ou de conquistar qualquer coisa.
Sou muito grata a todas que vieram antes de mim, principalmente a Soraia André [pioneira na prática do judô durante a ditadura militar, período em que as artes marciais eram proibidas para as mulheres no Brasil], que sempre me inspirou. Essas mulheres precisaram abrir todas as portas, precisaram correr para a gente poder andar no tatame hoje. Essa é uma luta diária na qual estamos sempre batalhando para mostrar o quanto somos fortes e capazes.. Uma luta que ainda vai durar, mas que já evoluiu. Entre as Olimpíadas do Rio 2016 e de Paris 2024, o número de meninas inscritas no judô aumentou muito. O judô é, sim, um esporte para mulher. A gente está mostrando a nossa força e isso está fazendo com que as meninas comecem a se enxergar em nós e a querer, cada vez mais, praticar.
A judoca e medalhista olímpica Bia Souza participou da reunião virtual do Conselho Editorial da Revista E no dia 22 de novembro de 2024. A mediação do bate-papo foi de Ruth dos Santos, integrante da Gerência de Desenvolvimento Físico-Esportivo do Sesc São Paulo.
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