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Estamos, de fato, apodrecendo nossos cérebros? Esta é a pergunta que estampa a maior parte dos veículos de comunicação e que ganha memes, vídeos e figurinhas compartilhadas nas redes sociais. Embora a sociedade tenha noção do volume imensurável de conteúdos consumidos nas redes, entre “separar o joio do trigo” e “deixar a vida me levar”, a segunda parece ser mais confortável. Para o psicanalista Paulo Beer, pesquisador e professor convidado do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), há dois caminhos complementares que ajudam a responder a essa questão. “Um deles foca nos processos neuroquímicos e fisiológicos envolvidos em nossas atividades mediadas por tecnologias digitais. Sabe-se, por exemplo, que o uso de redes sociais aciona mecanismos de recompensa, algo que tem feito com que nomes de neurotransmissores, como dopamina, estejam presentes em conversas casuais. A oferta de recompensas fáceis poderia nos acostumar com atividades menos complexas e interessantes”, explica Beer.
Ou seja, durante rolagens infinitas no feed do Instagram, neurotransmissores decidem “relaxar”, deitar numa espécie de espreguiçadeira – afinal, para que fazer esforço? Eleita a palavra do ano de 2024 pelo dicionário Oxford, brain rot, ou “apodrecimento cerebral”, já é encarado com preocupação por profissionais de diferentes áreas do saber. São levantadas até mesmo dúvidas sobre quais implicações esse quadro acarretará ao processo cognitivo das atuais gerações quando envelhecerem. No presente, o chamado “apodrecimento cerebral” aponta ainda outro desafio: o comprometimento do pensamento crítico.
“A sobrecarga de informações está nos deixando incapazes de selecionar aquelas que são fundamentais para a nossa sobrevivência e, sobretudo, as que nos ajudam a tomar decisões importantes para a nossa vida individual e coletiva. Sob pressão, somos incapazes de selecionar o que nos interessa e, sobretudo, discriminar o que sabemos e o que desejamos saber, competência decisiva para a tomada de decisões funcionais em todas as áreas da nossa vida, e também para a manutenção da nossa saúde mental”, ressalta a especialista em educação midiática Januária Cristina Alves, mestre em comunicação social pela Universidade de São Paulo (USP).
Neste Em Pauta, Beer e Alves pedem sete minutos de atenção fora das telas para uma reflexão sobre o que está levando nosso cérebro a “apodrecer”.
Curadoria de informações: como evitar um “cérebro podre”
Por Januária Cristina Alves
Mais de 130 mil pessoas buscaram, ao longo de 2024, o significado da expressão brain rot (cérebro podre, em tradução livre). Segundo um dos mais respeitados dicionários do mundo, o Oxford, esta que foi a palavra do ano significa uma provável deterioração cerebral causada pelo excesso de consumo de conteúdos superficiais, em especial daqueles que circulam nas redes sociais. O dicionário registrou um aumento na pesquisa do termo de mais de 230%, o que indica uma certa preocupação das pessoas com a abundância de informações que circula na internet e com os efeitos que isso causa, como a sensação de ter a “cabeça sempre cheia” sem, no entanto, conseguir pensar direito por causa da exaustão.
O canal de notícias americano CNN publicou uma matéria revelando que uma empresa de saúde já oferece tratamento para o tal brain rot, identificando-o como “neblina mental, letargia, redução da capacidade de atenção e declínio cognitivo”. Ou seja, o brain rot ainda não é considerado doença pois não há indícios de que o cérebro realmente “apodreça”, mas os sintomas do “apodrecimento do cérebro” são um fenômeno que tem merecido pesquisas a respeito. O Newport Institute, organização estadunidense que reúne diversas instituições que estudam a saúde mental, afirma que essa sensação está ligada à sobrecarga de informações com as quais lidamos em nosso cotidiano e que isso tem causado dificuldade de concentração, déficit de produtividade no trabalho, ansiedade e até depressão.
Se a sensação de letargia que nos assola diante do feed infinito das nossas redes não é uma doença, há evidências de que a velocidade do fluxo dos nossos pensamentos fica muito longe da conexão online. Publicado em dezembro de 2024, na revista científica Neuron, um estudo realizado pelos cientistas Meister e Zheng, do Instituto de Tecnologia da Califórnia, comparou a velocidade do pensamento humano em relação à rede mundial de computadores, e os achados revelaram que o mundo hiperconectado em que vivemos e a profusão de informações com que temos de lidar deixaram o nosso cérebro, de fato, mais lento.
E se o processamento desse órgão já é vagaroso quando comparado a outros sistemas do corpo humano, provocando uma reação em que boa parte das informações que recebemos sejam “jogadas fora” porque não conseguem ser processadas, com relação ao fluxo de informações que nos chegam não é diferente. Ou seja, a percepção de que não damos conta de assimilar tudo o que se coloca à frente é verdadeira, absorvemos apenas aquilo que entendemos ser importante para nós. E é aí que temos um dos grandes problemas do nosso tempo: a sobrecarga de informações está nos deixando incapazes de selecionar aquelas que são fundamentais para a nossa sobrevivência e, sobretudo, as que nos ajudam a tomar decisões importantes para a nossa vida individual e coletiva. Sob pressão, somos incapazes de selecionar o que nos interessa e, sobretudo, discriminar o que sabemos e o que desejamos saber, competência decisiva para a tomada de decisões funcionais em todas as áreas da nossa vida, e também para a manutenção da nossa saúde mental.
Usar a internet hoje em dia já não é mais uma escolha, mas uma necessidade. A maior parte de nós usa a rede para trabalhar, obter informações, para entretenimento e tantas outras funcionalidades. Aqueles que não têm acesso a uma conectividade significativa estão excluídos, tanto do ponto de vista pessoal, quanto profissional e econômico. Diante desse cenário, a pergunta que fica é: como é possível evitar um “cérebro podre”? O que fazer para conseguir usar as redes de modo equilibrado e inteligente? Como usar um cérebro “analógico” em um meio cem por cento digital?
A resposta mais imediata é sempre: faça um “detox digital!”. Diminua as horas passadas diante das telas, durma longe delas, pratique exercícios físicos e aumente as horas ao ar livre. Ou seja, o foco da solução está vinculado ao dispositivo quando, na verdade, trata-se de algo mais complexo. Manter o cérebro saudável e criativo neste contexto tem mais a ver com desenvolver o pensamento crítico e fazer uma curadoria de informações do que apenas controlar o uso dos aparelhos. É preciso ir além do celular e refletir sobre o modo como acessamos e organizamos os conteúdos que nos chegam indiscriminadamente pelas redes.
“A internet ainda é um mundo selvagem e perigoso. (…) A imensa quantidade de coisas que circula é pior que a falta de informação. O excesso de informação provoca amnésia. Informação demais faz mal. Quando não lembramos o que aprendemos, ficamos parecidos com animais. Conhecer é cortar, é selecionar. (…) É filtrar”, afirmou o escritor e filósofo Umberto Eco (1932-2016). Cortar, selecionar, filtrar é fazer a curadoria da informação, transformando-a em conhecimento.
E para isso, é preciso exercitar o pensamento crítico, aquele que analisa a situação a partir de critérios estruturados e organizados de modo a não apenas compreender a experiência, mas transformá-la em instrumento para modificar a realidade. Há quem já esteja decretando a “morte do pensamento crítico”, ainda mais com o advento da Inteligência Artificial. No entanto, é preciso lembrar que o ser humano é, e sempre foi, aquele que questiona e busca entender o que passa com ele, portanto, o pensamento crítico está em sua constituição.
A prática do pensamento crítico vale para o mundo on e off-line pois está profundamente ligada ao ato de “ler o mundo”, que o educador Paulo Freire (1921-1997) chamava de “a competência das competências”. E ela implica uma postura de atenção às nossas limitações, percebendo que nossa memória é propensa a erros; em refletirmos sobre nossos pensamentos, emoções e crenças, evitando julgamentos precipitados e analisando os fatos a partir de evidências; em atentarmos para a manutenção de um “ceticismo necessário”, questionando o que nos é apresentado, observando todos os cenários possíveis; em termos a mente curiosa para apreender o novo, fazendo perguntas que vão além do lugar-comum; e, sobretudo, que consideremos as incertezas e lacunas do conhecimento, entendendo que nem tudo é “preto e branco” e que os fatos têm suas nuances e complexidades, que devem compor a nossa visão de mundo.
Parafraseando George Orwell (1903-1950) no grande clássico 1984 (1949) que, aliás, explica brilhantemente o nosso tempo, é preciso o “duplipensar”, ou seja, aceitar simultaneamente crenças mutuamente contraditórias como válidas, muitas vezes em contextos sociais distintos. Exercitar o pensamento crítico é uma urgência do nosso tempo. Só assim, preservaremos o nosso direito inalienável de pensar livremente. Assim, não há “cérebro podre” que sobreviva.
Januária Cristina Alves é mestre em comunicação social pela Universidade de São Paulo (USP), jornalista, especialista em educação literária e em educação midiática. É autora de mais de 50 livros infantojuvenis e duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti, colunista do Nexo Jornal e membro da MIL Alliance – Aliança para alfabetização midiática e informacional da Unesco.
Programados para apodrecer
Por Paulo Beer
Nossos cérebros estão apodrecendo? Pode parecer estranho, mas esse tipo de pergunta tem habitado conversas e debates que possuem como tema os efeitos decorrentes de como usamos novas tecnologias digitais. Quem nunca pegou o celular para ver as horas e se deu conta, depois de alguns minutos, que estava rolando a tela de alguma rede social a esmo, sem se lembrar do que viu nesse tempo? Não por acaso, o dicionário Oxford escolheu, em sua tradicional eleição da “palavra do ano”, o termo brain rot (podridão ou apodrecimento cerebral) como a ganhadora de 2024. O termo alude a um possível processo de deterioração intelectual, que faria com que ficássemos menos afiados: lentos, pouco responsivos, até mesmo preguiçosos em nossas tarefas cognitivas, fazendo com que empreguemos somente uma fração da capacidade que, até pouco tempo atrás, usávamos em nosso dia a dia.
Brain rot não é uma expressão nova. O filósofo Henry David Thoreau (1817-1862) afirma em Walden, publicado em 1854, que além de curar a podridão das batatas, também era necessário curar a podridão cerebral – referindo-se às mazelas da sociedade industrial. Mais de 150 anos depois, o termo volta à cancha num cenário um tanto diferente: não se trata de questionar (somente) os efeitos nocivos da industrialização, mas de colocar em foco os efeitos do uso de mídias digitais.
Esse tema vem ganhando relevância. Embora as novas tecnologias ofereçam diversas facilidades, o uso em excesso traz malefícios nada ignoráveis. Aumentos significativos em sintomas como ansiedade, depressão, dismorfia corporal e agressividade têm sido ligados à popularização de smartphones. Somam-se também sintomas físicos, que vão desde obesidade até problemas oftalmológicos. Algo apontado no estudo Em busca do tempo perdido, encomendado pelo governo francês para instruir suas políticas públicas em relação ao uso de telas por crianças e adolescentes. Mas isso não se limita a essa faixa etária: os mesmos (e outros) problemas são encontrados em adultos e idosos.
Nessa esteira, a ideia de podridão cerebral é uma tentativa de nomear algo mais amplo: para além de usos produtivos, estamos exaustos e passamos boa parte do tempo consumindo conteúdos desinteressantes e repetitivos. Vídeos curtos que não suscitam questões ou pensamentos; discussões rasas em que a “lacração” se sobrepõe aos argumentos; passeios por anúncios de coisas sem grandes utilidades, mas que dividem nossos olhares com outras imagens sem importância. Talvez o ponto máximo seja o movimento repetitivo de rolar a tela de uma rede social ao infinito, sem fazer nada além de um clique no botão de curtir ou compartilhar. Estamos, de fato, apodrecendo nossos cérebros?
Há dois caminhos complementares que ajudam a responder a essa pergunta. Um deles foca nos processos neuroquímicos e fisiológicos envolvidos em nossas atividades mediadas por tecnologias digitais. Sabe-se, por exemplo, que o uso de redes sociais aciona mecanismos de recompensa, algo que tem feito com que nomes de neurotransmissores, como dopamina, estejam presentes em conversas casuais. A oferta de recompensas fáceis poderia nos acostumar com atividades menos complexas e interessantes.
Porém, como mostra a psiquiatra Anne Lembke, autora do livro Nação dopamina (Vestígio, 2022), a própria discussão neurocientífica não dispensa que pensemos sobre a dimensão social. A plasticidade que define o funcionamento dos neurotransmissores faz com que diferentes tipos de estímulos possam produzir efeitos de captura, e a maneira como lidamos socialmente com o prazer e o desprazer modifica nossa tolerância à aversão, e também os modos de obtenção de satisfação. O que leva ao segundo caminho de discussão, que foca em como as interfaces são construídas para aumentar a participação, para manter as pessoas conectadas pelo maior tempo possível.
Quando a produção de engajamento é colocada em primeiro plano, algo salta aos olhos: não se trata somente de produzir experiências prazerosas, mas também (e, às vezes, sobretudo) vivências angustiantes ou agressivas. O que explica, por exemplo, o fato de discussões acaloradas, que muitas vezes levam a cancelamentos e linchamentos virtuais, serem impulsionadas por redes sociais. Como mostra o jornalista Max Fisher em A máquina do caos (Todavia, 2023), conteúdos que suscitam sensações negativas como ódio, nojo, medo e indignação são privilegiados nos feeds, por aumentarem a participação dos usuários.
Aumentar o engajamento é crucial para a monetização das redes sociais: quanto mais engajamento, mais dados são produzidos e coletados, e são esses dados que possibilitam a oferta de serviços e anúncios direcionados. A professora de Harvard Shoshana Zuboff, em A era do capitalismo de vigilância (Intrínseca, 2021), demonstra como as ferramentas oferecidas pelas empresas de tecnologia resultam numa possibilidade inédita de acúmulo de dados, os quais são usados para a produção de previsibilidade e modificação comportamental: trata-se de conhecer e produzir ações futuras, e assim oferecer mercadorias.
Nesse processo, o efeito surpresa é crucial: aquele que acontece quando vemos nossos desejos adivinhados pelas redes antes mesmo de nos darmos conta. Isso significa que a velocidade do processamento de dados das empresas é maior que a de nossa própria elaboração, o que possibilita que se antecipem e ofereçam algo que ressoa em nós, mas não estava claro. Uma sensação incômoda de se deparar com algo que já estava lá, mas ainda não havia sido nomeado; algo ainda informe e que, quando ganha forma dessa maneira nos captura: nos impele a participar de um debate ou aumenta a chance de clicarmos em um anúncio.
Se prever e modificar nossos comportamentos é central, a pergunta sobre o que tem feito nossos cérebros apodrecerem ganha outros contornos. Afinal, quando ficamos exaustos e lentos, ficamos também mais suscetíveis e influenciáveis. Considerando a rapidez com que pulamos de um conteúdo a outro, a velocidade com que navegamos por diversos afetos e a maneira como nossa atenção é dividida – e que isso tudo é intencionado pela programação das redes –, então a tal podridão parece ser, isso sim, produzida. Brain rot é um sintoma causado por ambientes que produzem laços frágeis e agressivos, e atrapalham nossa capacidade de elaboração. Será que já estamos exaustos demais para escolher algo diferente disso?
Paulo Beer é psicanalista, pesquisador, professor convidado no PPG em Psicologia Social da Universidade de São Paulo (USP), onde desenvolve uma pesquisa sobre os impactos subjetivos de novas tecnologias digitais. Membro do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise (LATESFIP), da International Society of Psychoanalysis and Philosophy, da Associação de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental e do Núcleo de Estudos e Trabalhos Terapêuticos (NETT).
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