Camadas do real na pintura de José De Quadros

28/08/2024

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Com mais de três décadas de produção entre Brasil e Alemanha, artista José De Quadros interpreta, em suas telas, questões urbanas, conflitos históricos e injustiças sociais (foto: Coleção Particular).

POR LUNA D’ALAMA 

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Desenhar árvores, paisagens e outros elementos da natureza era atividade constante na infância de José De Quadros, nascido em Barretos (SP), no fim da década de 1950. Mas a vida o distanciou das artes visuais, com exceção de rápidas visitas a museus, nos intervalos de almoço, quando o rapaz trabalhava em um banco e estudava administração, no Rio de Janeiro (RJ). Chegou a atuar no mercado financeiro em São Paulo (SP), até que, em 1985 resolveu deixar o universo de dividendos e ações para trás e perseguir o sonho de criança: ser artista. A decisão não foi bem-vista pela família, porém, De Quadros acredita ter contado não só com o talento, mas com a sorte – “foi um tiro no escuro”.  

O criador autodidata, então, no fim da década de 1980, conseguiu uma vaga na Faculdade de Artes Plásticas de Kassel, na região central da Alemanha, onde se especializou em pintura. “Meu professor, adepto do realismo, não entendia bem o que eu fazia, mas gostava. Não sou um artista clássico ou comercial. Meus trabalhos são híbridos, têm muitas influências. Gosto da mistura, da simbiose, de criar fotos com cara de pinturas e quadros que parecem imagens”, resume De Quadros, que vive em Kassel, a 400 quilômetros de Berlim, há 35 anos. Entre os nomes que o inspiram estão Vincent Van Gogh (1853-1890), Claude Monet (1840-1926), Almeida Júnior (1850-1899), Iberê Camargo (1914-1994), e os contemporâneos Anselm Kiefer e William Kentridge.  

O artista já participou de diversas mostras coletivas e individuais nos dois lados do Atlântico, além de ter obras em coleções como o Acervo Sesc de Arte. Mesmo com a vida estabelecida na Europa, o pintor ainda cultiva suas raízes no Brasil, que visita todo ano e onde mantém um segundo ateliê, numa antiga mercearia no Itaim Paulista, na zona Leste de São Paulo. Em mais de três décadas de intensa produção, De Quadros coleciona séries de pinturas sobre seus ateliês, de mãos de trabalhadores, florestas, animais desenhados sobre jornais de propaganda nazista e outras obras que sobreviveram a um incêndio criminoso, ocorrido em seu primeiro estúdio na Alemanha, em 2006.  

A partir de diferentes técnicas, suportes e materiais, os desenhos e pinturas do artista abordam questões urbanas, sociais e humanitárias, além de períodos e acontecimentos trágicos da história, como o nazismo, os genocídios armênio (na obra ARARAT) e indígena (no trabalho Réquiem para Maria Rosa ou Maria Rosa encontra-se com Hans Staden), e a situação de indivíduos refugiados, perseguidos ou segregados. “Contemplo o mundo e vejo as pessoas. Tento me colocar no lugar do outro. Busco refletir sobre o que nos rodeia para a construção de novos olhares, contra preconceitos étnicos, raciais, de gênero etc.”, destaca. 

Algo que atrai o pintor, e pode ser observado em inúmeros trabalhos, é um processo chamado “pentimento”, palavra de origem italiana que significa uma “pintura com várias camadas sobrepostas”. “É como um arrependimento, algo que você pinta e, com o tempo, aparece o que está atrás. Assim como faço palimpsestos (reutilização de um material-base que revela traços da obra anterior) com bulas de remédios e jornais alemães do período nazista, dando-lhes novas simbologias”, explica. Segundo a historiadora da arte e curadora Tereza de Arruda, que acaba de organizar um livro sobre vida e obra de José De Quadros [leia mais em Sobre o viver], seu projeto com jornais, por exemplo, é uma forma de garantir a sobrevivência de histórias e memórias. São desenhos que parecem banais, mas que escondem uma grande tragédia da humanidade. “Todo o trabalho dele está respaldado na realidade, no cotidiano, em experiências que as pessoas vivenciam. São questões emergenciais que não perdem a atualidade e demandam uma imersão, um entendimento com confrontação”, avalia. 

Para Arruda, a vasta produção de De Quadros se potencializa, ainda mais, com sua vida (e seu olhar) dividida(o) entre dois continentes. “Esse distanciamento geográfico e físico é produtivo, pois ele consegue enxergar tanto o Brasil quanto a Alemanha com um filtro, sob perspectivas diferentes, por meio de uma estética que caminha ao lado de ideais de liberdade e explora espaços de convivência, trabalho, discussões, conflitos e disputas de poder”, analisa. Na visão do artista, existem paralelos entre pessoas periféricas no Brasil e imigrantes ou refugiados na Alemanha. “Gostaria que todos tivessem paz e condições básicas de vida (moradia, alimentação, saúde e estudos), oportunidades de se realizar, de se desenvolver e perseguir seus sonhos, como eu tive. Na Alemanha, as pessoas se perguntam por que vivem. No Brasil, muitos só pensam em sobreviver. Precisamos viver, e não apenas sobreviver”, finaliza.

Para ver no Sesc
Sobre o viver
Pela primeira vez, pintor José De Quadros tem repertório artístico reunido em livro com entrevista e artigo inéditos, além do registro fotográfico de mais de 80 obras

Ateliê expandido. Série O ateliê de São Paulo (2004-2006). Óleo sobre tela. 150 x 300 cm (foto: Coleção Particular)

Em 2010, José De Quadros ganhou uma exposição individual no Sesc Pompeia, intitulada sobreVIVER. O nome tem duplo significado: “sobre o viver” e “sobreviver” como verbo, pois o artista visual resgatou obras que resistiram a um incêndio na Alemanha, em 2006, e, também, saiu vivo de um acidente grave no interior de Sergipe, onde, aos 50 anos, foi atropelado por um motociclista alcoolizado, fraturou o crânio e chegou ao hospital em estado grave.

A partir da mostra no Sesc Pompeia foi gestada a ideia de um livro que reunisse obras e informações sobre o artista, natural de Barretos (SP) e cidadão alemão há mais de três décadas. Ainda neste ano, as Edições Sesc São Paulo lançam José De Quadros – sobreVIVER ainda, organizado pela historiadora e curadora de arte Tereza de Arruda. “Esse livro é a grande monografia do artista, um produto coletivo, fruto de muitas trocas e colaborações. Inclui uma entrevista inédita com ele, feita a várias mãos [pela educadora Bel Santos Mayer e pelo coletivo Vozes Daqui de Parelheiros], além de um artigo da arte-educadora Rita de Fitas. O objetivo é multiplicar as perspectivas sobre seu trabalho”, destaca Arruda. Segundo a organizadora, a publicação faz um recorte de várias fases do pintor, interligando fatos históricos e globais a suas vivências pessoais. “Selecionamos mais de 80 obras, de 1990 até 2023. Mas, esse não é um trabalho acabado, definitivo, pois ele continua em atividade”, acrescenta.

Segundo Luiz Deoclecio Massaro Galina, diretor do Sesc São Paulo, o repertório visual do artista tem figurado em diversas exposições realizadas pela instituição. “Apesar da extensa colaboração com o Sesc e outras organizações culturais brasileiras, José De Quadros ainda não havia sido contemplado com uma publicação dedicada ao conjunto de seu trabalho, o que reforça a pertinência do livro, que chega para preencher essa lacuna”, ressalta.

EDIÇÕES SESC SÃO PAULO
José De Quadros – sobreVIVER ainda (2024)
Organização: Tereza de Arruda
sescsp.org.br/edicoes

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