O Selo Sesc lança Bitita – As composições de Carolina Maria de Jesus que recupera a obra musical da escritora (e compositora!) nascida em Sacramento (MG). No álbum digital, o protagonismo está nas vozes e no batuque. A responsável pela produção de Bitita é Sthe Araujo. Segundo ela, a ideia é a de retomar tradições musicais como cantos de trabalhos e sagrados, em que a melodia é conduzida diretamente pela voz, contando também com o coro formado por homens. Você pode escutá-lo nas principais plataformas de áudio e no Sesc Digital.
Mas essa história começa muito antes da era dos streamings, em 1961. Um ano após o lançamento do primeiro livro de Carolina Maria de Jesus, o renomado Quarto de Despejo, a escritora participou da gravação que transformou suas composições musicais em LP. Com o mesmo nome da obra que a fez famosa, a gravadora RCA Vitor lançou o álbum cujas 12 faixas homenageavam uma de suas paixões: o carnaval, com seus sambas e marchas.
Já a trilha de Bitita – As composições de Carolina Maria de Jesus começou com o lançamento do single Moamba em fevereiro. Com as vozes de Nega Duda e Sthe Araujo, a canção conta sobre as mazelas da pobreza com versos como “Eu não tenho casa / Nem comida pra comer / Ai, meu Deus, trabalho tanto / E vivo nesse miserê”. A escritora que transformou sua vivência como moradora na favela do Canindé em São Paulo em arte trouxe também à música seu olhar perspicaz sobre a pobreza, o racismo, a moradia precária. Ela criou crônicas de um cotidiano que é reconhecido até os dias atuais em inúmeras cidades brasileiras.
A reedição deste álbum foi idealizada no contexto da curadoria da exposição Carolina Maria de Jesus: um Brasil para os brasileiros, realizada originalmente pelo Instituto Moreira Salles. A mostra, que passou pelas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Sorocaba e está em cartaz até 12 de março de 2023 no Sesc Rio Preto, apresenta ao público a produção autoral de Carolina, além de destacar facetas pouco conhecidas de sua produção, como as incursões como compositora e cantora. Junto com o álbum Quarto de Despejo, estão sob guarda do Instituto Moreira Salles desde 2006 dois cadernos manuscritos (Um Brasil para os brasileiros: contos e poemas, e outra coletânea do mesmo gênero, sem título), itens do acervo da escritora.
A exposição, o lançamento do single e o álbum digital reforçam a importância dessa figura tão significativa para a história da população negra no Brasil. Escritora de sua própria história, Carolina Maria de Jesus é uma legítima intérprete do país. Alguém que não só entendeu de modo crítico os problemas do Brasil, como inclusive os viveu em seu próprio corpo. E é através de seu legado, sobretudo em palavras escritas, que tantos outros artistas interpretam e reinterpretam suas obras, tentando superar os desafios enraizados neste território.
Em formato digital, o álbum Bitita – As composições de Carolina Maria de Jesus está disponível nas principais plataformas de áudio e no Sesc Digital. Nos dias 8 e 9 de abril, o show de lançamento chega ao Sesc Pompeia; os ingressos já estão disponíveis.
Certo dia, numa oficina de escrita inspirada na obra da escritora Carolina Maria de Jesus, a percussionista Sthe Araujo escreveu, após constatar a dureza da vida nos últimos anos: “Pois é, Carolina, tenho tanta coisa pra dizer, são tantas misérias que eu poderia escrever mil cartas, mas estou cansada de escrever desgostos, se eu pudesse só pensaria em música”. Através de um convite do Selo Sesc, Sthe teve a oportunidade de repensar Carolina em música, essencialmente a obra musical da autora, aspecto que talvez seja o menos conhecido de sua produção.
Carolina Maria de Jesus é uma das maiores escritoras brasileiras. As crônicas cotidianas descritas em seus diários, assim como sua obra ficcional, talvez sejam o retrato mais profundo da vida do povo brasileiro. Angústias, lutas e felicidades sutis escritas com o cuidado de quem sabia a importância de ser lida.
Após anos de esquecimento, a autora nascida na cidade de Sacramento (MG) adentra o século XXI sendo redescoberta e apreciada. Sua obra atualmente é amplamente discutida em exposições, artigos, workshops e releituras, além de servir de inspiração para novas autorias, principalmente de outras mulheres negras.
O que pouca gente sabe é que, além de escritora, Carolina cantou. Ela compôs, cantou e interpretou a própria obra reunida no disco Quarto de Despejo, lançado pela RCA Victor em 1961. Toda a coragem, humor ácido e ironia do livro homônimo se desdobram e se apresentam em forma de musicalidade – claro – negra. Afinal, ironia e sagacidade são tecnologias pretas de sobrevivência que Carolina dominava como ninguém.
Carolina de Jesus passou boa parte de sua vida na cidade de São Paulo, tendo relatado a vida na extinta favela do Canindé, às margens do Rio Tietê. Essa conexão com o território periférico de São Paulo é apenas uma das inúmeras intersecções da obra da artista com a trajetória da percussionista Sthe Araujo, cria da Pedreira, zona sul de São Paulo, que dirige e produz esta releitura do disco Quarto de Despejo, 60 anos após seu lançamento.
Cabe dizer que Quarto de Despejo foi o livro mais lido de Carolina Maria de Jesus não só pela qualidade poética e pela maneira sarcástica de expor problemas estruturais da sociedade, mas também pelo fetichismo de uma elite “letrada” em consumir informações sobre os “favelados” diretamente da segurança de suas poltronas, em suas casas de alvenaria. O fetichismo pelo sofrimento dos pobres, negros e favelados segue ainda sendo uma forma de racismo que insiste em colocar essa camada populacional como “vítima” de sua própria sorte. O disco de 1961 recebeu o nome do livro aproveitando o sucesso que Diário de uma favelada alcançou. Sthe Araujo, contudo, numa sensível mirada, renomeia o disco com afeto: escolhe chamar a obra de “Bitita”, apelido de infância de Carolina e também título de seu terceiro diário, postumamente publicado.
Bitita é a força do olhar para o passado, alimentando a revolta e o ímpeto do presente. É rememorar Carolina com carinho e respeito, e não apenas como uma “favelada”. Assim, o disco Quarto de Despejo ganha nova roupagem a partir de uma profunda pesquisa pessoal de Sthe Araujo sobre a percussão afro-brasileira. Pesquisa esta que vem se desenvolvendo há anos e em diferentes projetos, como a banda Funmilayo Afrobeat Orquestra, na qual vem construindo – juntamente com AfroJu Rodrigues – uma assinatura percussiva única.
Em Bitita, tudo se constrói pela base: a harmonia e o ritmo se misturam pelas nuances das vozes dos tambores, da agudíssima cuíca ao grave estrondoso dos dununs. Variando peles, texturas e timbres, a percussão constitui o aparelho fonativo do disco e compartilha a fala com os intérpretes convidados: Nega Duda e Girlei Miranda, do grupo Ilu Obá De Min e, fechando o trítono de cantores, a voz masculina de Mestre Nico, multiartista recifense radicado em São Paulo.
Quando instrumentos melódicos e harmônicos são convidados à baila, isso se dá no intuito de engrandecer e reforçar o sentido percussivo da fala, da letra, do jogo poético e do drible de Carolina, com a contribuição de músicos de peso: Henrique Araújo no cavaquinho, em Vedete da Favela; guitarra de Lello Bezerra, em Simplício; e trombone de Allan Abbadia em Rá, ré, ri, ró, rua. Fechando o time de musicistas, o naipe de percussão é formado por Xeina Barros, Afroju Rodrigues, Maurício Badé, Cauê Silva e a própria Sthe Araujo, artistas com referências distintas e trajetórias ímpares que se somam e se complementam na busca por explorar diferentes sotaques da música afro-brasileira. Os coros foram compartilhados por Pedro Lucas Pillar, Sthe Araujo e Caê Rolfsen, Aloysio Letra, e Tiganá Macedo. A co-produção ficou nas mãos de Caê Rolsfen e a edição e a captação foram feitas por Bruno Prado.
Bitita faz reverberar a voz de Carolina, mas não apenas isso, dentro dessa releitura experimental, ecoam múltiplas vozes negras passadas, presentes e futuras.
Bitita – As composições de Carolina Maria de Jesus está disponível para audição nas principais plataformas de áudio e gratuitamente no Sesc Digital.
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