Leia discurso da atriz, na abertura de seminário internacional da Funarte, que acontece no Sesc 14 Bis, até 19 de setembro
“Acho que cada alma de artista que não tem condições de se desenvolver encurta o nosso tamanho coletivo”, declarou a atriz e cantora Zezé Motta, em um discurso comovente, na abertura do “Seminário Internacional Políticas para as Artes: Imaginando Margens”, na terça (17/9), no Teatro Raul Cortez, do Sesc 14 Bis. O evento, que acontece até 19 de setembro, é realizado pela Fundação Nacional de Artes (Funarte), o Ministério da Cultura e o Sesc São Paulo para marcar a inauguração do “Programa Funarte de Pesquisa e Reflexão”. Com esta iniciativa, a Fundação propõe uma retomada, com foco na construção da Política Nacional das Artes (PNA), que deve formular e orientar políticas públicas para criação, formação, difusão e memória dos sistemas das artes no país.
Na performance inédita “Uma carta para as artes brasileiras de ontem, hoje e amanhã”, Zezé Motta traçou um panorama afetivo de sua relação com o universo artístico, a partir de memórias familiares, de encontros que marcaram sua trajetória no teatro, cinema e na música, e de reflexões sobre realizações, impasses e lutas nesses mais de 50 anos de carreira. Na sequência, a abertura institucional teve a presença da Presidenta da Funarte, Maria Marighella, do secretário-executivo do Ministério da Cultura, Marcio Tavares, e do Diretor do Sesc São Paulo, Luiz Galina.
Mais de 40 convidadas e convidados, nacionais e internacionais, de diversos campos do conhecimento, participam do evento, abordando temas como diversidade, processos criativos e liberdade artística. Saiba mais sobre a programação aqui e assista ao vivo pelo youtube.com/funarte.
A seguir, leia a íntegra do discurso de Zezé Motta.
“A benção, dona Maria Elazir, minha mãe, a benção seu Luís Motta, meu pai, porque falar em arte me leva de volta a uma casa simples onde a criança que eu fui podia ver a mãe, costureira, cortando, juntando e dando vida aos tecidos, tinha técnica e arte ali naquele mundo entre linhas, moldes e cores. Meu pai, se eu pudesse resumir em uma imagem o meu encontro com a arte, será sempre você com o violão nas mãos, seus dedos deslizando aquelas cordas e a casa se transformando, eu fui sua espectadora entusiasmada e te agradeço por plantar a música em mim. Naquele rádio moravam Ângela Maria, Emilinha, Marlene, Nora Ney e eu podia ouvi-las, aprendia letras e melodias com elas e com meu pai.
Falar às artes brasileiras de ontem é poder saudar essas mulheres que vieram antes de mim na música, no teatro, no cinema. Fico imaginando como tudo seria caso as artes fizessem parte da cesta básica de nossas famílias brasileiras. Acho que apesar de tudo, eu tive sorte.
Não posso olhar para trás sem imaginar também tantos talentos negros que não tiveram escolha, oportunidade, potenciais que se foram desse mundo sem poder cantar, pintar, dançar, representar, porque pra minha gente o caminho é mais difícil. Meu pai tocava na noite vez ou outra, mas, a urgência básica do viver fez dele motorista, mas, imagino que na verdade o Brasil perdeu um pouco porque não teve a chance de ver aquele músico de onde eu brotei. Acho que cada alma de artista que não tem condições de se desenvolver encurta o nosso tamanho coletivo.
Falar ao ontem é também reverenciar artistas com quem trilhei o meu caminho, aprendi e ensinei, uma coleção de gente admirável, mestras e mestres com quem sigo e que seguem de alguma maneira em mim. A benção Maria Clara Machado, Giane Rato, Zé Celso Martinez Corrêa, minha comadre Marília Pêra, Luiz Melodia, Leá Garcia, Jards Macalé, Ruth de Souza, Sandra Breá, Augusto Boal, Chica Xavier….porque arte também se aprende no convívio, no fazer, nas salas de escolas, nas salas de ensaio, vendo outra artista em cena, na viagem pro show, no que a gente pode ter acesso. Que a memória de nossas artes e de nossos artistas possa seguir ecoando e nos fazendo pensar sobre ontem e o que podemos construir agora, um país precisa ser capaz de cultivar o legado de tanta gente que transformou o seu tempo e nos transformou pela arte.
Falar às artes de ontem, hoje e amanhã me coloca também em 1968, na minha estreia profissional no coro do espetáculo Roda Viva, com o Zé Celso e com a polícia invadindo o teatro aqui em São Paulo, agredindo os artistas e censurando a peça. Ou, me vejo fazendo Arena conta Zumbi com o Augusto Boal lá nos Estados Unidos, lembro que todos fazíamos muitos personagens e sempre alguém vinha a frente e dizia “eu sou Zumbi”. Foi lá, naquele auge empoderado do movimento negro que repensei a estética e a política dos meus cabelos. Muito jovem eu aprendi que arte e política andam juntas, que estética é política, que o fato de me recusar a passar a vida fazendo papéis secundários de empregadas domésticas, com todo o respeito que tenho a cada uma delas, era uma posição política que poderia alterar a política da TV. Faço empregadas domésticas sem nenhum problema, desde que elas sejam as protagonistas da novela e tenho dito!
A minha história também se entrelaça com a história dessa Fundação Nacional de Artes-FUNARTE, quando ela estava nascendo, ali em 1975 e o Brasil ensaiava ser outro país depois de tanta dor, eu gravava Xica da Silva com o querido Cacá Diegues, filme que mudaria a minha vida para sempre. Naquele momento, a arte me levou para mais de 16 países expandindo meu mundo e levando esse Brasil que eu carrego para tantas paisagens.
A Funarte criou um projeto inesquecível que ficou plantado no coração do Brasil, se chamava Pixinguinha, talvez vocês não se lembrem… era 1978 e eu fazia um show com Johnny Alf. Depois veio o encontro mágico com meu amigo Luiz Melodia na edição de 1979, depois, eu estava lá cantando nos 10 anos da Funarte em 1986, ao lado da Leci Brandão, do Itamar Assumpção. Com o Ministério da Cultura também vivi momentos históricos apresentando uma das aberturas da sonhada Conferência Nacional de Cultura.
Qual o nosso papel como artistas nesse mundo de meu Deus? Como foi e é pra mim ver os espaços para artistas negras e negros? Muitas perguntas me acompanharam ao longo desses anos todos, na década de 1990 eu criei um projeto que oferecia formação artística em comunidades pobres do Rio de Janeiro, quanta riqueza naqueles olhares, quanta fome de arte, de se expressar, de ter uma profissão, de ter dignidade. Em outro momento, eu me cansei de ver sempre a meia dúzia de artistas negros na TV e criei o CIDAN – Centro de Informação e Documentação do Artista Negro, me vi na obrigação de ajudar a cadastrar, a divulgar que éramos muitas e muitos e muito talentosos, pra não ter que ouvir nunca mais de algumas pessoas que não tinha ou não conheciam artistas negros. Outras vezes, participei da gestão do Retiro dos Artistas, porque não é possível ver quem dedica a vida ao trabalho da arte não ter direito a nada, nem a uma velhice menos precária.
Quando penso no futuro, estar aqui hoje abrindo esse Seminário Internacional de Políticas para as Artes, me parece uma imagem bonita e grávida de esperança: seremos capazes de dar ao Brasil uma política para as artes? Essa política poderá dar conta do tamanho e da diversidade que somos? Essa política pode reparar e corrigir desigualdades tantas? Essa política poderá nos oferecer continuidade, direitos trabalhistas, previdenciários e autorais? Essa política vai pensar o papel das artes na construção do país que merecemos e temos direito, garantindo as liberdades necessárias? Uma política para as artes que dará conta de dialogar com os desafios desse século e da continuidade da vida no nosso planeta? Eu torço muito para que a gente consiga aproveitar essa chance e isso seja possível. Que orgulho e alegria eu vou sentir em poder ver na gestão da querida Margareth Menezes, das mãos de uma mulher que representa tantas de nós, o Brasil finalmente ter uma política para as artes que sobreviva ao tempo e as tempestades, como o nosso SUS!
Acho que a arte pra mim é um chamado, por isso vim aqui hoje encontrar vocês, desejar boa sorte na tarefa desse momento histórico.
Aqui, nesse marco dos meus 80 anos de vida, antes de mais nada, eu agradeço a Deus a dádiva de seguir cantando e contando histórias, é um presente muito bonito perceber que esse rastro de vida atrás de mim se mistura e também ajuda a contar tanto da história de um povo, de um país, de suas artes e de suas lutas. Eu agradeço as flores em vida que tenho recebido das novas gerações. E pra terminar, gente, eu aviso a vocês que sou movida a paixão, se não tiver uma eu invento, agora mesmo, quero lançar disco, fazer show, gravar um filme novo, eu só sei existir assim, fazendo arte e acreditando que essa arte que nós fazemos torna a vida mais viva, mais nossa.
Deixo aqui o meu melhor abraço aos artistas brasileiros de ontem, de hoje e de amanhã.”
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